Aplicativo de denúncias DefeZap combate violência policial no Rio

    Em um ano, ferramenta que recebe vídeos-denúncias foi responsável pela abertura de 135 procedimentos contra policiais no MP e corregedorias

    Equipe DefeZap e apoio de mobilização. | Foto: Arquivo pessoal

    De maio de 2016 para cá, 1495 mensagens e 200 vídeos resultaram em 135 procedimentos abertos no Ministério Público e corregedorias, e 92 casos envolvendo graves violações de direitos humanos praticadas por policiais em favelas do Rio de Janeiro. Em dois deles, já houve decisão judicial e as vítimas foram favorecidas, graças à atuação do DefeZap, ferramenta que recebe vídeos-denúncias de violência de Estado, realiza apurações preliminares e os encaminha ao Ministério Público, acompanhando todos os processos. As denúncias contra agentes violadores são realizadas sem expor os denunciantes a riscos de represálias de policiais, já que suas identidades são mantidas em sigilo.

    Ao final de seu primeiro ano de trabalho, a plataforma registra números que dizem muito sobre o modelo de segurança pública vigente no estado do Rio, onde mais de 8 mil pessoas foram mortas por policiais somente na última década, de acordo com a organização Human Rights Watch. A pedido da Ponte Jornalismo, a equipe do DefeZap forneceu dados sobre os tipos de violações predominantes, os locais onde mais acontecem, os principais agentes violadores e perfis de vítimas.

    A Polícia Militar é, disparada, a que mais viola direitos no estado. Em 68 dos 92 casos casos recebidos pelo DefeZap, os agentes violadores eram policiais militares, embora em algum deles houvesse, ao mesmo tempo, também a participação de policiais civis. Segundo o advogado e jornalista Guilherme Pimentel, coordenador do DefeZap, é preciso deixar claro que “o Estado é perverso”, não simplesmente a instituição PM. “Trata-se de uma relação do Estado com a população. A PM é uma instituição voltada para o controle social e, por se tratar do policiamento ostensivo armado, é a polícia que mais tem contato direto com a população”, afirma.

    Em sete do total de casos, os agentes violadores eram guardas municipais; em 5 eram policiais civis; em 4, seguranças do Metrô e Supervia; em dois, militares da Força Nacional e em dois, um integrante das Forças Armadas e uma autoridade municipal, respectivamente. Em quatro casos a corporação à qual pertenciam os agentes não foi identificada.

    São diversos os tipos de violência praticados e a maior parte destes ocorre durante operações policiais em favelas: o DefeZap registrou 38 ocorrências nessas circunstâncias.

    Entre as situações aparentes envolvendo as violações, 31 foram de detenção ou cerceamento do direito de ir e vir; 16 de repressão a manifestações pacíficas; nove envolvendo invasões de imóveis sem mandado, alguns dos quais ocorridos no Complexo do Alemão, quando policiais ocuparam casas de moradores. Na época, o subcoordenador de Polícia Pacificadora, tenente-coronel Marcos Borges, assumiu que as invasões sem mandado judicial eram parte de uma estratégia da PM para implantar uma base blindada no Alemão. Na audiência pública em que o oficial fez esta afirmação, comprometeu-se a retirar os policiais das casas até o dia seguinte, mas o DefeZap recebeu um vídeo que mostrava PMs ainda ocupando uma casa e debochando de moradores.

    O DefeZap registrou ainda oito casos de violações de prerrogativas profissionais, como repressão a jornalistas e advogados e seis casos no contexto dos Jogos Olímpicos Rio 2016. Outros seis casos envolveram repressão cultural contra artistas de rua e metroviários, e a eventos culturais em favelas, com a destruição de equipamentos de som de produtores culturais por PMs a bordo do Caveirão (veículo blindado da corporação) em diferentes favelas do Rio, como a Ponte mostrou em reportagens recentes.

    Em menos de dois meses, houve quatro casos desse tipo. Três deles ocorreram em menos de um mês, sendo um em uma comunidade de Triagem, na Zona Norte do Rio, e os outros dois na Baixada Fluminense. Veja, abaixo, os vídeos:

    No último dia 5, policiais jogaram novamente o Caveirão contra equipamentos de som de um produtor cultural que estava começando a tocar o Hino do Flamengo em comemoração ao título conquistado pelo time no Campeonato Carioca, novamente na Zona Norte da capital, desta vez na favela do Mandela, em Manguinhos, como mostra o vídeo abaixo:

    Houve ainda quatro casos denunciados ao DefeZap no contexto de remoções, despejos ou desocupações forçadas; quatro casos de suspeita de desconfiguração de cena de crime e um envolvendo péssimas condições de trabalho de policiais. Em 14 do total de casos, houve vítimas fatais.

    Em 44 casos, as vítimas são negras; em 39, mulheres; em 30, crianças e adolescentes; em 12, idosos; em dois, um policial militar e uma pessoa com transtorno psíquico. Há vítimas com mais de um definidor de perfil, casos com mais de uma vítimas e outros em que o perfil não pôde ser identificado, segundo o DefeZap.

    As regiões do estado onde ocorre a maior parte das violações são a Zona Norte da capital fluminense, que registra 38 casos, seguida do Centro, com 20 casos, e da Zona Sul, com 11 casos. Na sequência, vêm a Zona Oeste da capital, os municípios de Niterói e São Gonçalo, e Duque de Caxias (Baixada), as três regiões com cinco casos cada, respectivamente. Também foram registrados pelo DefeZap um caso no município de Maricá e um no de Nova Iguaçu, sendo que em outras quatro ocorrências o local não foi identificado.

    Para Guilherme Pimentel, tais números evidenciam “uma total corrupção da ideia socialmente aceitável de segurança pública” e que “o maior violador dos direitos humanos é o próprio Estado, por meio justamente das forças de segurança pública, muito utilizadas como força de repressão e pouco utilizadas efetivamente como forças de segurança”.

    “Uma segurança pública eficiente é aquela que defende os direitos das pessoas. Afinal, a única função de a sociedade aceitar uma política de segurança é garantir que a lei do mais forte não prevaleça. Que as pessoas terão seus direitos respeitados independentemente de serem mais fortes ou mais fracos que aqueles que querem lhes violentar. Então não faz o menor sentido que a estrutura de segurança pública do Rio de Janeiro seja justamente a violadora dos direitos das pessoas. A partir desse momento já houve uma total corrupção da ideia de segurança pública, da ideia socialmente aceitável de segurança pública”, avalia.

    A Constituição de 1988 atribuiu ao Ministério Público o papel de fiscalizador da atividade policial, a partir da constatação de que é necessário haver um órgão não comprometido com interesses das instituições policiais para fazer o controle externo das polícias, para além das corregedorias, responsáveis pelo controle interno.

    Polícia Militar reprime manifestantes no centro do Rio durante protesto contra as reformas trabalhista e da Previdência, em abril de 2017 | Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

    Para Pimentel, entretanto, o MP não tem feito um trabalho eficaz no combate à brutalidade policial. “Hoje, quase 30 anos depois da aprovação da Constituição, não precisa ser especialista, não precisa manejar dados, para se ver que o controle  externo não está sendo realizado, ou que, no mínimo, não está sendo suficiente para um efetivo controle da legalidade das ações das polícias”, critica.

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    O que existe, no lugar de uma política de segurança pública, é uma política de repressão pública, segundo o coordenador do DefeZap, o que é inadmissível, por ser típico de modelos autoritários e não de modelos democráticos e participativos. “A partir do momento em que a polícia passa a violentar as pessoas porque possui uma arma na cintura, passa a fazer o que quer porque vai exigir que o cidadão obedeça cegamente às ordens autoritárias que são dadas principalmente nos becos e vielas, a polícia deixa de ser um garantidor de direitos para ser um violador, a configurar uma cena em que vale a lei do mais forte”, afirma.

    Uma arma contra a violência de Estado

    “O DefeZap não é simplesmente um mero controle das forças de Estado, mas uma ferramenta para aperfeiçoar a segurança pública dentro de uma lógica democrática, uma segurança que deve servir ao cidadão”, afirma Pimentel, que trabalhou por cinco anos na Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), atendendo vítimas de violações de direitos humanos, experiência que envolvia não apenas um papel fiscalizador mas também assistencial, que, segundo ele, foi fundamental no desenvolvimento do DefeZap.

    O projeto, que começou a ser desenvolvido pela organização Meu Rio um ano depois das grandes manifestações populares que tomaram as ruas do país em junho de 2013, nasceu com o objetivo de potencializar a participação de cidadãos na questão da segurança pública e defesa dos direitos humanos. Após um período de dois meses de testes com uma rede de voluntários em favelas, a partir da qual o próprio nome do serviço foi definido, a ferramenta foi lançada em 9 de maio de 2016.

    No contexto das manifestações de 2013, em que muitos vídeos foram gravados com câmeras de celulares, registrando a intensa repressão policial contra manifestantes, surgiu a ideia de desenvolver uma plataforma voltada a receber tais registros, segundo o advogado. Mas o objetivo não seria apenas o de receber vídeos-denúncias: a equipe pretendia atuar diretamente no combate às violações por meio da análise e encaminhamento dos mesmos aos órgãos competentes, para que os vídeos tivessem real “poder de transformação”, transcendendo “a mera exibição” de um problema social.

    “Porque, se por um lado, o crescente número de vídeos denunciando a brutalidade policial ajuda a evidenciar o problema da violência de Estado, por outro, a simples exibição e circulação desses vídeos pode acabar gerando uma naturalização do problema, uma vez que a viralização não vai se desdobrar automaticamente em medidas de prevenção e combate à violência de Estado”, explica Pimentel.

     

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