Corte IDH julga responsabilização do Estado brasileiro pela morte do camponês Antônio Tavares

Trabalhador foi morto durante repressão da PM do Paraná à marcha do MST pela reforma agrária em 2000 quando 185 pessoas ficaram feridas. Para advogado, impunidade no caso expõe problema com a jurisdição militar

Ato do MST em frente ao monumento em memória ao trabalhador rural Antônio Tavares, em Campo Largo (PR). | Foto: Welinton Lenon

Há 22 anos, a família de Antônio Tavares Pereira, trabalhador rural morto aos 38 anos pela Polícia Militar do Paraná, aguarda a responsabilização do Estado brasileiro no caso que é considerado um dos mais emblemáticos do processo de violência e de criminalização na luta pela terra. Durante a marcha pela reforma agrária, em 2 de maio de 2000, policiais militares, a mando do então governador Jaime Lerner (PFL), bloquearam a BR-277 em Campo Largo, região metropolitana de Curitiba, no Paraná, e reprimiram o protesto do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) deixando 185 feridos e disparando contra Tavares.

Após o processo ser arquivado tanto pela Justiça Militar quanto a Justiça comum, entidades que representam as vítimas participaram nesta segunda (27/6) e terça-feira (28/6) da audiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, na Costa Rica, que julga a omissão do Estado no caso. Foram ouvidas a viúva do camponês, Maria Sebastiana Pereira, a vítima Loreci Lisboa, a perita Ela Wiecko, e representantes da Justiça Global, do MST e da Terra de Direitos, além da Advocacia Geral da União (AGU), do Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos e da Casa Civil do Paraná. “É uma audiência histórica e muito importante porque persegue o objetivo de que a justiça seja feita e que a impunidade não reine mais no território agrário brasileiro”, considera Roberto Baggio, da coordenação nacional do MST.

Imagem das abordagens policiais contra os integrantes do MST no dia 2 de maio de 2000. | Foto: arquivo APP-Sincicato

Durante seu depoimento, Maria Sebastiana disse que ela e os cinco filhos convivem com a dor, a saudade e até mesmo desenvolveram transtornos mentais desde a morte do marido. A defesa mostrou imagens da violência policial e dos feridos durante o protesto e apontou que não houve investigação sobre o ocorrido e que até hoje nem a família de Tavares e nem as demais vítimas receberam indenização do Estado. Além disso, as organizações pediram a extinção da Justiça Militar e medidas de proteção às lideranças sociais, aos direitos humanos e o combate à violência no campo por parte das autoridades brasileiras.

As violações não foram contestadas pela AGU, que mencionou que houve apuração do caso pela Polícia Militar e que o arquivamento se deu pelo caso não ter sido caracterizado como crime. Com o fim da audiência, ambas as partes terão até o dia 29 de julho para apresentar as alegações finais e a expectativa é que a Corte IDH dê a sentença em 2023. “Espero que seja feita a justiça, que seja feita mais rápida possível. E espero que a gente não tenha que retornar para poder reivindicar uma coisa que no Brasil poderia ser resolvido e não fora do Brasil”, reiterou Maria Sebastiana na saída do tribunal.

A advogada Camila Gomes, assessora jurídica da Terra de Direitos, afirma que este é o terceiro caso envolvendo trabalhadores rurais brasileiros que a Corte Interamericana avalia. Um deles foi o assassinato do agricultor Sétimo Garibaldi, em 1998, em que o Brasil foi condenado pela impunidade. “Nós esperamos que, neste caso, a Corte se debruce sobre os efeitos que esse processo de estigmatização e criminalização da luta pela reforma agrária no Brasil tem trazido para a vida dessas pessoas e para o movimento como um todo”, aponta.

As organizações apontaram que, mesmo após duas décadas do episódio, a atuação dos agentes de segurança pública em manifestações de movimentos sociais não mudou e que a falta de responsabilização nos abusos cometidos, como o cerceamento da liberdade de expressão, continua sendo sistemática. À Ponte, o advogado Eduardo Baker, representante da Justiça Global, avalia que o caso Antônio Tavares mostra também um problema com a competência da Justiça Militar em julgar casos envolvendo a morte de civis ou violações de direitos humanos e a Polícia Militar investigar os próprios desvios de conduta.

Trabalhadores desceram dos ônibus e foram revistados pela PM. | Foto: arquivo APP-Sincicato

“Atualmente, em tese o órgão responsável por julgar esta ação, no caso do Antônio Tavares por exemplo, seria um juiz civil. Só que o que aconteceu nesse caso, e o que ainda acontece hoje, é que quem faz a investigação da atuação da Polícia Militar é a própria Polícia Militar, um encarregado que é nomeado pelo comandante da própria PM. Se cria uma situação em que é difícil, ou quase impossível, de acreditar que vai ter uma apuração devida”, explica o advogado.

Para ele, o julgamento do caso Antônio Tavares é importante para se repensar a jurisdição militar. “Por diversas razões, a lei brasileira não define muito bem as competências de uma coisa e de outra, tem muito debate sobre jurisprudência de como interpretar uma norma ou outra. E parece que essa confusão propiciada por uma norma mal redigida, mal pensada, ou talvez pelo contrário bem pensada e bem redigida, faz com que na prática isso aconteça: polícia investiga crimes cometidos pela polícia, Exército investigue crimes cometidos pelo Exército.”

Outro ponto levantado pelo julgamento do caso é em relação ao uso de armas menos letais pela polícia durante os protestos. As vítimas relataram à Corte IDH que os policiais dispararam tiros de bala de borracha à queima-roupa durante as abordagens. Baker comenta que os abusos acontecem não só por falta de uma legislação única para essa política de segurança mas também pela falta da responsabilização dos agentes. “De nada adianta você ter essa regulamentação se você não tem nenhum mecanismo de responsabilização. Enquanto a gente não der passos concretos nessa direção, pode criar portarias, normativas sobre armas menos letais que não vai adiantar nada”, critica.

Resistência e memória a Antônio Tavares

A caminho de Curitiba no dia 2 de maio de 2000 para marcar as reivindicações do Dia do Trabalhador e da luta agrária, Antônio Tavares saiu do assentamento de Condói, no interior do Paraná, e se juntou a uma comitiva do MST com cerca de duas mil pessoas. No percurso da BR-277, os ônibus foram barrados pela Polícia Militar do Paraná que passou a revistar os veículos e realizou abordagens truculentas contra os trabalhadores. Os policiais fizeram disparos com balas de borracha e armas de fogo atingindo Tavares, que estava desarmado.

Ao todo, 185 pessoas ficaram feridas durante a repressão à comitiva do MST. | Foto: arquivo APP-Sincicato

Um inquérito policial militar foi instaurado para apurar a conduta dos PMs no dia 4 de maio, mas tanto o Ministério Público Militar e a Justiça Militar entenderam que os agentes agiram com “estrito cumprimento do dever legal” e caso foi arquivado. Apesar doe Ministério Público do Estado do Paraná ter denunciado por homicídio doloso o policial que disparou contra o trabalhador rural, o Tribunal de Justiça do Estado encerrou o processo sem responsabilização com a justificativa de que o caso já havia sido analisado pela Justiça Militar.

Um monumento em memória do trabalhador rural, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, foi erguido no mesmo local onde Tavares foi assassinado. Segundo Roberto Baggio, a luta dos movimentos sociais, em especial do MST, continua sob constante ameaça e violência tanto por parte das forças de segurança quanto por parte de fazendeiros, milícias e agropecuaristas.

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“Desde 2014 para cá a gente se aproxima do cenário de 2000 a nível nacional e nos estados também. Porque o governo Temer e o governo Bolsonaro, politicamente, bloquearam os processos da reforma agrária e, de forma institucional, desestruturaram todos os aparatos públicos de agilizar processos de reforma agrária. A reforma agrária está parada há oito, nove, dez anos e isso tudo é visível pelo aumento da violência, dos assassinatos, aumento dos despejos, da fome e aumento de lideranças processadas e perseguidas. Estamos num momento de agonia, de violência e cerco institucional e político”, ressalta sobre a importância do julgamento do caso.

O que diz a Polícia Militar

A reportagem procurou a Secretaria de Segurança Pública do Paraná, do governador Ratinho Júnior (PSD), para questionar sobre quais os efeitos do caso e o que tem sido feito em relação aos conflitos no campo e a proteção do direito à liberdade de expressão durante as manifestações. Até o momento, o órgão não retornou o contato.

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