‘Eu tive que trocar meu absorvente na frente da agente penitenciária’

Familiares denunciam humilhações em revistas para visitar detentos da Penitenciária de Lucélia, no interior de SP; pesquisa revela que no Brasil, mesmo passando pelo scanner, 41% dos parentes relataram ter sido obrigados a passar por revista vexatória

Fachada da Penitenciária de Lucélia, no interior de SP | Foto: Reprodução/Sifupesp

“Teve um dia que eu estava menstruada, passei pelo scanner, e a funcionária perguntou o que eu tinha. Eu disse que era absorvente. Ela me fez ir numa sala, com a porta aberta, que dava para as outras famílias me verem, e trocar o absorvente na frente dela”. É assim que Sabrina* descreve como foi, há pouco mais de um mês, a revista que teve de passar para visitar o marido na Penitenciária de Lucélia, no interior paulista. “Sempre fazem a gente levantar a blusa até o peito, abrir a boca, mostrar a sola do pé, abrir o cabelo. Por que a gente passa por essa humilhação se tem scanner?”. Outras mulheres ouvidas pela reportagem denunciaram a mesma prática nessa unidade prisional.

O questionamento de Sabrina é parecido com o relatos colhidos na pesquisa Revista Vexatória: uma prática constante, que recebeu, em agosto de 2021, 471 respostas de familiares de pessoas em privação de liberdade que passaram por situações vexatórias em revistas íntimas no Brasil (que aconteceram não necessariamente no mesmo período). Agachar sem roupa em cima de um espelho, tossir e abrir as cavidades das partes íntimas são algumas das situações constrangedoras relatadas pelos parentes. 77,7% disseram que foram submetidos à revista vexatória como condição para realizar a visita.

O relatório foi elaborado por sete instituições: Agenda Nacional pelo Desencarceramento, Conectas, Rede Justiça Criminal, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, Pastoral Carcerária e Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

Apesar de alguns estados, como São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro e Minas Gerais, proibirem a realização de revista íntima, os depoimentos apontam que a prática continua acontecendo, inclusive em crianças. 93,6% das famílias afirmaram que existe scanner corporal nas unidades em que fazem visitas e 41,2% disseram que, mesmo depois de passarem pelo equipamento, foram obrigados a passar pela revista íntima. “Quem tem dentadura, pedem para tirar a prótese, abrir a boca com aquilo na mão, mostrar o pé, tem que soltar o cabelo, abrir o cabelo, você fica toda descabelada”, aponta Ligia*, que também denuncia que já teve que trocar o absorvente na frente da agente penitenciária em uma das visitas que fez na unidade de Lucélia. “Geralmente, quem mexe no scanner é homem e a porta [da sala] fica na frente do scanner e não fica fechada, eles conseguem ver”.

Maria* aponta que em uma das revistas teve o estômago pressionado por agentes, teve de subir e descer de um banquinho e pular porque os agentes não acreditavam que a imagem que tinha aparecido no scanner era de um alimento que não foi digerido. “A gente sai da capital até Lucélia e o percurso é longe, a gente tem que se alimentar. Eu passei em três processos: um banquinho que a gente senta que detecta objeto, um detector de metal e o scanner. Ainda assim, a gente levanta a blusa, abre o cabelo, mostra o pé”, lembra.

“Disseram que a imagem, que parece que nem olharam direito, identificou que tinha alguma coisa na minha barriga. Eu expliquei que tinha me alimentado, a gente poderia ir num pronto-socorro se quisessem, mas não adiantava. Em nenhum momento me neguei a ser revistada”, denuncia. “Eu me senti humilhada porque foram 30 minutos que a fila dos visitantes que iam passar pela revista ficou parada até verem que eu não estava com droga. Parece que os agentes não são preparados para entender como funciona o scanner porque, se tem scanner, ele sabe diferenciar o que é droga de massa fecal, né?”, questiona a mulher.

A pesquisadora do programa Justiça Sem Muros do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) Sofia Fromer explica que a revista vexatória viola a dignidade humana. “Quando a gente vai ao médico e faz o raio-x, tem uma pessoa que lê imagens e é formada nisso, mas isso não acontece nos espaços prisionais”, critica. “Embora alguns agentes recebam curso, não dá para se pressupor que um curso feito por uma pessoa da área de radiologia tenha a mesma capacidade técnica de um agente prisional, então isso [as revistas após o scanner] acontecem muitas vezes porque o agente não saber ler a imagem”.

A pesquisadora também atribui a prática a uma forma perversa de extrapolar a pena da pessoa presa a seus parentes e puní-los. “O cárcere, como foi criado, tem essa noção das penas que extrapolam o que está escrito na Constituição. Então, teoricamente, a pessoa estaria privada apenas da sua liberdade, nada mais além disso”, explica. “Mas a gente sabe que essas pessoas não têm acesso à saúde, lidam com racionamento de água, lugares superlotados, não têm comida, é uma série de violações de direitos que não fazem parte do escopo da pena, e nem poderiam fazer porque estamos em um Estado Democrático de Direito e essas pessoas também estão englobas embora estejam presas, mas que extrapolam. Então é uma pena física, uma pena psíquica e que afeta também os familiares, é uma forma de puní-los, considerados muitas vezes como criminosos porque têm um parente que cometeu algum delito, e também o próprio preso que é punido vendo a dor dos familiares”.

Algumas das leis estaduais, como a de São Paulo, surgiram após uma campanha da Rede de Justiça Criminal, em 2014, pelo fim da revista íntima vexatória. Na época, a entidade levantou que a média de apreensões de objetos proibidos no estado paulista era de três casos para cada 10 mil famílias revistadas. Um dos pedidos era pela aprovação do Projeto de Lei 7.764/2014, de autoria da ex-senadora Ana Rita (PT-ES), que previa o fim imediato das revistas vexatórias e propunha uma série de medidas a serem cumpridas em âmbito nacional, entre elas a instalação de aparelhos de scanner e raio-x e, no caso da necessidade da revista manual, que ela fosse realizada em sala separada e na presença de outras duas testemunhas. Proibia também o desnudamento da pessoa, ainda que sob suspeição. O texto, porém, está parado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados desde 2019.

Há também um Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) nº 959620 em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF) para julgar se provas colhidas por meio de revista íntima vexatória podem ser consideradas válidas no processo criminal. Dos 11 ministros, cinco já votaram e três consideraram a prática inconstitucional. O julgamento, que começou em outubro de 2020, foi paralisado em junho do ano passado após pedido de vista (tempo para análise) do ministro Nunes Marques.

Para Sofia Fromer, apesar da necessidade de um regramento em âmbito nacional para respaldar outras medidas, já existem leis estaduais que vêm sendo descumpridas. “O que a gente percebe é que isso tem outro viés por trás disso que não necessariamente é uma questão legislativa porque leis a gente tem para várias coisas, inclusive que determina uma equipe mínima de saúde nas unidades prisionais e elas não têm. Só a lei em si não serve de muita coisa se o Estado não consegue mudar a mentalidade e entender isso como uma violação de direito”, avalia.

Além disso, também há a questão da transparência. O Depen (Departamento Penitenciário Nacional), ligado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública, coleta e divulga dados e relatórios sobre o sistema prisional brasileiro, incluindo desde perfil das pessoas privadas de liberdade à quantidade de equipamentos nas unidades. Nos relatórios, cujas informações mais recentes são de junho de 2021, não há dados sobre presença ou não de scanners, detectores de metais ou aparelho de raio-x para revistas.

A Ponte questionou o Depen, que ressaltou que “acompanha e controla a aplicação da Lei de Execução Penal e das diretrizes da Política Penitenciária Nacional, emanadas, principalmente, pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária”, mas que a administração direta das penitenciárias dos estados cabe aos governos estaduais. A assessoria informou que “doou, a partir de 2019, 206 equipamentos de inspeção corporal (Body Scan), com recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) no valor de R$ 45.458.060,00 para todas as Unidades Federativas brasileiras e está promovendo cursos para policiais penais do país para manuseio desses equipamentos”. A pasta declarou que até maio deste ano todos os estados receberão esse treinamento cujo objetivo é “qualificar servidores para a análise de imagens do equipamento, com vistas a evitar entrada de ilícitos nas unidades penais e facilitar a revista dos visitantes”.

O departamento também informou que foram doados “121 raios-x de bagagem e 562 portais detectores de metais, com investimento de mais de 17 milhões de reais, posteriormente para as Unidades Federativas. Em 2016, foram distribuídos 381 raios-x de bagagem e 823 portais, com investimento em torno de R$ 39 milhões”. Além de que os estados adquiriram, via Funpen, R$ 94 milhões em equipamentos de 2016 a 2021. No entanto, considerando que existem no país 1.426 estabelecimentos prisionais para cumprimento de pena e recolhimento de presos provisórios (que ainda não foram julgados), a assessoria não esclarece se o número de equipamentos é suficiente ou se abarca todas as unidades.

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Sobre as fiscalizações, disse que a Ouvidoria Nacional de Serviços Penais faz visitas periódicas “que são observados a legalidade e os normativos que regulamentam as visitas nas unidades prisionais” e também recebe denúncias plataforma Fala.BR, fazendo o encaminhamento ao Ministério Público e às secretarias de Administração Penitenciária dos estados, com prazo de 20 dias para resposta. “Cumpre esclarecer que a revista íntima não se confunde com a revista vexatória. A revista íntima é autorizada quando houver necessidade calcada na preservação da segurança dos presos, do visitante e dos servidores da unidade prisional”, diz a nota.

O que diz a Secretaria de Administração Penitenciária de SP

A reportagem questionou a pasta sobre as denúncias relacionadas à Penitenciária de Lucélia e também sobre a quantidade de equipamentos nas unidades e o treinamento para operá-las. A assessoria encaminhou a seguinte nota:

A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) informa que as denúncias são improcedentes. A Penitenciária de Lucélia é equipada com scanner corporal, assim como outras unidades prisionais da SAP. O objetivo do aparelho é justamente evitar que haja contato físico de agentes com familiares de presos. Caso seja constatada  qualquer atitude vexatória por parte dos servidores da SAP, o canal para denúncias são a Ouvidoria da SAP e a Corregedoria Administrativa do Sistema Penitenciário, no www.sap.sp.gov.br

*Os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas que temem represálias.

**Reportagem foi atualizada às 19h10, de 16/3/2022, para incluir resposta da SAP.

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