Idosa sofre violência doméstica em uma ‘quarentena’ que já dura 20 anos

    Isolamento social para combater avanço do coronavírus trouxe um agravante: o aumento da violência contra a mulher

    O isolamento domiciliar foi uma das principais determinações de todos os governos para conter o avanço do novo coronavírus. Acontece que essa medida trouxe um agravante: o aumento dos casos de violência doméstica.

    Segundo dados da ONU Mulheres e do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, no Brasil houve aumento de 17% no registro de denúncias pelo canal Ligue 180. No país, em 2019, 7 a cada 10 vítimas de feminicídio foram mortas dentro do lar. Onde deveria ser um lugar seguro, passou a virar um pesadelo para grande parte das mulheres.

    Apesar de os números terem subido agora na quarentena, dona Elisabeth (nome fictício), moradora de Cotia, já sente na pele os efeitos da violência doméstica há, pelo menos, 50 anos. Hoje, aos 76 de idade, ela carrega as cicatrizes de uma vida conjugal marcada por agressividade e tortura psicológica, que seguem até os dias de hoje.

    | Foto: Divulgação

    Aposentada desde 1998, ela narra que a situação ficou ainda pior a partir dos anos 2000, quando seu marido, também já aposentado, ficou impotente. “Ele colocou uma prótese, mas aí não deu certo, ele ficou impotente e começou a implicar comigo, dizendo que eu estava atrás de homem e querendo descontar em mim por ser impotente”, disse Elisabeth.

    Ela conta que seu marido ainda enfrentou um problema de saúde que o deixou sem mobilidade nas pernas, fato que também contribuiu para ficar mais agressivo. “Após ter um problema de saúde e internado por 18 dias, ele ficou sem poder andar, sem poder dirigir. Ele perdeu a mobilidade das pernas e não podia mais viajar para Recife, como ele sempre fazia”, relatou.

    Elisabeth tentou se separar, mas encontrou diversas dificuldades, entre elas, a financeira. Se hoje, segundo pesquisas, as mulheres ganham, em média, 70% do salário dos homens, naquela época (1980), elas ganhavam 47% do salário deles. Com sete filhos (seis de sangue e um adotivo) ficava praticamente impossível criá-los sozinha.

    Mas a aposentada conta que esse não foi o único empecilho. Na época militar, seu marido, segundo ela, usava um revólver para ameaçá-la. “Ele usava o revólver para colocar medo em mim. Chegou a fazer roleta russa. Pelo medo, fiquei sem condições de sair de casa. Fiquei aguentando por todo este tempo”, disse desconsolada.

    ‘Sua rapariga safada. Vou pegar um martelo e arrebentar seu carro’

    Pelo WhatsApp, a reportagem recebeu diversos vídeos atuais de seu marido, hoje com 75 anos, agredindo-a verbalmente com palavras de baixo calão. “Sua rapariga safada. Estava dando o cu até agora. Essa sua buceta está cheia de porra […] eu não tô precisando de tu, não, sua puta. Você tá dando o rabo por aí na rua. Sua puta. Eu vou arrebentar esse carro aí. Vou pegar um martelo e arrebentar. Eu dou um murro na sua cara. Sua puta. Sua rapariga safada.”

    Marcas deixadas pelo marido no carro | Foto: Arquivo/Ponte

    Carro riscado pelo marido

    Uma das filhas de dona Elisabeth disse que há dias sua mãe não sabe o que é dormir. “Minha mãe tem que dormir sentada na cadeira ou no sofá da minha casa. Daqui a pouco, quando ela for entrar para casa dela e ir para o quarto, começa a violência. Minha mãe não sabe o que é dormir já faz dias”, relatou.

    “Fico trancada no quarto a noite toda. Minha filha dá comida para mim pela janela. Traz tudo para mim, eu tomo remédio, quero ir no banheiro e não consigo ir, quando vou, vou correndo, com medo de ele abrir a porta e ficar me ameaçando com faca”, denuncia dona Elisabeth, que ainda tem problemas de saúde, como diabetes e pressão alta.

    Justiça negou medida protetiva

    Diante das agressões e ameaças incessantes, dona Elisabeth foi até a Delegacia da Mulher de Cotia para registrar a ocorrência. Foram feitos três boletins de ocorrência dentro de praticamente um mês. Ela ainda contatou uma advogada para entrar com pedido de Medida Protetiva de Urgência, que foi negado pelo Juiz de Direito Sérgio Augusto Duarte Moreira.

    No entendimento do juiz, no caso há uma ‘desinteligência’ entre o casal, em que ambos se agridem reciprocamente. “Pelo fato de a medida de afastamento do lar ser mais drástica, principalmente pelo fato do autor ser pessoa idosa, melhores esclarecimentos quanto aos fatos são necessários’, diz trecho do processo.

    O juiz ainda solicitou à autoridade policial ouvir os demais filhos do casal, “para que esclareçam se já presenciaram a vítima sendo agredida ou uma possível ameaça do autor.”

    Decisão do juiz pra medida | Foto: Reprodução

    Mas segundo a filha de dona Elisabeth, seus outros irmãos estão ao lado do pai. Quando souberam que o pedido de medida protetiva foi negado, ambos fizeram um churrasco para comemorar.

    “Meu pai fez um churrasco aqui, chamou meus irmãos porque eles estavam comemorando que não tinha saído a medida protetiva. Depois disso, as ameaças e agressões aumentaram, pois meu pai viu que não ia dar em nada”, disse.

    ‘Isso nunca me aconteceu’

    A reportagem entrou em contato com a advogada do caso, Dra. Silvia Cursino. Há seis anos especialista em violência doméstica e familiar, Silvia disse que nunca teve um pedido de Medida Protetiva de Urgência negado.

    “Isso nunca me aconteceu. Eu nunca tive Medidas Protetivas de Urgência negadas. Eu tenho processos em Cotia, Osasco, Itapevi, Itapecerica e outras cidades da região. Eu tenho muito bem na minha cabeça o que é o abuso e o que é considerado violência doméstica”, cita.

    A advogada explicou que o juiz sentiu a ausência de requisitos legais neste caso. Esses requisitos, segundo ela, referem-se aos requisitos objetivos, como aspecto de gênero, relação íntima de afeto e unidade doméstica, e aos subjetivos, que são vulnerabilidade, inferioridade física e prática de um delito.

    Entretanto, Silvia disse que não entendeu tal argumento, pois este é um caso “que tem todas as características de violência doméstica”.

    “Os requisitos são aspectos de gêneros. Ser mulher já é um requisito, independentemente de como, se é trans, homossexual, não importa. A relação intima: eles são um casal. Tem uma relação íntima de afeto. Unidade doméstica: a violência acontece dentro do ambiente familiar. Os subjetivos: ela está vulnerável por questão de gênero. Ela, por ser mulher, é inferior fisicamente. Os dois são idosos, mas ele é homem e, portanto, é mais forte. Prática de um delito: ele praticou vários delitos durante esse tempo. Eu não sei, portanto, o motivo da resistência de não concederem a medida protetiva de afastamento dele no lar para ela se reorganizar”, completa.

    Diante da negativa de seu pedido de Medida Protetiva, Silvia entrou com agravo de instrumento no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Por conta da pandemia, a resposta pode demorar para vir. Enquanto isso, as agressões e ameaças no lar de dona Elisabeth podem se tornar ainda mais graves.

    “Minha mãe está correndo risco de vida. Eu moro em uma casa dos fundos e vejo meu pai puxando faca para ela, ameaçando ela, que vai dar uma facada na barriga dela e depois vai se matar. A cada minuto que passa, meu pai se torna mais agressivo com a minha mãe e comigo, por eu estar ajudando ela. Por isso, a gente quer que essa Medida Protetiva saia com urgência. Ela tem medo de passar perto dele.”

    Delegacia eletrônica

    A Polícia Civil do Estado de São Paulo, por meio da Delegacia Geral de Polícia, informou que desde ontem (2) as ocorrências de violência doméstica contra a mulher ou familiares poderão ser registradas virtualmente pela internet, através da Delegacia Eletrônica.

    “Neste momento de isolamento social, por conta da epidemia de Covid-19, a Polícia Civil do Estado de São Paulo, disponibiliza esta ferramenta que poderá ser acessada de qualquer dispositivo eletrônico, visando o atendimento necessário sem que haja a necessidade da vítima sair de casa e sem despertar a desconfiança de seu agressor”, disse a corporação em nota.

    A polícia ressaltou que, após o registro da ocorrência, a delegacia responsável pelas investigações fará contato de forma discreta com a vítima, para saber da necessidade da realização de exames periciais e de medida protetiva.

    “Solicitamos que a vítima guarde provas, seja conversa eletrônica e/ou fotos de ferimentos, bem como outras que julgar necessárias, uma vez que posteriormente serão solicitadas e deverão ser disponibilizadas para a autoridade policial responsável pelo caso para análise e deliberação.”

    Segundo a Polícia Civil, a maioria dos crimes poderá ser noticiada eletronicamente, exceto estupro e estupro de vulnerável.

    Dúvidas podem ser tiradas através do e-mail: [email protected]

    O endereço para registro de ocorrência: https://www.delegaciaeletronica.policiacivil.sp.gov.br/ssp-de-cidadao/home

    Matéria publicada originalmente n’O Repórter Regional.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas