Fora das grades, reféns do cárcere

    Familiares de presos sofrem com interiorização das unidades prisionais em SP e com as violências, muitas vezes naturalizadas, do sistema carcerário

    SP: 78 das unidades prisionais paulistas estão fora dos grandes centros do estado | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

    O ano de 2019 começou com recorde de denúncias de tortura em presídios do estado de São Paulo. Até o dia 12 de fevereiro, 73 casos foram registrados, 66 apenas no Centro de Detenção Provisória 2, em Osasco, na Grande São Paulo. A recordista de casos na Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) até então era a Penitenciária 1, de Potim, no interior do estado, com 20 casos notificados em 2013. Em apenas 43 dias o número de denúncias superou a metade dos registros ao longo de todo o ano de 2018, quando aconteceram 142 casos.

    Além disso, há indícios de que a tortura seja um crime subnotificado, já que diferentes pesquisas apresentam números maiores do que os registrados pela SAP. Segundo um relatório da Pastoral Carcerária, no ano passado 175 pessoas foram torturadas em presídios brasileiros.

    Os casos descobertos pela Pastoral foram denunciados à Defensoria Pública da União, ao Judiciário e ao Ministério Público Federal. No entanto, apenas 12% dos casos tiveram inquérito policial instaurado para realização de uma investigação. A proposta da Justiça é a indenização por parte do poder público em 0,5% para todos os casos denunciados.

    Segundo dados da pesquisa Núcleo Especializado em Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública de São Paulo, 45% dos detentos no estado já foram agredidos pelo Grupo de Intervenção Rápida (GIR), conforme apontou reportagem da Ponte publicada em fevereiro do ano passado. O batalhão foi criado em 2004 para conter motins e rebeliões. Os agentes utilizam armas, escudos, bomba de efeito moral, gás pimenta e cães para entrar nas penitenciárias. Desde agosto de 2016, presos de 21 das 29 unidades prisionais inspecionadas pelo Nesc relataram agressões pelo GIR.

    Apesar disso, em janeiro, o governador João Doria (PSDB) vetou integralmente a lei que criaria um órgão para vistoriar as unidades prisionais e apurar casos de tortura. Uma lei federal sancionada em 2013 pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) já previa a criação desse comitê, que existe em outros estados brasileiros. Doria alegou inconstitucionalidade. A nota enviada pela assessoria do Palácio do Governo, à época para a Ponte, apontava que “a proposta do deputado previa que o Executivo sancionasse a criação do Comitê Estadual que funcionaria dentro da Assembleia Legislativa, com criação de cargos e custos orçamentários, ferindo o princípio da separação de poderes”.

    Como explica o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça, Luís Geraldo Lanfredi “o sistema penitenciário brasileiro apresenta um quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas”.

    Segundo a LEP (Lei de Execução Penal), o preso, com ou sem condenação, tem direito a um tratamento digno e de não sofrer violência física e moral. A legislação prevê direito à alimentação, vestimentas, higiene, visitas de familiares e amigos, de escrever e receber cartas, ser chamado pelo próprio nome, ter trabalho remunerado, ter acesso à assistência médica, educacional, social, religiosa e judiciária fornecidas pelo Estado.

    Segundo o levantamento de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2016, existem 726.712 pessoas privadas de liberdade no Brasil, das quais cerca de 292,4 mil (40,2%) ainda não foram julgadas. No entanto, o número de vagas em todo o país é de 368 mil, o que abrigaria menos da metade das pessoas presas. Assim, para cada 10 vagas há 19 presos, ou seja, a taxa de ocupação é de 197,4%. No Brasil, a cada 100 mil habitantes, 352,6 estão presos.

    Já em São Paulo, a cada 100 mil habitantes, 536,5 estão dentro do sistema prisional. O estado tem a quarta maior taxa de aprisionamento do país, já que oferece 131,1 mil vagas para 240 mil presos – 75,8 mil sem condenação -, ou seja, uma taxa de ocupação de 183%. O segundo estado com maior população prisional é Minas Gerais com cerca de 68,3 mil pessoas.

    No final de 2012, uma comissão de juristas entregou ao Senado Federal um projeto (PLS 513/2013) para combater a superlotação dos presídios. A ideia é revisar as penas e as normas de entrada e saída de presos das penitenciárias, criando penas alternativas (como serviços comunitários e uso de tornozeleira eletrônica), determinar que as celas tenham capacidade para até 8 pessoas e todas venham equipadas com camas, vaso sanitário e lavatório. Além disso, prevê a antecipação da liberdade para detentos mais próximos do fim da pena, entre outras medidas. O Senado já aprovou a reforma geral na LEP. O projeto espera a apreciação pela Câmara dos Deputados desde 2017 e tramita em regime de prioridade.

    Enquanto isso, os detentos continuam em situação precária, como relata a presidente da Associação de Amigos(as) e Familiares de Presos(as) (AMPARAR), Maria Railda Silva. “A situação das pessoas presas de forma geral é algo alarmante e desumano. Estão em um local que os priva dos direitos básicos para sobrevivência, como alimentação e água, que são racionados. A pessoa presa não tem o direito de beber, sequer quando tem vontade. Quanto à comida, não chega a 200 gramas cada refeição, e às vezes já chega azeda”.

    O projeto Cartas do Cárcere reuniu e sistematizou 8.818 cartas enviadas por presos à Ouvidoria Nacional dos Serviços Penais (ONSP) no ano de 2016. As correspondências endereçadas às instituições públicas, entre elas 3.017 apresentam relatos com solicitações e denúncias. As queixas mais comuns são a falta de assistência jurídica, falta de acesso à saúde, educação e assistência social e descumprimento do Código de Processo Penal; 8% das cartas apresentam problemas de saúde: 128 casos de HIV, 46 de depressão e 17 de casos odontológicos, além de relatos de hepatite C, câncer, diabetes, hipertensão, tuberculose e problemas de saúde mental. Em quase 600, há queixas de superlotação.

    Interiorização dos presídios

    Um dos direitos dos detentos, previsto pela LEP, é o convívio familiar através das visitas. Esse direito, no entanto, está sendo prejudicado pela forma como o sistema prisional está estruturado, principalmente no estado de São Paulo. A maioria das penitenciárias estão no interior: de 86 presídios do estado, apenas 8 estão na capital e na região metropolitana de São Paulo, segundo dados do site da SAP. Assim, muitas das pessoas que cometem crimes em grandes centros são encaminhadas para longe de suas famílias.

    Apenas em 1997, um decreto estabeleceu a criação de 21 novas unidades prisionais em cidades do interior. A justificativa na época foi diminuir a tensão no centro urbano e resolver o problema da superlotação.

    Essa distribuição contribui para que a LEP, que estabelece que comarcas (divisão territorial do Judiciário) tenham unidades prisionais e cadeias públicas próximas ao meio social do preso, seja desrespeitada. Como explica Luís Geraldo Lanfredi, coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça, a “falta de unidade prisional na cidade do preso, na maioria das vezes, obriga a gestão prisional e alguns juízes a transferirem presos para locais distantes de suas residências”. O coordenador indica, no entanto, que essa não deveria ser uma prática comum, pois leva os presos a suprir as necessidades do sistema prisional de forma ilegal. Além disso, o fluxo penitenciário em direção ao interior trouxe diversos efeitos para os familiares de detentos.

    Nesse cenário, segundo Lanfredi, a ressocialização se torna muito mais difícil. Ele citou pesquisas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) entre 2009 e 2014 que “revelam o cenário desolador do sistema carcerário e as violências de direitos humanos a que estão submetidos presos, familiares de presos e agentes prisionais, evidenciando que ainda há muito o que fazer para se chegar, ao menos, aos parâmetros estabelecidos pela LEP”.

    Família no cárcere

    Com o encarceramento, o sustento financeiro da família, muitas vezes, fica comprometido, além de surgirem gastos para manter a pessoa na penitenciária, como despesas com advogado, alimentação e higiene pessoal, e o custo da própria visita.

    Por causa disso, muitas famílias precisam de subsídios como o auxílio-reclusão, que foi criado em 1991. Esse é um direito que os apenados têm, caso comprovem que antes de serem presos exerciam atividade remunerada e contribuíam com o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Além disso, é necessário que comprovem sua baixa-renda. O auxílio-reclusão não tem um valor fixo, varia de acordo com a contribuição de cada segurado e não aumenta de acordo com o número de dependentes.

    Além disso, há desgaste e marcas emocionais para os que ficam do lado de fora da prisão. Parentes de presos, inclusive as crianças, enfrentam o preconceito da sociedade. “Os filhos sofrem estigmas dentro das escolas municipais e estaduais, sofrem bullying, também sofrem estigmas nas unidades de saúde”, conta Railda. Os familiares de presos reincidentes são ainda mais marginalizados, pois são vistos como incapazes de reinserir a pessoa na sociedade, de acolher e cuidar dela.

    Ainda que se supere a questão do julgamento da sociedade e a distância, há um outro obstáculo que são as inúmeras e rígidas regras para manter o contato. Uma das condições para entrar nas unidades penitenciárias é a revista, que pode ser realizada tanto em bens materiais quanto nos próprios visitantes.  “A revista aos familiares, contudo, deve ser feita, preferencialmente, com uso de tecnologias não invasivas [como body scanners e detectores de metal], mas, sobretudo, de maneira não vexatória”, explica Lanfredi.

    A visita é um direito tanto do preso quanto da família. Isso porque, segundo a Constituição, a punição é intransferível e deve recair apenas sobre o presidiário. Assim, se a família é impossibilitada de ver a pessoa, os parentes também estão sendo punidos.

    ‘Desde 2016, só não visitei meu filho duas vezes

    Todos os domingos, religiosamente, Marta viaja de São Paulo para a Penitenciária Mauro Moura Albuquerque, em Franco da Rocha. Seu filho, João, de 35 anos, está preso por tráfico de drogas e corrupção. Ele é réu primário, foi preso em 22 de setembro de 2016 com 32g de crack e foi condenado à 5 anos de reclusão. “Quando ele foi preso, fiquei muito triste, depressiva, chorei muito. Confesso que fiquei perdida, não tinha vontade de viver, não sabia o que fazer”, lembra Marta.

    João era usuário de drogas há anos e para sustentar o vício começou a traficar quando passou a usar crack. Um dia, quando estava se encaminhando para o ponto de tráfico, foi abordado por policiais e, para não ser preso, ofereceu R$ 1.500. Assim, foi levado para a delegacia. Durante dois anos, João ficou detido no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Pinheiros, em São Paulo. O CDP era próximo de sua casa, mas mesmo assim Marta tinha que acordar quatro horas da manhã para ficar na fila e conseguir ver o filho às três horas da tarde.

    Para Marta, o CDP foi um dos piores momentos da prisão de seu filho. Além de não ter um local para guardar seus objetos pessoais e enfrentar uma fila quilométrica, durante muitas visitas, o scanner, que serve para realizar a revista de forma menos invasiva, quebrava frequentemente e, por causa disso, todas as mulheres tinham que passar pela revista íntima. “A gente fica pelada. Elas têm uma luva com que examinam a nossa calcinha. Aí a gente abaixa e vai para frente e para trás três vezes. E se elas não ficarem satisfeitas, usam um espelho para ver se não temos drogas na vagina. É humilhante essa revista íntima, humilhante. Aí tem uma cadeira de metal, que eu não sei para o que serve, mas temos que sentar lá, peladas. E não importa a idade, pode ter 18 ou 60, se não fizer, não entra”. Esse procedimento, no entanto, é proibido por lei no estado de São Paulo desde 2014.

    Outro problema do CDP de Pinheiros, eram as condições estruturais e de saúde. João teve três dentes arrancados porque o local não tem tratamento adequado e, por isso, sentia muita dor. Para conseguir medicamentos, Marta precisou procurar a Defensoria Pública diversas vezes e escrever uma carta ao juiz da comarca pedindo a liberação do antibiótico. Só então, João teve acesso ao tratamento.

    Foi também no CDP Pinheiros que a mãe ficou sem notícias do filho em 2017. Devido às más condições do local, das constantes humilhações sofridas pelos familiares durante as visitas e a superlotação (com capacidade para 521 presos, havia 1.383 aprisionados na unidade, segundo a SAP) houve uma rebelião no dia 24 de julho.

    No entanto, os familiares não puderam realizar visitas durante 15 dias, nos quais, segundo Marta, o GIR ocupou o CDP. Eles utilizaram balas de borracha, jogaram os pertences dos detentos fora e racionaram água e comida. Durante este período, os familiares não receberam notícias de seus parentes. Foi na rebelião que Marta conheceu a AMPARAR. A Associação a ajudou a conseguir notícias do filho e a contratar um advogado, que ela não tinha como pagar sozinha.

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    Presos em motim queimam colchões no pátio do Centro de Detenção Provisória (CDP) da região de Pinheiros, zona oeste, em julho de 2017 | Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

    No ano seguinte, João, já condenado, foi transferido para a Penitenciária de Franco da Rocha. Para vê-lo, Marta sai de casa todo domingo às 5h, vai de ônibus até o metrô, depois viaja em dois trens até Franco da Rocha, onde ainda precisa embarcar em ônibus rodoviário. Entre viagem, alimentação, produtos de higiene, roupas e remédio para o filho, ela gasta R$ 200 por semana. “Isso quando o GIR não joga tudo fora, que aí temos que gastar ainda mais e não tenho ajuda nenhuma. Eu vivo de vendas, vendo planos de saúde e é isso que me sustenta e sustenta o meu filho”, conta ela.

    Marta é a única a visitar João e sempre leva fotos dos três filhos dele, Vitor, Marcos e Caio, e ajuda a criar as crianças. Ele não via os filhos desde que foi preso, mas na saída temporária do Dia das Mães a família se reuniu novamente. “Ele tem apoio, uma família que o ama e ele sentiu isso quando saiu a última vez. A família toda estava reunida para recebê-lo, todo mundo chorou. Eu tenho muita fé em Deus, como mãe tenho certeza que ele vai sair melhor”, afirma.

    Entretanto, ela não acredita que seja a penitenciária que vá ressocializá-lo. “O sistema penitenciário do nosso país está falido. Praticamente, quem sustenta o preso dentro dos presídios é a família. O sistema carcerário trata eles como se fossem piores do que animais, assim eles não vão se recuperar nunca”, pondera a religiosa Marta, que acredita que se o filho se aproximasse mais do espiritismo poderia se recuperar. Sua esperança é que ele volte a estudar e termine uma das faculdades, de administração ou tecnologia da informação, que abandonou por causa da dependência química.

    ‘Me mudei porque não aguento mais viajar

    Leila* já perdeu a conta de quantas unidades prisionais do estado de São Paulo conheceu. Foram no mínimo 15: Avaré, Iaras, Pacaembu, Valparaíso, Mongaguá, Samaritá, Hortolândia, Lavínia, Presidente Venceslau, Marília, Bauru, Mauá, Pinheiros, Parelheiros e Mirandópolis. Seu marido já foi preso por assalto a mão armada, tentativa de latrocínio e tráfico de drogas. A última prisão foi em junho de 2017, em Mauá, mas no final de 2018 foi transferido para Mirandópolis.

    Em março de 2019, Leila, que vivia em Carapicuíba, decidiu se mudar, já que não tinha mais como custear as viagens para as visitas até a nova penitenciária, a 572 quilômetros de distância da Grande São Paulo. Somente as passagens dela e do filho de 12 anos, Lucas, custam R$ 320. Além disso, ela precisava pagar pousada e a comida que levava para o marido, assim, o valor total ficava próximo a um aluguel na cidade. “Depois eles falam que gastam com preso, quem gasta é a gente”, desabafa.

    A viagem também trazia outros problemas. Nas estradas, às vezes, ela encontrava blitz, era parada, revistada e seus pertences eram revirados. Os policiais perguntavam por qual artigo seu marido está preso e se ela tinha passagem. “É uma humilhação, porque eles te olham como se você fosse a pior da pior espécie. É complicado. Eles estão presos e a gente paga pelo erro deles, porque passamos por isso aqui fora também”, lembra Leila.

    Antes ela fazia essa viagem a cada 15 dias. Agora que se mudou com seu filho para Mirandópolis, consegue visitar o marido toda semana. E essa não é a primeira vez que ela faz isso. Quando o marido ficou preso em Avaré, durante oito anos, Leila morou cinco anos na cidade com os quatro filhos pequenos. “Parece que é para sacrificar mesmo as famílias. Na minha opinião, eles tinham que colocar quem é da capital em um presídio na capital ou próximo, quem é do interior em um presídio do interior, mas não”.

    Na nova cidade, Leila já matriculou Lucas em uma escola e vende salgados para sustentar a família. Ela também aluga sua casa para mulheres que vêm visitar familiares na penitenciária e recebe uma pequena quantia do Bolsa Família. Com isso, completa a renda familiar. “Se eu depender do Estado, passo fome”.

    Seus três outros filhos já são adultos. Os dois mais velhos, Eduardo e Laura, são de um relacionamento anterior. Felipe e Lucas são filhos do atual casamento. Laura é formada em gestão financeira, Eduardo trabalha em um supermercado, Felipe vai começar a trabalhar e Lucas quer ser jogador de futebol. Leila tinha voltado a estudar, mas não teve condições de continuar a pagar o curso de pedagogia. “É muito difícil ser pai e mãe, não só para eles, como para mim também, porque você tem que mostrar o que é o certo e o que é o errado, sozinha. Sofri muito e eles também sofreram muito junto comigo”, lembra.

    Quando eram menores, Eduardo e Laura visitavam o padrasto, mas a SAP editou seu Regimento Interno em 2010 e enteados passaram a não ser mais permitidos nas visitas, apenas parentes até segundo grau, cônjuges e companheiros. Lucas visita o pai toda a semana junto com a sua mãe. Para isso, é preciso seguir normas restritas: top sem ferro, camiseta, legging e chinelo. Não pode ter nada de metal. O cabelo precisa ficar solto e para passar no scanner é necessário retirar os chinelos e segurá-los nas mãos. As regras são as mesmas para crianças e adultos.

    Leila e o companheiro se conhecem há 23 anos e ele está preso a aproximadamente 21. Sua última condenação é de 11 anos e 5 meses. Ela não tem contato com a família do marido e a família dela não sabe que ele está preso novamente, apenas uma irmã e um tio mais próximos. “Não me sinto bem falando sobre, porque se fosse a primeira vez que meu marido tivesse sido preso, mas essa não é. Me sinto constrangida, então não falo”.

    Depois de tantas mudanças, Leila não quer sair de Mirandópolis. Seu sonho é ter uma pensão e ajudar as famílias que vêm visitar os presos, porque ela sabe o quanto é caro e como é importante manter o contato com um familiar preso. Ela também tem esperanças de que o marido vá mudar, ainda mais depois que ele perdeu a mãe e não pôde se despedir.

    “Se eu falar que não gosto dele, estou mentindo. Gosto muito dele, respeito ele, mas quero o melhor para nossa família, que tenhamos uma vida digna. Eu só quero ser feliz, ter uma vida normal, esse é o meu sonho. Fico triste de ver ele lá, fico triste vendo meu filho mais novo indo lá visitar, com os olhos cheio d’água deixando o pai lá. Não tem como ser feliz tendo alguém que você ama naquele lugar”.

    “Você tem que decidir: ou visita ou mantém”

    Fátima* teve três filhos: dois foram assassinados e um está preso. Seu filho mais velho, Pedro*, morreu em 2000 com 17 anos quando foi baleado por um policial aposentado durante um assalto. E Matheus*, seu filho mais novo, foi assassinado em 2003 também com 17 anos, 54 dias após sair da Fundação Casa, a antiga FEBEM. Seu único filho ainda vivo é Edgar*, 35 anos, que cumpre pena na penitenciária de Lavínia por tráfico de drogas. Ele foi detido em junho de 2011 em um ponto de tráfico.

    “É muito difícil para a família, principalmente para a mãe, ter o seu filho preso e muito mais difícil são os custos. Porque quando ele está próximo de casa, você ainda consegue fazer a visita, levar comida no final de semana, enviar o jumbo, mas a partir do momento que transferem ele para o interior, o chamado ‘Fundão’, aí começa a dificultar para a família”, conta Fátima, que não consegue visitar o filho há cinco anos pelos custos da viagem.

    Ela mora na capital paulista, a 588 quilômetros de Lavínia. A última vez que eles se viram foi no CDP de Santo André. “É muito triste lembrar a última vez que eu peguei na mão do meu filho, dói muito”.

    Na semana seguinte, Fátima preparou a comida para levar para Edgar, acordou de madrugada e foi para fila de visitas do CDP. Mas quando entregou a carteirinha para entrar, foi informada de que seu filho tinha sido transferido. Até chegar em Lavínia, ele passou por outras quatro penitenciárias.

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    53,9% dos detentos brasileiros têm entre 18 e 29 anos | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

    Ela preferiu sustentar Edgar no presídio do que visitá-lo. Ela envia um jumbo por mês e dinheiro para ele gastar na loja da unidade. Com tudo, ela gasta R$ 600 mensalmente. Por suas contas, se ela fosse visitá-lo, gastaria R$ 1000. Além disso, Fátima sustenta seu neto de quase dois anos. Edgar só viu o filho uma vez, quando ele tinha três meses. Desde então, acompanha o crescimento dele por fotos. A mãe da criança está desempregada, então a avó compra roupas e alimentação, assim como mantém sozinha a própria casa porque seu marido também está desempregado.

    “E quando a família não vai visitar, as pessoas até pensam que a família abandonou, mas não é abandono, é a condição financeira mesmo. Porque nós somos pobres, periféricos, nossas condições já são precárias e piora ainda mais com os gastos da cadeia, que são muito grandes”. Fátima conta ainda que no presídio em que seu filho está, a água e comida estão sendo racionadas. A água, por exemplo, é liberada apenas duas ou três vezes por dia.

    Mas o maior problema em Lavínia é a violência e a tortura contra os detentos. Segundo os relatos de Edgar nas cartas que troca com a mãe frequentemente, quando o GIR entra dentro do presídio, os itens pessoais são destruídos e é comum os agentes espancarem os presos. Em menção aos dois únicos medicamentos disponíveis nas unidades prisionais, o paracetamol e o diclofenaco, os agentes utilizam barras de madeira com nome dos remédios. “Eles estão sofrendo torturas, principalmente de dois, três anos para cá. Antes não se ouvia tanto, não tinha isso, mas eles estão sendo torturados mesmo. Aquilo é pior do que holocausto, porque holocausto as pessoas assumiram, mas o que está acontecendo dentro do sistema prisional ninguém assume. E ainda quem morre, sai como errado”.

    Fátima conta que seu filho já foi vítima de violência nas quatro unidades prisionais que passou. Ela inclusive fez denúncias à Defensoria Pública e ao Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo). Segundo sua mãe, sempre que ele denunciava os maus tratos, Edgar era punido com um mês de solitária na Penitenciária Presidente Venceslau I e era transferido. “É uma coisa desumana. Não sei como o ser humano é capaz de tanta crueldade com outro ser humano”, diz Fátima.

    Agora, Edgard não faz mais nenhuma denúncia e está próximo da liberdade. Sua mãe espera que até o final de junho do ano que vem ele volte para casa. Os planos dele são estudar psicologia ou serviço social e lutar contra as violências do sistema, já que quando estava crescendo não teve oportunidades. “São os pais da periferia que lutam pelos seus filhos, tentando fazer com que eles não sofram. Tem algo de muito errado nesse país. Cadê as prioridades? Cadê a garantia de direitos?”, questiona.

    Fátima faz questão de lembrar que entende tudo o que seu filho fez de errado, que sabe a gravidade disso. Mas que o erro dele não justifica as violências pelas quais ele passou dentro dos presídios. “Alguém tem que pagar pelas torturas, alguém tem que pagar pelos danos à vida de quem está preso e à vida da família inteira. Porque é um mal que atinge a família inteira. Nós, mães, entendemos, nos colocamos no lugar da vítima, mas a tortura, ninguém aceita”.

    *Até o fechamento desta reportagem a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) do estado de São Paulo não respondeu aos questionamentos sobre as denúncias de violência, falta de água, comida e a utilização da revista íntima relatadas aqui.

    ** Os nomes das pessoas presas e suas famílias foram trocados para garantir a segurança contra represálias.

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