Estudante é encontrado morto em cela de delegacia em MG; família suspeita da ação da polícia

Charles Wallace dos Reis era aluno do curso de história da Ufop e teria, segundo a polícia, tirado a própria vida dentro de carceragem sob escolta da PM. Ele foi detido após briga com namorado na cidade de Mariana 

Charles Wallace dos Reis atuava no Centro Acadêmico de História da Universidade Federal de Ouro Preto e era conhecido pela luta por direitos | Foto: Reprodução Instagram

Atenção: esta reportagem trata de saúde mental, depressão e pensamentos suicidas – que podem gerar gatilhos. Caso você não esteja bem e precise conversar com alguém, a Ponte recomenda entrar em contato com o Centro de Valorização à Vida (CVV), que funciona 24 horas e pode ser acionado através do telefone 188 (ligação gratuita) ou neste site, ou uma unidade mais próxima de saúde que você pode encontrar por meio do Mapa da Saúde Mental.

Charles Wallace dos Reis, 23 anos, era um rapaz idealista, carinhoso e estudioso, lembra Letícia*, familiar do jovem. Ela preferiu preservar sua identidade por medo de sofrer alguma represália da polícia. As lembranças positivas de Charles são algumas das poucas certezas diante das circunstâncias da morte do estudante de história da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), em Minas Gerais, ocorrida na madrugada do último domingo (21/8). “São muitas perguntas não respondidas, queremos que o caso seja investigado para honrar o nome dele e não acontecer com outras famílias.”

Charles, homem negro, gay e ativista de movimentos sociais, foi encontrado morto dentro de uma cela da delegacia da Policia Civil de Ouro Preto. Segundo o boletim de ocorrência assinado pelo investigador de polícia Afonso Henrique Costa, Charles teria se enforcado com um tirante de canecas.

De acordo com relatos da família, Charles foi encaminhado à delegacia após discutir com o namorado em uma residência na cidade de Mariana, na noite de sábado (20/8), após uma festa. Na ocasião, o namorado do estudante que estava junto com uma amiga chamou à polícia pois estava com medo de Charles. Quando a PM chegou, por volta das 20h, Charles teria desacatado os policiais que pediam que ele colocasse as mãos para cima. “Inclusive usaram cassetetes para poder colocá-lo na viatura. O namorado e a amiga também foram conduzidos”, diz Letícia.

Os três foram direcionados à uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) na cidade de Mariana, para que fosse feito o exame de corpo de delito, uma vez que houveram agressões físicas durante as discussões. Apesar disso, profissionais da unidade de saúde observaram apenas ferimentos leves em Charles, diz a parente. “Eles passaram na UPA por volta de 22h30 da noite, o exame de corpo de delito dizia que ele tinha apenas escoriações leves pelo rosto.”

Na sequência os três foram levados para a Delegacia de Polícia de Mariana e posteriormente teriam sido encaminhados para a delegacia de Ouro Preto, chegando no local por volta das 23h. Lá Charles foi levado para uma cela para aguardar o momento de seu depoimento. De acordo com o BO, um maço de cigarro e um celular foram retirados de Charles, e ele não usava cinto. A polícia diz ainda que “nem mesmo observou qualquer objeto que traria risco à integridade física do cidadão”. 

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Ainda segundo o documento, a “guarnição ficou na sala de Reds (registro de ocorrência), localizada ao lado da cela”. O relato do boletim aponta ainda que o policial militar Jesse Rodrigues Campos fez contato duas vezes com Charles para verificar como ele se encontrava e depois de 20 minutos do último contato solicitou ao militar Santcheles Hernrique da Silva Candido que fosse até a cela do estudante.

Chegando lá, segundo o BO, Santcheles verificou que Charles se encontrava “com uma cordinha de segurar caneca pendurada no alto da cela e junto ao pescoço”. A morte foi atestada por volta das 3h da manhã do domingo (21/8).

No mesmo instante, Cândido comunicou o que havia visto para o sargento Campos. O BO diz também que Charles parecia estar sob efeitos de álcool. Já o investigador Rodrigo Filard afirma no boletim que não realizou busca pessoal em Charles porque ele ainda estava sob responsabilidade da PM. 

O namorado de Charles teria informado aos policiais que o jovem tinha tentado tirar a própria vida outras três vezes e que tinha depressão. Ele e a amiga de Charles informaram que não ouviram nenhum barulho vindo da cela. No documento da polícia, o investigador de polícia Victor Augusto Meirelles também confirma a versão de Rodrigo. 

A reportagem tentou contato com a amiga e namorado de Charles, que não quiseram ser entrevistados.

Família quer respostas

Para a familiar de Charles, nem todas as questões foram respondidas sobre o caso. Ela, que reconheceu o corpo do jovem, lembra que ele tinha diversos ferimentos, diferentemente do que foi relatado pelo próprio namorado de Charles à ela. “Ele falou que o Charles não estava machucado, mas quando fiz o reconhecimento do corpo a mão dele estava machucada, o pescoço, a cabeça e o rosto muito machucado, então ficamos sentidas de ver que ele estava bem machucado”, diz Letícia.

Ela ainda lembra que o próprio namorado relatou que a cordinha da caneca que Charles teria usado para cometer o suícidio estava no painel da viatura policial quando os três estavam sendo encaminhados para a delegacia. “Como que a corda estava no painel do carro da polícia e foi parar com ele? Como ele passa por uma revista e retiram só o maço de cigarro e o celular dele?”, indaga ela, lembrando-se também que Charles estava usando um colar e brincos quando foi feito o reconhecimento do corpo e que o celular estava todo quebrado. 

Ela recebeu a informação de que tanto o namorado de Charles, como a amiga permaneceram na delegacia até cerca das 19h do domingo (21). “Eles foram liberados já eram 19 horas do domingo, depois que o Charles já tinha sido enterrado em Itabirito, às 17h. Por que eles estavam detidos? Eles não foram à delegacia como vítimas?”, se pergunta.

Outro ponto de questionamento de Letícia foi o desaparecimento de duas blusas que Charles usava durante a noite de sábado. “No IML só estava a calça, cueca e o tênis, as camisas estavam na delegacia de Ouro Preto, no lixo que inclusive fica de frente pra cela”, diz.

Uma semana depois da morte de Charles, Letícia se lembra da última vez que viu o parente. “Ele veio passar as férias aqui, já não precisava mais dos medicamentos para depressão. Gostava muito de buscar os direitos dele, principalmente dos LGBTs, para ser aceito com igualdade, sem discriminação. Ele batalhava muito por isso.”

Universidade se manifesta

Mateus Henrique de Faria Pereira, 45 anos, professor do Departamento de História e diretor do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Ufop (ICHS/Ufop), também levanta dúvidas quanto às causas da morte de Charles. “Fica em dúvida se essa cordinha estava realmente com ele porque há versões contraditórias. Além disso, [é estranho] por ser um jovem de 23 anos que era crítico do Estado, que tira a sua própria vida dentro de uma cela do Estado.”

Além disso, para ele o jovem pode ter sido vítima de violência política. “Ele tinha o símbolo do comunismo tatuado no seu corpo e nós vivemos um momento de violência política muito grande, então pairam muitas dúvidas, a certeza é de que a história não está esclarecida.”

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Ele também indaga qual era a necessidade da prisão do estudante. “Por que prender numa cela para uma ocorrência policial simples. Na nossa cabeça fica o fantasma e também a memória do crime do [Vladmir] Herzog [jornalista morto durante a ditadura]. Dá a entender que houve sim uma violência de Estado. A comunidade do ICHS, está perplexa, em luto. Os amigos estão bastante abalados, sobretudo a comunidade LGBTQIA+ de Mariana, que se sente mais frágil e vulnerável.”

Em nota, a Ufop afirmou que solicitou o acompanhamento do caso por parte da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), subseção de Ouro Preto, da Comissão de Diversidade da OAB estadual, e da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). E entende que as circunstâncias da morte precisam ser melhor elucidadas pelas autoridades policiais. 

“Além disso, a morte de pessoas sob custódia do Estado evoca momentos macabros de violência institucional na história recente do Brasil e indica ter havido, no mínimo, negligência, em especial, por parte das Polícias Civil e Militar e do Governo do Estado de Minas Gerais”, diz um trecho do texto.

Por meio das redes sociais, o Centro Acadêmico de História da Universidade Federal de Ouro Preto (Cahis) também lamentou o óbito e exigiu justiça por Charles. “Charles dava a vida pelas causas e vivia por elas, para honrar sua enorme força e coragem, levaremos suas lutas adiante. Sempre foi quem era, pura e verdadeiramente; cheio de vida, de um carisma e caráter admiráveis. Nunca deixou de acreditar e lutar pelo que lhe cabia. Nós exigimos justiça por Charles! Exigimos que o caso seja investigado a fundo e melhor esclarecido; não aceitaremos sermos reprimidos pela Polícia Militar, pela força que deveria nos proteger.”

Também nas redes sociais, a deputada estadual Andréia de Jesus (PT), presidenta da Comissão de Direitos Humanos na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, disse que o grupo irá “fazer ofícios, cobrar das instituições e pensar em mais ações” para sanar as contradições do caso.

O que diz a polícia

Procurada, a Polícia Civil de Minas Gerais disse que apura, por meio da Delegacia de Polícia Civil de Ouro Preto, as circunstâncias da morte do estudante. A corporação disse que a principal linha investigativa trabalhada é de que o estudante “empregara na prática do ato uma espécie de corda que utilizava para carregar uma caneca a tiracolo.Tão logo o fato foi constatado, procurou-se prestar socorro ao estudante, inclusive com o acionamento do SAMU, mas o seu estado já era irreversível”. 

A investigação se iniciou imediatamente, diz a polícia “com as oitivas das testemunhas do fato e realização das perícias pertinentes, cujos resultados são aguardados para melhor esclarecimento do ocorrido”.

Em entrevista para a rádio Itatiaia, Ricardo Reis Neto, delegado da delegacia de Ouro Preto, disse que “a PM que estava com a guarda da pessoa presa. Ela fica responsável por analisar a regularidade da situação na cela até o momento que a Polícia Civil recebe a ocorrência”.

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Com relação ao fato de a polícia não ter retirado o cordão de Charles, Neto declarou que “tem algumas coisas evidentes que se tem mais cuidado, mas tem outras que às vezes acabam escapando”. De acordo com ele, o resultado do laudo da perícia e da necropsia devem ser apresentados em 30 dias.

Questionado sobre as ações das polícias civil e militar, o governo de mineiro de Romeu Zema (Novo) disse que “acompanha o caso e aguarda o andamento das investigações.” A instituição também não respondeu quais medidas está tomando para esclarecer os fatos.

Ajude a Ponte!

A Ponte encaminhou as seguintes perguntas para a Polícia Militar, nenhuma delas foi respondida até o momento.

1) Segundo familiares de Charles, o corpo do jovem estava com ferimentos, como a polícia explica esses ferimentos?

2) Se no momento do suicídio haviam policiais militares próximos da cela por que o ato não foi impedido?

3) Com quais roupas Charles chegou na delegacia? Por que as blusas de Charles não foram entregues para os familiares? Por que foram jogadas no lixo?

4) Com quem Charles foi conduzido às delegacias? Por quanto tempo Charles ficou na delegacia de Mariana? E por que foi conduzido depois para a delegacia de Ouro Preto?

5) Segundo relato de familiares, os dois jovens conduzidos com Charles permaneceram na delegacia de Ouro Preto até às 19h da segunda-feira (22), por que?

6) Quantos policiais militares conduziram Charles até as delegacias? Foram os mesmos?

7) Por que a família foi avisada da morte de Charles somente às 6h da manhã, se o óbito ocorreu por volta das 3h da manhã?

8) Por que as bijuterias que Charles utilizava, inclusive a cordinha que teria sido utilizada no suicídio, não foram guardadas quando o mesmo foi preso na cela?

*O nome foi alterado a pedido da entrevistada para preservar sua segurança

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