Justiça de SP determina liberdade de Lucas, cabeleireiro preso acusado de roubo

    Desembargador de SP considera versão dos PMs que o prenderam contraditória quando comparada com a contada pela vítima

    Lucas passou o Natal e Ano Novo preso, longe da família | Foto: Arquivo pessoal

    A Justiça de São Paulo determinou a soltura do jovem Lucas Bispo da Silva, 19 anos, preso desde o dia 13 de dezembro de 2019, suspeito de ter roubado uma moto naquele dia no Ipiranga, zona sul de São Paulo. Ele passou o Natal e o Ano Novo preso por uma acusação sem provas. Um desembargador que analisou o caso considerou que há contradições no depoimento dado pelos PMs quando comparado com a fala da vítima do roubo.

    De acordo com o magistrado Nilson Xavier de Souza, a dúvida deixada por informações conflitantes era suficiente para libertar o cabeleireiro. Enquanto os PMs disseram que avistaram Lucas na rua e o levaram para a delegacia, a vítima afirma que foi levada ao local em que o jovem estava e o reconheceu na própria rua.

    “Estas pequenas contradições, associadas com os relatos de pessoas que colocam o paciente em local diverso […] tornam temerária a manutenção da prisão, que é medida sempre excepcional antes de sentença penal condenatória”, decidiu o desembargador no dia 16 de janeiro. Apesar de liberdade, Xavier de Souza determina uso de tornozeleira eletrônica “se disponível”.

    O alvará de soltura foi expedido no mesmo dia, mas Lucas ainda segue preso no CDP (Centro de Detenção Provisória) 2 de Guarulhos, cidade na Grande São Paulo. Familiares aguardam pela sua liberação. Segundo o advogado do rapaz, Paulo Sérgio Pisar Victoriano, nenhuma profissional atende o telefone do CDP para informar se ele será libertado ainda neste sábado (18/1).

    A Ponte questionou a SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) sobre o motivo de Lucas ainda não ter sido libertado. Por telefone, a assessoria de imprensa da pasta não soube especificar, mas explicou que existem casos de alvarás de liberdade serem dados, mas a pessoa permanecer presa por responder outros processos. No entanto, disse que, quando há apenas um, a liberação é feita imediatamente ao recebimento do alvará. Às 19h53, a SAP enviou nota em relação ao caso de Lucas: “Secretaria da Administração Penitenciária esclarece que o Centro de Detenção Provisória II de Guarulhos não recebeu o alvará de soltura do preso Lucas Bispo da Silva. Após o recebimento, será feita a checagem da existência ou não de outras pendências com a Justiça e, não havendo, o alvará será cumprido e Lucas será libertado”, sustenta a pasta.

    No entanto, o documento da Justiça destaca que Lucas responde somente a este processo. Segundo a resolução 108/2010 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), é determinado o cumprimento imediato da liberdade nestes casos. Ainda no alvará, a Justiça agendou para o dia 5 de março de 2020 audiência sobre o roubo da moto BMW.

    Segundo um parente de Lucas, o advogado da família confirmou que a saída será somente na segunda-feira. A explicação, que teria sido repassada por um funcionário do CDP 2 de Guarulhos, é de que nenhum profissional responsável pelas solturas vai ao local aos sábados. Assim, Lucas completará 38 dias preso com uma acusação baseada na versão contada pelos PMs que o prenderam e o reconhecimento irregular feito pela vítima.

    Já a família não contém a alegria, ainda que Lucas siga temporariamente preso em Guarulhos. Irmã do cabeleireiro, Gabriela Bispo da Silva, analista comercial de 23 anos, conta que caiu aos prantos quando recebeu a notícia. “Eu estou impactada até agora. Estava em casa cuidando do meu sobrinho de 1 ano quando li as mensagens umas cinco vezes. Na hora que caiu a ficha, cai no chão aos prantos, chorando muito”, relembra.

    Gabriela revela que sua mãe a a companheira de Lucas foram ao CDP 2 de Guarulhos neste sábado fazer a primeira visita ao jovem, ma não tinham recebido informação se ele seria liberado hoje ou apenas segunda-feira (20/1). Para eles, um momento menos doloroso do que o Natal e o Ano Novo, datas festivas de reunião familiar em que Lucas não estava.

    “Horrível”, assim ela define as duas datas. “Passamos em casa, sem nenhuma comemoração, sem nada. Passei chorando, para ser bem sincera. Nem demos feliz Natal e Ano Nov para ninguém, ficamos em casa o dia inteiro. Não teve como comemorar com o Lucas naquela situação”, conta.

    Agora, assim que Lucas entrar em casa, terá uma festa o esperando: “Vamos fazer uma ceia de Natal! Guardamos chester, peru e quando ele sair vamos fazer a ceia. O ano começou agora para a gente. Vamos convidar todo mundo que ajudou, que contribuiu para isso”, revela, emocionada.

    Relembre o caso

    Às 7h30 do dia 13 de dezembro de 2019, dois assaltantes em uma motocicleta roubaram uma moto modelo BMW G310 na Avenida Comandante Taylor, no Ipiranga. Os homens eram negros, um deles estava armado e tinha uma marca no rosto, vista ainda que ele estivesse com capacete. Lucas possui uma lágrima tatuada no rosto.

    Os PMs da 1ª Cia do 46º BPM/M (Batalhão de Polícia Militar/Metropolitano) foram acionados pelo Copom (Centro de Operações Policiais Militares) e encontraram a moto na rua Michel da Silva, dentro da Favela de Heliópolis. Eles classificam o local como “onde geralmente são deixados os veículos e motos produto de crime ‘descansando’ enquanto os criminosos providenciam outras placas ou outro destino”.

    A dupla teria então chamado a vítima do roubo, que viu Lucas parado na rua e o reconheceu na hora. Esta fala do motociclista roubado seria a garantia para a abordagem e consequente prisão em flagrante de Lucas. O reconhecimento não seguiu o padrão do CPP (Código de Processo Penal), no qual a vítima primeiro faz uma descrição do criminoso, depois o suspeito deve ser colocado com pessoas de aparência física semelhante para então ser reconhecida.

    No entanto, a versão da família rebate a dos PMs. O jovem estaria em casa às 7h30, horário do crime. Câmeras de segurança do prédio onde ele mora mostram sua entrada às 0h57 do dia 13 de dezembro, saindo para o trabalho às 10h03. Depoimento dos porteiros reafirmam esta versão.

    Lucas saiu de casa e foi para o salão de cabeleireiro que trabalha, menos de 1 quilômetro dali. Segundo sua versão, ele estava cortando um cabelo por volta de 11h quando os PMs entraram no estabelecimento. O depoimento de duas testemunhas, juntada pela defesa, vai na mesma linha. Uma delas estava com ele no salão e também foi abordado junto de Lucas. Intimidado, conta, teve fotos tiradas pelos PMs, que os interrogaram sobre uma moto roubada “principalmente interrogaram o Lucas como se ele fosse o culpado, sendo que ele não sabe pilotar nenhum tipo de moto”, conta.

    Em seguida, ainda de acordo com o depoimento, Lucas teria voltado para cortar o cabelo e depois acompanhado os PMs para a delegacia. “Lucas entrou na barbearia, pegou sua camiseta e perguntamos: ‘Vai pra onde?’, ele respondeu: ‘Vou ali na delegacia provar que sou inocente e já volto'”, finaliza.

    Uma mulher que passava pela rua contou à Justiça que passava em frente ao salão de cabeleireiro em que o jovem trabalha quando viu dois PMs abordando Lucas e outro jovem. “Ouvi Lucas dizer se poderia terminar de cortar o cabelo”, relembra. Posteriormente, uma familiar dela contou que o jovem fora levado à delegacia.

    A mãe de Lucas, Deusimara da Conceição Bispo, 49 anos, diz ter deixado o filho dormindo quando saiu de casa para o emprego. Ela é ajudante geral.“Eu sai 6h para trabalhar, minha filha saiu 7h e ficaram meu marido e ele, que acordou 9h30 e saiu de casa 10h para ir trabalhar”, assegura. O pai do jovem, José Umberto da Silva, 55 anos, trabalhava em outro bairro da capital paulista quando recebeu o telefonema avisando que o filho estava no 95º DP (Cohab Heliópolis).

    “Na mesma hora fui para a delegacia, ele estava ainda dentro da viatura. Falaram que pegaram meu filho no meio da rua, isso é uma tremenda mentira”, relembra o pai. “Foram buscar ele cortando cabelo dentro do salão, esperaram meu filho cortar e trouxeram ele para a 95”, reafirma José Umberto, sobre a versão contada por Lucas.

    O MP o acusou no dia 8 de janeiro, em denúncia feita pelo promotor de Justiça substituto Vinícius Henriques de Resende. Ele elenca a prisão feita pelos policiais em busca do veículo roubado e o reconhecimento da vítima como provas suficientes para determinar a autoria do crime. A Ponte solicitou entrevista com o promotor e pediu ao MP posicionamento sobre a decisão do juiz e aguarda resposta.

    À época, a reportagem questionou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, comandada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), sobre a prisão de Lucas Bispo em 13 de dezembro. Segundo a pasta, “até a conclusão do inquérito, nenhuma imagem foi apresentada na delegacia”.

    A secretaria afirma que “o IP (Inquérito Policial) foi concluído e relatado à Justiça”. “O caso foi registrado pelo 95º Distrito Policial, onde a vítima, em sala própria, reconheceu sem sombras de duvidas o suspeito, que teve todas as garantias constitucionais concedidas”, prossegue a SSP.

    Reportagem atualizada às 20h04 do dia 18 de janeiro para incluir posicionamento da SAP.

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