PMs prenderam um ator de peça que critica violência policial. Depois, segundo artistas, ameaçaram público e ordenaram que apagassem imagens dos celulares
Uma série de ironias envolve o que aconteceu na praça dos Andradas, no centro de Santos, litoral paulista, no domingo à tarde (30). No local fica a cadeia velha de Santos. O cenário perfeito para que a Trupe Olho da Rua apresentasse a peça BLITZ – O império que nunca dorme, que trata com tom satírico da violência de Estado e que foi contemplada com o Proac (Programa de Ação Cultural) no edital de 2014. O programa é do governo do estado, atualmente comandado por Geraldo Alckmin, do PSDB. A assinatura e aprovação de projetos do Proac acontecem por órgãos submetidos ao governo do Estado. A Polícia Militar é a força de segurança que está submetida a esse mesmo governo.
“Essa dicotomia entre o que o Estado permite e o que o Estado reprime é o que a gente se deparou ontem, quando os policiais interromperam a peça, baseado em uma prerrogativa bem subjetiva, de que eles tinham se sentido aviltados com a nossa abordagem cômica e estética com relação ao tema”, explicou à Ponte o ator Caio Martinez Pacheco, que acabou algemado e detido depois da ação policial.
O espetáculo Blitz estreou em setembro do ano passado e a própria Polícia Militar já havia visto a apresentação que, segundo Caio, foi feita naquela mesma praça. O ator é membro da Trupe Olho da Rua, do Coletivo Vila do Teatro, da Cooperativa Paulista de Teatro e da Rede Brasileira de Teatro de Rua. Além da seleção do Proac em 2014, neste ano a trupe conseguiu nova verba pelo mesmo programa para então fazer um esquema de circulação, que consiste em apresentar a peça em 11 cidades paulistas. Caio, inclusive, conta que a celebração contratual dessas novas apresentações já havia sido assinada.
A outra grande ironia se deu no momento da interrupção da peça. Caio Martinez Pacheco conta que a cena que antecedeu a abordagem policial era justamente a de policiais chegando no espaço público e coibindo uma manifestação artística. “Foi quase uma paródia da peça”, contou Caio. Ele também disse que, logo depois que os atores desligaram o som para conversar com os PMs, o público passou a ser alvo dos policiais: “Ele tomaram alguns celulares, ameaçaram, mandaram que as pessoas que estavam ali assistindo a peça apagassem todo e qualquer registro da peça e isso criou um clima de animosidade muito grande na praça”.
Na sequência, os policiais disseram que o ator Caio Martinez Pacheco estava com voz de prisão e que seria levado à delegacia. Quando questionou a razão, nenhum PM soube dizer: “Eles não conseguiam formular uma acusação formal no momento da prisão. Não diziam o motivo. Eu estava trabalhando, praticando o meu oficio e me vi obrigado a resistir a prisão que considero injusta, uma coerção sem sentido”, explica.
Caio então disse que, como não havia justificativa plausível, ele teria que ser algemado. Assim aconteceu: “Eles queriam me colocar no corró da viatura, eu reagi e foram bem agressivos”. A PM apreendeu o cenário e até ontem havia liberado apenas parte dos elementos cênicos. A preocupação é que na próxima sexta, dia 4, às 19h, a Trupe Olho da Rua tem uma apresentação na Fábrica Ocupada Flaskô.
Na delegacia, a Polícia Civil fez um boletim de ocorrência enquadrando Caio por desrespeito dos símbolos nacionais, além de desobediência e resistência. Para o ator, poderia ser um tearo do absurdo: “O curioso é que a gente vê todos os dias os símbolos nacionais sendo usados em mercadorias, de chinelo a biquíni. Nesse caso, estávamos fazendo uma encenação. Houve um trabalho de pesquisa e desenvolvimento do tema”, explicou.
A Trupe Olho da Rua disse à Ponte Jornalismo que vai representar na comissão de direitos humanos do Ministério Público uma queixa formal sobre arbitrariedade na prisão e abuso de autoridade. A avaliação do ator Caio Martinez Pacheco é que o episódio deve servir de reflexão sobre a necessidade de defendermos os direitos civis: “Nesse momento político que o Brasil esta vivendo, ao que tudo indica, se faz cada vez mais necessário esse debate. E a gente tem visto um endurecimento da polícia aqui da Baixada nos últimos tempos com relação a manifestações de cunho artístico em local público. Isso tudo é um gatilho do fascismo que, quando a gente aperta, não consegue coibir as suas ações pérfidas. Essa é a situação em que a gente se encontra agora. É uma situação que remonta aos tempos da ditadura e a censura no Brasil”.
Outro lado
Em nota, a Prefeitura de Santos diz que não foi comunicada previamente sobre a apresentação do grupo neste domingo, mas que não chamou a Polícia Militar. A intervenção da PM aconteceu por iniciativa própria, a partir do conteúdo da peça apresentada, que usava símbolos nacionais. Ainda na nota, a Prefeitura diz que compreende a importância das crescentes manifestações culturais em praças públicas e sua preocupação é apenas com a segurança e conforto do público e que se compromete a se reunir com as forças policiais e os movimentos culturais para garantir a livre manifestação.
Procurado pela reportagem da Ponte Jornalismo, o Comando do Policiamento da Baixada Santista afirma, em nota, que pediu os registros documentais da ocorrência e apura as circunstâncias dos fatos. A Oficial que comandou a ação será ouvida e os organizadores do evento também serão chamados para prestarem informações. Além disso, o Comando do Policiamento do Interior Seis esclarece que está apurando os fatos e, tão logo tenha todas as informações reunidas, irá se pronunciar.