Direitos em cena | O libertário de dois mundos

Documentário investiga a carreira do cineasta Ruy Guerra, que confrontou o salazarismo e a ditadura militar brasileira

Um jovem cabeludo com uma câmera de 16 milímetros vagueia pelo cais da sua cidade natal. Ele filma os modestos pescadores locais enquanto fuma um charuto. O rapaz está fazendo uma espécie de documentário. Ele não aguenta mais o colonialismo em sua terra, sentindo-se um cidadão de segunda classe. O rapaz é crítico de cinema, faz parte de um círculo intelectual local e quer seguir carreira na sétima arte. Mas não poderia ficar na sua terra natal, ali não tinha como vingar como realizador, roteirista, compositor, poeta e dramaturgo. Tudo isso ele acabou sendo no Brasil. Algumas dessas facetas deste agora nonagenário diretor podemos vislumbrar no documentário Tempo Ruy, sobre Ruy Guerra, autor de obras fundamentais do Cinema Novo, como Os Cafajestes (1962) e Os Fuzis (1964). 

O documentário foi dirigido pelo cineasta, historiador e professor Adilson Mendes. “A produção surgiu a partir do isolamento de Ruy durante a pandemia. Éramos vizinhos e então propus a ele uma espécie de ensaio audiovisual”. O projeto acabou ganhando um edital da prefeitura do Rio de Janeiro e foi realizado com um “orçamento minúsculo”, como define o próprio diretor. “Minha ideia foi conceber este projeto para manter um veterano como o Ruy em atividade durante o momento de asfixia do cinema brasileiro que foi o último governo”.

Ruy Guerra nasceu em Maputo, capital de Moçambique, em 1931. Desde bastante jovem, teve uma completa aversão ao salazarismo, movimento protagonizado pelo advogado Antônio Salazar (1889-1970), ditador que governou Portugal e os territórios portugueses como Moçambique entre 1933 e 1975. Profundamente católico, o autocrata criou o chamado Estado Novo, um regime autoritário de extrema-direita com uma censura impiedosa e uma polícia opressora. “Eu era um cidadão português de segunda classe. O colonialismo era racista”, diz ele de maneira bastante sincera no documentário. “Portugal era o reduto do fascismo”, depõe.

O Brasil acabava vindo como uma opção natural para o então jovem Ruy Guerra. Ele conhecia a literatura da geração de 1930, sabia as marchinhas de carnaval pelo rádio e tinha acesso até mesmo às críticas de cinema de Alex Viany na revista Scena Muda. Tudo isso enquanto ainda morava em sua cidade natal. “Ruy tem excelente memória e lembrar sua experiência africana é uma alegria para ele. Os materiais que usei no filme são principalmente dos filmes que ele fez em Moçambique”, explica Adilson Mendes. Moçambique só se tornaria independente de Portugal em 25 de junho de 1975, depois da Revolução dos Cravos derrotar o salazarismo e libertar de vez as colônias portuguesas restantes.

Ao longo da narrativa de Tempo Ruy, vamos conhecendo parte deste curioso personagem que viveu de perto o cinema e a cultura brasileira. O veterano lê algumas coisas que escreveu. São telegramas, cartas antigas, cartazes de festivais, poemas, letras de canções e roteiros. Enquanto isso, a câmera capta algumas fotografias dos bastidores das produções em que o personagem principal esteve à frente. Ruy Guerra foge do salazarismo para o Brasil, onde acaba confrontando outro regime totalitário: a Ditadura Militar brasileira (1964-85). O realizador enfrentou os ideais do regime autoritário brasileiro através de obras inovadoras como Os Fuzis.

Ruy Guerra filmando nos anos 1960 | Foto: Reprodução

No documentário, Ruy Guerra conta que muitos detalhes da produção foram acertados graças à colaboração do roteirista Miguel Torres e do escultor Mário Cravo. “Tínhamos conversas quase diárias que foram fundamentais para eu fazer o filme”, confessa Guerra enquanto degusta um dos seus charutos. Os Fuzis é considerado uma das principais obras do Cinema Novo por tratar de questões como fome, militarismo, prostituição infantil e seca. As cenas impressionam até hoje. O veterano também conta que encenou partes do filme que funcionam como uma espécie de falso documentário dentro do longa-metragem. “Pra mim não existe diferença entre um gênero e outro”, provoca ele, abordando a diferença entre narrativa documental e ficcional.

Tempo Ruy funciona como uma espécie de ensaio sobre Ruy Guerra. Adilson Mendes optou pela narrativa ser centrada no personagem principal, não tendo outros depoentes ao longo da narrativa. “Não pretendia fazer uma cinebiografia. O filme é o retrato de um artista quando velho”, avalia. Pode-se dizer assim que este não é um perfil definitivo sobre o diretor. O próprio Adilson Mendes reconhece que Ruy Guerra merece outros documentários sobre a sua trajetória pessoal e profissional. Parece que Tempo Ruy é mais um retrato afetivo do artista que nos faz conhecer parte da sua vida e carreira. “O filme foi feito segundo a determinação do acaso, do imprevisto. A produção teve um caminho próprio. Tenho respeito aos materiais e busco entendê-los para melhor dar uma forma a eles”, raciocina Adilson Mendes.

Um dos momentos mais emblemáticos é a difícil e extensa relação que Ruy Guerra manteve com o cineasta Glauber Rocha (1939-1981), nome mais conhecido do Cinema Novo. “Nunca falei sobre o Glauber. Isso é inegociável”, diz o personagem principal visivelmente irritado. O diretor moçambicano não gostou de abordar o tema. Em determinado momento, existiu um afastamento. Glauber deu entrevistas dizendo que Guerra era agente da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide), a temida polícia secreta de Salazar. Algo completamente falso. Esse fato afastou os dois definitivamente. “Eu sabia da amizade turbulenta entre eles, mas não imaginava a reação dele diante da câmera”, pontua Adilson Mendes. Em determinado momento, o próprio Adilson confronta Ruy explicando o quanto sua obra cinematográfica é bastante próxima à de Glauber.

Uma questão fundamental avaliada por Adilson Mendes e sua equipe técnica era registrar Ruy Guerra neste momento da vida. Um homem de mais de 90 anos que ainda pensa no audiovisual, fuma seus charutos, mas que está idoso. “O filme é sobre os dias atuais e como esses dias são passados no agora”. Dessa maneira, não chega a ser estranho vermos o cineasta com sua caixinha de remédios e também com o seu cuidador. “Os problemas da velhice, ou de demorar a morrer, é que teu mundo vai sendo despovoado. Teus amigos, teus conhecidos vão morrendo. Quanto mais tempo você fica vivo, mais sozinho você fica”, diz o protagonista sem qualquer tipo de floreio. Ruy Guerra também conta no filme algumas histórias de sua amizade com o romancista colombiano Gabriel Gárcia Márquez (1927-2014), de quem foi parceiro, e da sua paixão pelo Botafogo, o time de futebol que escolheu para torcer no Brasil por causa do ponta-esquerda Garrincha. “Ele tinha a criatividade que vem da várzea não vem de escolas, não vem de saberes ocultos. Vem por osmose.”

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Tempo Ruy foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no DocLisboa, na Mostra de Cinema de Tiradentes e na Mostra de Ouro Preto. Adilson Mendes destaca que a recepção sempre foi satisfatória com os espectadores. “O público sempre teve um relacionamento positivo com o filme. Houve uma repercussão, modesta, mas importante, ao menos pra mim. O longa mereceu críticas elogiosas no festival de Ouro Preto”, reconhece. “Espero que o filme seja visto agora que está acessível em canais de streaming. Minha expectativa é que mais gente possa conhecer um pouco da incrível trajetória do Ruy”. 

Tempo Ruy
Direção: Adilson Mendes
Brasil, 2022
Duração: 72 minutos
Onde ver: Now  

A coluna “Direitos em Cena” é o espaço para o cinema brasileiro contemporâneo na Ponte: seus filmes, seus diretores, seus personagens. Busca ampliar o espaço de narrativas cinematográficas que muitas vezes não recebem atenção da grande mídia, sempre em relação com os direitos humanos. A coluna é escrita por Matheus Trunk, jornalista, escritor, roteirista e mestre em comunicação audiovisual, autor dos livros O Coringa do Cinema (Giostri, 2013), biografia do cineasta Virgílio Roveda, e Dossiê Boca: Personagens e histórias do cinema paulista (Giostri, 2014).

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