Cuidado com a Maré

Como um projeto ajuda a desenvolver práticas de cuidado para a infância afetada pela violência no Complexo da Maré; “me mostrou como é ser mãe”, conta uma participante

Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

Antônio (*) já era filiado à facção criminosa Comando Vermelho (CV) da favela Nova Holanda, no Complexo de 17 comunidades da Maré, zona norte da capital fluminense, quando ele e Evelyn, 30 anos, começaram a se relacionar, na virada dos anos 2000 para 2010. Contudo, foi apenas após engravidar da primogênita que Evelyn começou a perceber que a violência dele extravasava para além dos conflitos armados com as Polícias Militar e Civil e com as duas outras facções que governam as favelas fronteiriças com as de domínio do CV — o Terceiro Comando Puro (TCP) e a milícia da Praia de Ramos e Roquete Pinto. O inferno das ruas adentrou para o interior do lar entre o nascimento de Janaina, hoje com 10 anos de idade, Jessica, 9, e Kleber, 6. Após quatro anos aguentando abusos físicos e verbais na frente dos próprios filhos, Evelyn fez o que sentiu ser melhor para as crianças.

“Fica com a casa que com os meninos fico eu”, disse Evelyn a Antônio, antes de começar um intenso processo de peregrinação pelas favelas do Complexo da Maré, onde nasceu. Passou a residir sempre nas áreas dominadas pelo TCP, a fim de impedir que o ex tivesse influência sobre sua vida: Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Conjunto Nova Maré. Sem emprego fixo e com uma pequena ajuda de custos por parte do governo e das muitas ONGs que transitam pelo complexo, Evelyn passou por moradias precárias em todas essas comunidades, carregando os filhos junto e priorizando o acesso deles a cultura e educação.

Iniciada como mãe há exatamente uma década, Evelyn dedica-se integralmente às crianças quando elas não estão no horário escolar. Vê-se como uma mãe carinhosa e intensamente presente no cotidiano de seus filhos. Até um ano e meio atrás, todavia, não entendia como as violências e privações que sofrera na infância e na adolescência se manifestavam sobre a criação do trio. Achava que precisava proteger os filhos mais do mundo externo, determinado pelas violências do território e das influências negativas do pai — de quem as crianças afirmam sentirem certo medo, por conta do envolvimento com o crime organizado —, mas não tanto de si mesma, cuja criação foi, inevitavelmente, marcada por essas mesmas condições violentas de existência que assolam os 140 mil moradores do complexo da Maré (Censo Maré 2019).

Dentro de casa, Evelyn despejava xingamentos sobre as crianças. Impaciente com elas ou com o mundo, ia perdendo a ternura que tanto tentava manter no dia a dia. Mas ela mesmo não percebia o quanto errava em seu comportamento. A compreensão só veio quando sua família se tornou uma das 50 a serem acompanhadas, a partir de janeiro de 2021, pelo projeto “Primeira Infância na Maré: acesso a direitos e práticas de cuidado”: iniciativa da ONG Redes da Maré que, segundo o próprio site, “busca criar caminhos e condições para ampliar direitos de crianças de 0 a 6 anos e identificar, conhecer e fortalecer práticas de cuidado e atenção, envolvendo as famílias e a comunidade da Maré”.

O sol chorando de tristeza

Construído conceitualmente durante o ano de 2020, com a intenção de estudar não somente os impactos das violências que as crianças entre 0 e 6 anos de idade residentes da Maré sofrem, mas também como a Covid-19 afetava o cotidiano delas e de suas famílias. “Não dá para falar de primeira infância sem falar de toda família que acompanha aquela criança… No começo, tínhamos uma noção de primeira infância de favela que não se mostrou tão fechada na realidade. Por isso mudamos para ‘primeiras infâncias”’, explica Vanessa de Paula, assistente social responsável pela coordenação do projeto.

Pesquisadora do projeto “Primeira Infância na Maré” em atividade com as crianças | Foto: Douglas Lopes/Redes da Maré

De acordo com o Censo Maré de 2019, atualmente habitam no complexo 12.536 crianças com até 5 anos de idade. Segundo o relatório, a maioria das crianças dessa idade se encontra na favela da Nova Maré. Fica descrito que “essa elevada concentração pode ser uma consequência de condições mais acentuadas de pobreza e, pari passu, um fator de sua reprodução”.

De uma base de famílias vulneráveis cadastradas pela Redes, as assistentes sociais da ONG entrevistaram em torno de 100 que poderiam fazer parte do projeto, por terem em casa crianças ainda na primeira infância. “Nós fizemos um questionário com mais ou menos 130 perguntas, bem extenso, mas não dizíamos para o que que era, porque senão a família que não foi chamada poderia ficar chateada”, explica Vanessa. Desse número, destacaram 50 famílias de todo território da Maré (“achamos que seria importante ter pessoas de todos as favelas, para representar a diversidade do complexo”, detalha Vanessa).

Uma vez por mês, entre janeiro de 2021 e agosto de 2022, as famílias se reuniam em um dos quatro núcleos da Redes da Maré espalhados por favelas regidas pelas diferentes facções criminosas, para que, assim, as pessoas pudessem ser atendidas independente de imposições extra oficiais dos comandos e das milícias relativas a trânsito por entre favelas “rivais” (“tem família que não cruza o território”, explica Laiza da Silva Sardinha, psicóloga responsável pelo atendimento dos pais). Essas reuniões contavam com workshops, escuta de familiares sobre demandas como acesso a saúde, educação e alimentos — geralmente, tudo isso era providenciado em acompanhamento pelas assistentes sociais do projeto — e conversas sobre as violências que os pais sofreram durante a vida e as que as crianças enxergavam que sofriam agora.

Vanessa, que é oriunda do complexo do Alemão, conta que trabalhavam para “conseguir suprir para essas famílias alguma segurança alimentar, levando cesta básica todo mês até agosto”, e que isso ajudava a mantê-las comprometidas com o projeto; não à toa, de 50 famílias, apenas cinco saíram ao final.

Enquanto adultos discutiam suas próprias experiências quando crianças faveladas, os filhos eram acompanhados pela psicóloga Adelaide Rezende, pesquisadora de infâncias com foco em brincadeiras e jogos, que atualmente executa seu pós-doutorado atrelada ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC). Natural do Pará, Adelaide pesquisa as infâncias da Maré desde seu doutorado, quando escreveu sobre as brincadeiras das crianças do complexo, na tese “O brincar na favela da Maré: jogo de vida e resistência em território conflagrado”.

Na pesquisa, ela teve suas primeiras noções de como a infância é afetada pela conflagração de um determinado local. “Aqui [na Maré] as crianças têm sua infância muito marcada pelos conflitos.” Segundo descreve, nas divisas do complexo (como são chamadas as regiões limítrofes entre favelas de diferentes influências criminais), garotos de diferentes idades provocam uns aos outros por conta do pertencimento a comunidade de facção oposta, chegando a, em casos mais extremos, porém não raros, jogar pedras uns nos outros. Eles absorvem a cultura criminal local sem entendê-la realmente, pois, ao mesmo tempo em que proclamam a identidade do Comando Vermelho ou do Terceiro Comando Puro, e utilizam disso para brigar com colegas da mesma idade, durante as conversas que tiveram com Adelaide para o projeto da Redes, demonstraram receio de traficantes, armas, drogas e até mesmo de bailes funk.

A fim de entender o que elas enxergavam como violência, Adelaide perguntava-lhes quais eram as coisas de seu cotidiano que as desagradavam. Por meio de falas e desenhos, as crianças, em especial aquelas entre 7 e 9 anos — os irmãos mais velhos daquelas na primeira infância —, descreviam, no campo do simbólico: bullying, racismo, machismo; e no campo concreto: o som alto dos bailes (“elas reclamam que não conseguem dormir”, explica a pesquisadora)  tiroteios, tráfico de drogas, presença de camburão, lixo a céu aberto, violência doméstica e entre vizinhos, amigos etc. Nas cartolinas, os desenhos vinham acompanhados de frases como “protejam as crianças” e, acima de representações de tiroteios, vinham abstrações como o sol chorando de tristeza.

Uma criança relata, por meio de ilustrações feitas à mão, o caso de uma mulher que foi morta na frente de seu filho porque o assassino estava irritado com o choro do bebê. Apesar da dor, quase todos esses desenhos vêm acompanhados de representações otimistas ao lado, pedidos por paz e sonhos com locais bucólicos. “É interessante notar que muitos deles têm uma árvore frutífera em algum lugar — algo que não é comum aqui”, percebe Adelaide.

Esse pequeno detalhe das árvores mostra que a criança favelada de hoje ainda sonha com a mesma coisa que o jovem Mano Brown de 2002, quando lançou Vida Loka parte 2:

E eu que, e eu que sempre quis um lugar
Gramado e limpo, assim, verde como o mar
Cercas brancas, uma seringueira com balança
Desbicando pipa, cercado de criança

Às vezes eu acho que todo preto como eu
Só quer um terreno no mato só seu
Sem luxo, descalço, nadar num riacho
Sem fome, pegando as fruta no cacho”

‘Tem criança que nunca viu arma?’

A convivência com conflitos na infância pode causar traumas e transtornos psicológicos para toda vida, contudo, segundo a pesquisadora, conversar com as crianças desde a primeira infância tem potencial transformador, permitindo que possam evitar repetir violências como racismo e machismo, tanto quanto reconhecer que, embora tiroteios, fuzis e camburões sejam comuns no cotidiano delas, isso não é normal e nem deve ser naturalizado. “Eu digo para elas: ‘Vocês sabiam que tem lugar dentro do próprio Rio de Janeiro em que as pessoas nunca viram um fuzil? E se eu te disser que tem criança que nunca viu arma no Brasil?’”, relata.

Atividade do projeto “Primeira Infância na Maré” | Foto: Douglas Lopes/Redes da Maré

A naturalização de conflitos por si só traz problemas psicológicos. Um estudo publicado em 2022 na revista Journal of Marriage and Family avaliou os efeitos da exposição de crianças entre 0 e 10 anos de idade a violências de conflito armado em quatro países pós-soviéticos: Armênia, Azerbaijão, Moldávia e Tajiquistão. Após um amplo cruzamento de dados, a pesquisa chegou à conclusão de que crianças de idade tenra (primeira infância e um pouco depois disso), quando expostas a violência armada, têm maior chance dereproduzir violência doméstica contra suas parceiras. Além disso, outras pesquisas apontam que pessoas expostas a eventos traumáticos antes dos 11 anos de idade têm três vezes mais chance de sofrerem de estresse pós-traumático do que aqueles que foram expostas a eventos semelhantes após os 12 anos.

Nas conversas guiadas pelas profissionais da Redes, os pais muitas vezes resistiam em admitir as violências que jogavam sobre seus filhos pequenos, pois, para isso, era necessário enxergar os traumas que eles mesmos carregavam de suas juventudes. Evelyn passou por esse mesmo processo. Relegada às tarefas domésticas desde pequenininha, viveu pouco da infância de liberdade na rua, nunca tendo a mesma chance de brincar que os garotos da família. Cresceu então acostumada com o ressentimento de uma juventude trancafiada, sob as ordens de medo impostas pelos conflitos que tomavam conta do complexo.

Aprendendo a ser mãe

Até começar a participar das reuniões do projeto da Redes, as únicas preocupações de Evelyn eram garantir que as crianças não tivessem tanto medo do pai — que, por um longo tempo após a separação, continuou a persegui-la sempre que ela precisava atravessar do território do TCP para o do CV — e que elas conseguissem conviver o mínimo possível com os abusos policiais, que se fizeram frequente antes de residirem na casa atual, próximo da Lona Cultural. Segundo ela, naquela época policiais invadiam sua casa, pegavam os iogurtes das crianças e, sentados no sofá ou na cadeira da cozinha, as observavam enquanto teciam comentários zombeteiros, como: “Muito bonitinhas, pena que vão crescer para virar vagabundas”, ou, “esse garoto vai ser morto antes de chegar aos 18”.

Contudo, agora, isso faz parte do passado, tal como as perseguições do ex-companheiro, do qual ela se livrou ao pedir para os comandos das facções que avisassem a Antonio para deixá-la em paz.No presente, Evelyn, que mora próximo a uma divisa entre duas facções, se preocupa mais com estar junto das crianças quando se inicia um tiroteio entre ambas — o que considera menos pior do que as invasões domiciliares por parte da polícia. Após o projeto das Redes, percebeu-se uma mãe melhor: “Poxa, tô com saudade [dos encontros mensais]. Esse projeto me mostrou como é ser uma mãe”, relatou para a Ponte, perante Adelaide, que, acompanhando a entrevista, segurava o choro.

Das três crianças, quem mais saiu afetada pelo convívio com tais violências foi a mais velha, que presenciou com vividez os abusos dos agentes de segurança e do patriarca. Isso, especula Evelyn, teria afetado o desenvolvimento da garota, que tem dificuldade com leitura. Já o mais novo segue com um desenvolvimento rápido e menos afetado: “Ele já lê e escreve”, relata a mãe, orgulhosa.

Ao fim da entrevista, apareceram as três crianças. Apesar da timidez, relataram à Ponte, com a ajuda de Adelaide, quais suas vontades, gostos e sonhos. O garoto gostaria de montar um canal no Youtube focado em conserto de celulares, a mais velha o acompanharia nisso enquanto a irmã do meio pensa em seguir carreira com “canal de trollagem e piada”. Das coisas que mais sentem falta do projeto da Redes, destacam a variedade de brinquedos. Adoram viajar para outras áreas da cidade e, por terem feito isso tão poucas vezes, confundem as idas ao Centro do Rio com a cidade de São Paulo, representada como um amontoado de prédios pelos programas de televisão aos quais assistem.

(*) Os nomes dos familiares foram alterados para a proteção deles

Reportagem financiada pelo Dart Center for Journalism and Trauma, na fellowship de estudos e reportagem sobre a primeira infância para jornalistas sediados no Brasil e América Latina

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