Goyases (GO): Uma escola abafada em pólvora

    O dia em que uma aula de Ciências do 8º ano terminou em tiros disparados por um estudante de 14 anos

    Área em frente ao colégio permaneceu interditada após o ataque | Foto: Yago Sales

    O policial de cabelos ralos e completamente brancos, 110 quilos distribuídos em seus 1,90 de altura, sessenta anos e alguma coisa, distintivo pendurado no pescoço, voz firme, instruía uma mulher que foi ao 23° Distrito Policial, na rua Planalto, bem perto do Colégio Goyases, em Goiânia, quando irromperam pela porta da unidade duas meninas, em pânico.

    Era sexta-feira, dia 20 de outubro de 2017. Dos 30 estudantes matriculados no 8° ano, apenas uma menina não compareceu à aula. Ansiosos para o dia seguinte, como anunciava uma faixa no portão da escola a data da Mostra de Ciências, os estudantes ajustavam os últimos detalhes para apresentarem seus trabalhos.

    Divididos em seis grupos pela professora, a turma teria de desenvolver um trabalho que mostrasse seu potencial científico, com experimentos, alguns deles aprendidos, como uma aluna revelou, no Google. “Meu grupo tirou de um programa de televisão, no YouTube”, conseguiu dizer, depois de um abraço apertado em outro sobrevivente, em frente ao Hospital de Urgências de Goiânia (HUGO), para onde foram levadas três das vítimas do tiroteio: Isadora de Morais, Marcela Rocha Macedo e Hyago Marques, de 14 anos, que recebeu alta.

    As duas meninas têm treze anos. A primeira, corpo acanhado, os olhos azuis afogados em lágrimas, cabelo loiro natural em balburdia e a outra, morena, olhos castanhos, pequenos, descalça – a rasteirinha de um dos pés ficou na sala e a outra na escada, ou no pátio, ou no percurso de cem metros entre a escola e a delegacia. Não se lembra. No DP, as duas não conseguiam dizer nada mais que frases com palavras soltas que não sairiam da boca de brasileiros estupefatos nos últimos dias: “tiros”, “sala”, “sangue”, “arma”.

    Outros policiais – um deles averiguou a pistola no coldre – correram para o Colégio e toparam com meninos e meninas em pânico, descalços, dois deles alvejados, sangrando, esparramados pelas ruas, calçadas, toparam com senhoras que foram à porta assuntar aquela gritaria, e pela loja de doces ao lado do Colégio.

    O policial, que pediu anonimato, não escutou os estampidos da .40 que o estudante pegou escondido da mãe. Corpulento, o policial civil ficou para trás. Sabia que algo de muito sério ocorria na escola “tranquila, de alunos muito esforçados e nada bagunceiros”. Deveria fazer alguma coisa e se esforçou ao máximo. Ofegante, a passos largos, arma em punho, se desviou de estudantes – dezenas deles, uniformizados, rostos alarmados, chorosos, abraçados.

    Avistou uma viatura da PM goiana, com portas abertas, e o rádio falando qualquer coisa, vazia. Os PMs, conforme contou a coordenadora da Goyazes Simone Maulaz Elteto ao Fantástico, Rede Globo, neste domingo (22/10), pediam para que o estudante, de 13 anos, que atirou e acertou seis colegas – dois morreram na hora – deitasse no chão.

    O policial ainda conseguiu ver Simone, trêmula, com o rosto afundado num drama roteirizado pelo acaso, da qual se tornaria uma das personagens principais. “Eu estava na biblioteca. Eu ouvi o primeiro disparo, quando eu já corri para ver o que estava acontecendo. Crianças estavam correndo, descendo as escadas e gritando que um aluno tinha ficado louco e estava atirando em todo mundo”, ela contou ao repórter Marcelo Canellas.

    Dois alunos morreram e quatro ficaram feridos por conta dos disparos | Foto: Yago Sales

    A Ponte esteve duas vezes na delegacia, mas os policiais, sob ordem de não darem entrevistas, contaram entre telefonemas, atendimento a mulheres em choro com marido bêbado em casa ameaçando, vítimas de roubo e uma mulher que foi esclarecer que não está desaparecida, como um telefonema à casa da mãe informava, o que viram e escutaram naquela sexta-feira quente. Goiânia esturricava pelo calor. “Uma mocinha estava com as mãos no rosto, assim”, lembrou outro policial, antes de atender ao telefone da delegacia. “Ela chorava muito, tadinha.”

    Os disparos do menino, filho de dois policiais militares que a cúpula da PM goiana não divulgou os nomes, nem confirmou patente ou a qual Batalhão pertencem, não apenas perfuraram os corpos de colegas de turma, sepultando o futuro, mas também injetou na memória de cada um dos alunos do 8° ano a pólvora do medo.

    Dos mais risonhos, aos mais calados, os da primeira fila, sempre dedo em riste, resposta na ponta da língua, aos do fundão, aos reservados, os pinceis, os cadernos, os livros, as bolinhas de papel na lixeira, as canetas, lápis e borrachas, tudo se metamorfoseou em disparo de arma de fogo engatilhada por um deles. Sim, o colega que dias atrás discutia um trabalho na casa de Hyago Marques, com espinhas pulando do rosto, e João Vitor Gomes, um dos poucos amigos do atirador, que não resistiu ao tiro que lhe acertou a cabeça.

    O menino sem nome, de 14 anos, que os sobreviventes pronunciam como um sopro, como se dizê-lo fosse transgressão imperdoável, é adjetivado no tribunal da internet como “louco”, “assassino”, “monstrinho”. Os que viram e correram ante aos disparos, foram treinados pela televisão a lhe dar um adjetivo, sem revelar o nome. “Não pode falar o nome dele, fala a-ti-ra-dor”, ensinou uma repórter, antes de gravar, sob as árvores do terreiro do Hospital de Urgências, quando Hyago recebeu alta, no final de semana.

    O estudante que atirou nos colegas, cabisbaixo, sem voz, silenciado, foi encaminhado, com uma camiseta lhe tampando o rosto, para um centro de internação na tarde desta segunda-feira (23/10). “O adolescente foi encaminhado para um centro de internação e agora está sob a égide do Poder Judiciário. A partir de agora, o juiz definirá o período de internação”, disse o titular da Depai, delegado Luiz Gonzaga Júnior.

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