‘Gestão da Palmares está em sintonia com a necropolítica do governo’, diz advogado autor de ação contra exclusão de livros

Nesta quarta-feira (23/6) juiz federal Erik Navarro Wolkart decidiu que a Fundação Palmares está proibida de se desfazer de acervo e definiu multa de R$ 500 por item doado; ‘a Fundação Palmares é fruto da luta do povo negro’, afirma advogado

O advogado Paulo Henrique Lima, que entrou com ação para impedir expurgo de obras da Fundação Palmares | Foto: Reprodução

Uma ação popular movida pelo advogado e mestrando em Direito Penal na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), Paulo Henrique Lima, 32 anos, do Coletivo Direito Popular, em 14 de junho deste ano foi atendida nesta quarta-feira (23/6) em uma decisão liminar do juiz federal Erik Navarro Wolkart. A ação pedia a proibição da exclusão de parte do acervo bibliográfico da Fundação Cultural Palmares. 

A decisão do juiz federal, além de proibir a doação de obras, determina o pagamento de R$ 500 de multa por cada item doado em descumprimento à decisão. Réu da ação, o presidente da Palmares, Sérgio Camargo, foi imediatamente impedido de “excluir ou danificar obras ou itens do acervo da Fundação Cultural Palmares (livros, folhetos, artigos, obras de arte, etc), sob pena de responsabilização civil, administrativa e criminal pelos danos produzidos ao patrimônio histórico-cultural”. Camargo tem 15 dias para se manifestar. 

O juiz entendeu que a “desmobilização de parcela relevante do acervo da mencionada entidade deva passar por uma discussão mais ampla e plural, de acordo com a finalidade da própria Fundação e das comunidades que ela visa proteger e representar, sendo decisiva a participação de múltiplos atores, sob pena de lesão irreparável aos valores das comunidades negras e da sociedade brasileira como um todo”. 

Em entrevista à Ponte, o advogado Paulo Henrique Lima, que também é pesquisador na UERJ dos processos de luta e resistência dos pretos e pretas no Brasil, explicou que a ideia da ação partiu do acesso ao relatório da Fundação Palmares: “Retrato do Acervo: A Doutrinação Marxista”. Logo Lima e o Coletivo Direito Popular se prontificaram a contestar na justiça a possibilidade de exclusão dos livros. “Sou preto e todo preto sabe que a luta não é construída sozinha. Quando tive acesso ao relatório pela professora Vanessa Berner, fiquei muito preocupado com o potencial destrutivo dessa ação, inclusive com o efeito cascata que poderia autorizar a ‘queima de livros’ nas demais bibliotecas do país”, diz.

A partir dessa preocupação, a ação foi ajuizada. “Tenho certeza que ela expressa a indignação de milhares de pessoas pelo país que reconhecem na ciência, na história e na cultura importantes pilares de uma sociedade plural e democrática. Não são apenas fundamentos jurídicos que estruturam esta ação. Como ensina a filosofia do Ubuntu: ‘Eu sou porque nós somos’. Por isso, essa vitória é coletiva, é de todos que condenam as estruturas racistas do Estado Brasileiro”, afirma Lima. 

Em publicação no Twitter, Sérgio Camargo afirmou que a Fundação Cultural Palmares entrará com recurso contra a liminar. “A Palmares apresentará recurso contra um liminar. Caso seja vitoriosa, fará a doação das obras marxistas, bandidólatras, de perversão sexual e de bizzarias. Descobertas após triagem no acervo, tais obras contrariam e corrompem a missão institucional da Fundação, definida por lei”.

Segundo a decisão de Wolkart, a Lei 7.668/88 diz que a Fundação Palmares foi criada “com a finalidade de promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”.

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Na ação, Lima argumenta que “o réu busca suprimir material histórico e cultural para impedir que cidadãos brasileiros possam ter acesso a este patrimônio cultural”. Ele também afirma que as tentativas de se desfazer de obras do acervo ferem artigo 5º da Constituição Federal, “que expressamente veda a censura de atividade intelectual e artística”. 

O presidente da Fundação Palmares mostra o relatório “Retrato do Acervo: A Doutrinação Marxista” | Foto: Reprodução Twitter

Também é fundamentado na ação do advogado que “o ato que se busca impugnar nesta ação popular não se trata de uma posição conservadora, liberal, de direita, de esquerda, radical ou seja lá o que for. Mas sim, um ataque insano contra o patrimônio histórico que esta Fundação acumulou por décadas. É nitidamente uma censura, uma violação à constituição, à democracia e busca apagar parte da história de nosso país. Por isso, o réu precisa ser impedido de praticar este ato”.

Para Paulo Henrique Lima, a censura promovida por Camargo poderia impactar a memória das futuras gerações da população brasileira. “Nós vivemos em um país forjado pela escravidão, uma ferida colonial que ainda sangra nas favelas, nos presídios, nas ruas e em todos os ‘não lugares’ para onde o preto foi e permanece sendo empurrado. Conhecer os diversos olhares sobre a história, sobre a política e sobre a formação de nossa sociedade, para além de ser fundamental para a reafirmação dos valores democráticos e republicanos, é a única maneira de garantir a superação dessas mazelas impostas ao povo preto em uma sociedade tão desigual e estruturada pelo racismo”.

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Por isso, essa vitória parcial, para ele guarda um peso simbólico para o movimento negro. “É uma conquista de toda a sociedade brasileira, na medida em que reafirma os direitos constitucionalmente previstos que afastam o perigo de uma história única. Infelizmente, o papel cumprido pela atual gestão da Fundação Palmares está em sintonia com o projeto necropolítico do Governo Federal. São negacionistas: por um lado, negam as vacinas, as medidas sanitárias e todas as descobertas científicas nas áreas biológicas, por outro, negam o conhecimento produzido pelas Ciências Humanas”.

Lima ressalta que a censura faz parte de governos autoritários. “No primeiro caso, o negacionismo gera a morte física de milhares de brasileiros e, no segundo, ao tentarem apagar a história de luta e resistência, geram a morte simbólica de outros milhares. A morte e a censura estão irmanadas e sempre foram a tônica de governos autoritários”. 

A Fundação Palmares é fruto da “luta do povo negro”, diz. “É fruto dos sonhos de liberdade e emancipação dos nossos ancestrais. Neste sentido, entendo que o expurgo dos livros e o ataque ao acervo são, sobretudo, a expressão do projeto político de um governo que debocha da morte dos brasileiros, mortes físicas e simbólicas. Um projeto de destruição”.

Outras ações

Assim como o advogado da UERJ, em 16 de junho a Coalizão Negra por Direitos ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP) na Justiça Federal de São Paulo contra o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo. A entidade, que reúne mais de 200 organizações do movimento negro, também quer impedir a exclusão de obras do Acervo da Biblioteca da Fundação.

No documento, a Coalizão declara o presidente da Fundação, “promove ações deliberadas que podem ensejar a perda irreversível e imensurável do patrimônio cultural e histórico da população negra” e “que a honra e a dignidade da população afro-brasileira e também de patrimônio público e social serão violados caso obras sejam retiradas do acervo”.

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No dia 18 deste mês, outra ação na Justiça Federal contra Camargo foi ajuizada pelo  deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ). Assim como ele, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) também entrou com uma ação contra o presidente da Fundação Cultural Palmares. 

Em resposta Camargo tuitou: “Associação de juízes, na imensa maioria brancos, quer me ensinar como deve ser um ‘bom preto’. Resumindo: esquerdista e submisso à cartilha. Isso é tutela ideológica! A missão institucional da Palmares é Cultural! Não somos uma SENZALA da esquerda! Negros são livres!”

Outro lado

A Ponte questionou a Fundação Palmares e o Ministério Público Federal sobre as acusações contra Sérgio Camargo, mas não obteve respostas até o momento.

A Justiça Federal de São Paulo afirmou que até o momento não há nenhuma decisão de mérito.

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