Câmeras nas fardas salvaram 68 adolescentes de serem mortos pela PM de SP, aponta estudo

Em 2019, um ano antes da implementação do programa, polícia fez 102 vítimas com idade de 15 a 19 anos; em 2022, número caiu para 34, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Unicef

Bonecos de tons negros são colocados junto a velas, flores, e faixas em memória às vítimas de violência policial em frente ao 36º DP, durante 11ª edição do protesto Cordão da Mentira, realizado em 1/4/2023 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O programa de câmeras nas fardas salvou 68 adolescentes de serem mortos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo. Em 2019, um ano antes da implementação do projeto, a polícia fez 102 vítimas fatais com idades de 15 a 19 anos. Já em 2022, esse número caiu para 34, de acordo com estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, na sigla em inglês) no Brasil, lançado nesta terça-feira (16/5), que analisou o impacto dos equipamentos nas mortes de crianças e adolescentes pela PM.

Desde 2018, o Unicef acompanha a letalidade violenta dessa população por meio do Comitê Paulista pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CPPHA) e os dados em nível nacional dos anos subsequentes já apontavam o estado de São Paulo como destaque nos casos de violência policial. “Historicamente, os adolescentes são mais vítimas dessa violência letal do que outras faixas da população. O que a gente observa nesse estudo é que, pela primeira vez, os adolescentes deixam de ser quem mais morre por intervenção policial no estado”, pontua Adriana Alvarenga, chefe do escritório do Unicef em São Paulo.

Como a Ponte já mostrou, 2020 é o ano em que governo paulista acelera o processo de aquisição de câmeras nas fardas da PM, embora a corporação tenha estudado a medida desde 2014, devido aos diversos casos de violência que repercutiram.

Diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, lembra que, além dos equipamentos, outras ações também contribuíram para esse contexto, como a troca do comandante-geral da corporação após o Massacre de Paraisópolis, em 2019, e a criação de Comissões de Mitigação e Risco dentro da PM, a partir de julho de 2020, antes dos contratos com a empresa norte-americana Axon, que dispõem do modelo de gravação ininterrupta das câmeras usadas nas fardas e que passaram a funcionar em 2021.

“É uma ação importante do ponto de vista do controle do uso da força porque esse policial que se envolve em uma ocorrência que resulta em morte passa por uma comissão formada por oficiais que não são superiores hierárquicos diretos dele, são incluídos oficiais de outros batalhões que não são o dele”, ressalta Samira. “Esse é um problemão dentro da polícia porque a maior parte dos casos não vai para a Corregedoria, fica dentro do próprio batalhão, e o comum de acontecer é que tanto os colegas quanto o superior hierárquico direto acabam ‘passando um pano'”, critica.

Em âmbito geral, até o final de 2022, 62 dos 135 batalhões da PM participavam do Programa Olho Vivo, que abarca o projeto de câmeras nas fardas. De 2020 a 2022, a letalidade caiu 76,2% quando analisadas as ocorrências de policiais em serviço que passaram a usar os aparelhos. O índice acabou afetando também os demais batalhões que não utilizavam os equipamentos no mesmo período: redução de 33,3%.

Adriana Alvarenga destaca que a vitimização de crianças e adolescentes é “resultado de múltiplas violências que ocorrem ao longo da vida”, o que inclui a falta de acesso a direitos básicos, como educação, saúde, moradia, segurança, associadas à falta de preparo de agentes de segurança pública em lidar com esse público de maneira mais humanizada. “Lidar com um adolescente não é a mesma coisa que lidar com um adulto”, enfatiza.

“O adolescente está em uma fase da vida que é peculiar, em que ele está se desenvolvendo, está suscetível a correr riscos, em que ele ainda precisa desenvolver uma série de elementos de regulação do comportamento e é importante que os policiais compreendam esse momento específico da trajetória dele e tenham instrumentos de capacitação para lidar melhor com esses adolescentes”, prossegue.

Samira Bueno concorda. “É uma característica da adolescência de experimentar, de se jogar com muita intensidade em uma situação, uma dificuldade de reconhecer limites, principalmente em situações de tensão, então o preparo que o policial precisa ter para lidar com um adolescente, que eventualmente está envolvido em alguma situação com disposição à violência ou qualquer outra coisa, exige uma formação e um trato que não são as mesmas para um adulto”, avalia.

Por outro lado, as pesquisadoras salientam que ainda existe uma questão estrutural que torna as crianças e adolescentes em alvo: o racismo. “Ser preto, pobre e periférico é um estigma, um olhar muito criminalizante que tem na polícia”, critica Samira.

Quando comparada a taxa de letalidade policial por 100 mil habitantes, as vítimas negras eram duas vezes mais suscetíveis a serem mortas do que as brancas na série histórica desde 2017, período em que o Ministério Público iniciou a contabilização dos casos de letalidade por batalhão. A partir de 2021, esse número, ainda que superior às mortes de brancos, decresceu para uma taxa de 1,7, caindo para 1 em 2022.

Por isso, Adriana, do Unicef, destaca que uma das agendas importantes é “fortalecer e adotar políticas antirracistas”. “A violência da polícia continua afetando de forma desproporcional os adolescentes e jovens negros que vivem em territórios periféricos”, afirma.

Outras iniciativas elencadas pelas entidades é o fortalecimento de órgãos de controle externo, como o Ministério Público, o cumprimento da lei 17.428/2021, que estabelece prioridade de investigação dos inquéritos que envolvam mortes de crianças e adolescentes, e a regulamentação da lei 17.652/2023, que instituiu a Política Paulista de Prevenção das Mortes Violentas de Crianças e Adolescentes.

De autoria da deputada estadual Marina Helou (Rede), o texto original dessa política incluía as mortes pelas polícias no rol de classificação de mortes violentas, mas esse artigo foi vetado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) em março deste ano sob justificativa de que esse tipo de morte não é considerada crime pelo Código Penal, que presumiria que uma morte praticada por um agente do Estado é legítima. Permaneceram na lei como prioridade de prevenção os homicídios doloso e culposo, feminicídio, lesão corporal seguida de morte, latrocínio e estupro seguido de morte.

Para Samira Bueno, a gestão atual não tem demonstrado compromisso com a redução da letalidade policial em vista de uma série de declarações do atual secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, que chegou a anunciar uma reavaliação de permanência do programa de câmeras, uma bandeira da campanha eleitoral, mas o governador depois o desautorizou. Em abril, Derrite também negou a existência de racismo institucional dentro das polícias.

“A gente não pode confiar que a tecnologia, por si só, vai resolver o problema do uso abusivo da força se o comando político for contraditório em relação a isso porque, mesmo com as câmeras, é muito provável que os números de mortes cresçam”, critica ao apontar que o primeiro trimestre deste ano teve um aumento de 7% do índice em relação ao mesmo período de 2022.

Denúncias de corrupção caem

Além das câmeras nas fardas terem também reduzido as mortes de PMs em serviço a partir de 2020 a 2022 (18 para 6), o estudo também indica a implementação do programa como uma possível hipótese para a redução de denúncias de corrupção e concussão (uso da função pública para obter vantagem indevida) na corporação. Na Corregedoria, as denúncias caíram 37,5% no total na variação de 2019 a 2022.

Já na Ouvidoria das Polícias, que é um órgão externo e não vinculado à PM, as denúncias desses dois tipos de crimes caíram 55,3% no total na variação de 2019 a 2022. O número de denúncias é maior nesse local porque, segundo Samira Bueno, as pessoas se sentem mais seguras em prestar algum tipo de depoimento fora de um ambiente policial.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública obteve os dados via Lei de Acesso à Informação e o órgão não forneceu os dados referentes a 2020.

Samira Bueno, do FBSP, indica que as câmeras, por terem gravação ininterrupta durante o serviço, coíbem os policiais de produzirem provas contra si mesmos. “Os policiais corruptos não vão ter como buscar algum dinheiro em biqueira porque, com a câmera, ele vai ter que seguir um planejamento operacional em que se torna mais difícil fazer qualquer tipo de favores se ele está sendo gravado e tem como monitorar isso”, analisa.

Contudo, ela sinaliza que o equipamento não é uma panaceia. “O policial só vai fazer o uso excessivo da força, em grande medida, por conta da certeza da impunidade. Se ele não vai ser processado, se não existe uma preocupação com esses casos, nem política nem do Ministério Público, o custo [para matar] é baixíssimo.”

O que diz o governo

A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar sobre o programa de câmeras, os índices de letalidade e o cumprimento das legislações citadas, além do veto do governador e aguarda resposta.

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