Mães em Luto da Leste exigem respostas por mortes de maridos e filhos

    “Parte do Ministério Público trata a periferia com descaso total”, afirma liderança do movimento

    Encontro reuniu familiares de vítimas com músicos e movimentos de direitos humanos I Foto: Sérgio Silva

    Formado por mulheres que perderam maridos e filhos vítimas da violência cometida pelas polícias Civil e Militar, o coletivo Mães em Luto da Zona Leste ou Mães da Leste, se reuniu no último sábado (29/4) e ocupou a praça Francisco Tavares Veloso, no Jardim Planalto, zona leste, com intervenções artísticas e coleta de assinaturas endereçadas ao Ministério Público Estadual.

    O objetivo é fazer uma pressão sobre parte do Ministério Público para que sejam agilizados os processos junto à Justiça e também que as trate sem “descaso”. As mães alegam que, atualmente, quando recebidas, são tratadas, em alguns casos, de “forma fria e sem explicações conclusivas sobre o andamento de seus processos”.

    “Parte do MP trata a periferia com descaso total, em todas as partes. Os promotores foram convidados para estarem aqui hoje, mas não compareceram. Nem mesmo justificaram a ausência”, diz Solange de Oliveira, umas das principais lideranças do movimento.

    O filho de Solange, Victor Antônio Brabo, 20 anos, foi morto por um policial civil do Garra (Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos), da Polícia Civil, durante uma saidinha de banco, em Perdizes, na zona oeste, em 3 de março de 2015.

    De acordo com o relato de Solange, seu filho, que estava armado, não apontou arma em nenhum momento para o policial André Pereira, como ele afirmou em boletim de ocorrência. Sua conclusão se baseia em um vídeo obtido após dois anos de luta. Segundo ela, as imagens mostram que seu filho tentou correr, mas não atirou no policial.

    “Em nenhum momento meu filho apontou a arma para esse homem. Eu tenho consciência que no momento meu filho estava fazendo a coisa errada. Só que meu filho tinha o direito de pagar seu erro preso. O policial deu a sentença de morte. Ele decidiu que meu filho tinha que morrer”, diz Solange, conhecida entre as mulheres do movimento por Sol.

    Pichadores executados

    “O foco é juntar todas nós para juntas sermos mais fortes e assim o Estado nos dar uma satisfação”, completou Eliete Prestes, esposa de Ailton dos Santos, 33, o pichador “Anormal”, executado por PMs dentro de um prédio na Mooca, em 31 de julho de 2014.

    O caso de Anormal está sob responsabilidade do promotor Tomás Busnardo Ramadan, hoje um dos mais fortes combatentes da letalidade policial em São Paulo com sua atuação no 1º Tribunal do Júri da Capital.

    Foi Ramadan quem denunciou os PMs Danilo Keity Matsuoka, o sargento Amilcezar Silvar, e os cabos André de Figueiredo Pereira, Adilson Perez Segalla e Robson Oliva Costa à Justiça pela execução de Anormal e de um amigo dele, o marmorista Alex Dalla Vechia, 32, conhecido entre os pichadores de São Paulo como e “Jets”.

    De acordo com a denúncia de Ramadan à Justiça, os dois pichadores foram executados pelos policiais quando eles estavam rendidos, deitados no chão e desarmados. Os cinco PMs sustentaram que Anormal e Jets estavam armados e atiraram contra eles.

    Quando argumentou ao 1º Tribunal de Justiça pela decretação da prisão dos cinco PMs, o promotor Ramadan escreveu que os militares da polícia paulista “agiram imbuídos de motivação abjeta, sem permitir às vítimas qualquer chance de defesa”.

    “A periculosidade do quinteto [de PMs] ganha vulto, na medida em que são policiais militares. Deveriam preocupar-se em salvar vidas, jamais ceifá-las”, escreveu o promotor Ramadan.

    Após 19 dias presos, os cinco PMs acusados de matar os dois pichadores foram soltos por ordem do desembargador Francisco Bruno, da 10ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de SP.

    Solange Oliveira, a Sol, se tornou uma das lideranças do movimento, após a morte de seu filho Victor I Foto: Paulo Eduardo Dias

    Além da lembrança dos momentos ao lado do filho guardadas na memória e no coração, Sol, uma mulher de olhar firme e de oratória mais forte ainda, carrega consigo um pôster com diversas fotos do filho.

    Junto com a coleta de assinaturas para pressionar o MP, o encontro também serviu para marcar bases. As mulheres esperam agora realizar atos em Paraisópolis, na zona sul, e Diadema, na Grande São Paulo, onde a violência policial também é constante. A expectativa é com isso criar movimentos em diversos bairros, descentralizando núcleos pela capital e municípios próximos.

    “Esse ato importa muito. Chama a atenção do bairro sobre a violência. Muitas mães ainda não têm conhecimento do procedimento que deve ser tomado quando há um caso de violência do Estado”, concluiu Solange de Oliveira.

    Renatinho

    Enquanto cantores de rap se apresentam no chão de terra batida da praça, que ainda possui quadras sem traves, com o piso cheio de buracos e sem qualquer pintura, é a vez de dona Marcia Conti contar sua história para a reportagem da Ponte e zelar pelo nome de seu filho Peterson Conti Senoreli, o Renatinho, morto em 18 de março de 2015.

    “Deus me entregou com 25 dias de nascido. Foi tratado com muito amor e carinho. Não tinha maldades”, diz. Segundo ela, Peterson foi espancado até a morte por quatro PMs da Força Tática do 29º BPM/M (Batalhão da Polícia Militar Metropolitano) por não saber o nome de seus pais e avós que constavam em sua certidão de nascimento, que carregava consigo no momento da abordagem, segundo relatou sua mãe. “O Peterson não soube falar o nome dos seus pais [biológicos] e avós. Ele só sabia o meu nome e nome de meu marido”.

    As lágrimas correrem pelo rosto de Marcia ao lembrar as frases ditas pelos PMs enquanto espancavam seu filho em uma via do Jardim das Oliveiras, no Itaim Paulista. “Tá mentindo vagabundo”.

    Marcia olha para o banner com o rosto de seu filho Peterson I Foto: Paulo Eduardo Dias

    Marcia fala que o percurso entre o local das agressões até um hospital, que duraria cinco minutos, foi feito em três horas. “Entregaram meu filho em coma no hospital Santa Marcelina”.

    Os nomes dos policiais envolvidas na ocorrência ela tem na ponta da língua: Elson Peregrini e Victor Pacheco Mascarenhas. Os nomes dos outros dois PMs presentes no momento foram suprimidos do boletim de ocorrência.

    A justificativa dada pelos PMs para as marcas no corpo do jovem é de que elas teriam sido motivadas pelo uso de força moderada, após Peterson ter se agarrado a um poste de ferro.

    Marcia conta que ao menos um dos PMs conhecia seu filho. Ele teria sido responsável por uma abordagem feita 15 dias antes, em que Peterson foi pego com um cigarro de maconha. No momento das agressões até ser colocado na viatura ele dizia: “não faz isso comigo, negão, você me conhece”.

    “Meu filho foi espancando. Porque judiaram do meu filho? Teve traumatismo craniano. Teve hemorragia por todo o corpo. Assassinos têm que sentar no banco dos réus e serem julgados, condenados e expulsos da corporação. A PM precisa expulsar esses assassinos da corporação”, finaliza Marcia.

    Deboche do vizinho

    A história da balconista Iracema de Oliveira também é semelhante a da mãe de Peterson, o algoz de seu filho Wesley Ferreira Gomes, 17 anos, também o conhecia no Jardim Elba, um bairro da região de Sapopemba.

    Seu filho foi morto com um tiro no tórax, que perfurou um dos braços, e outro na perna, enquanto se dirigia para a casa da namorada. Segundo a mãe, o PM Marcelo Estefânio da Silva conhecia seu filho por ele ter tido um relacionamento amoroso com uma parente do policial. Por conta disso, ele ameaçava seu filho constantemente.

    Wesley Ferreira, morto aos 17 anos, por um policial militar I Reprodução/Arquivo Pessoal

    Iracema nega que seu filho estivesse roubando na rua do policial, como ele alegou no boletim de ocorrência. “Meu filho tinha tudo, não precisava roubar. O policial debochou da gente, deu pêsames. Está solto”.

    “Ele disse que meu filho estava roubando né? Mas até hoje não apareceu a vítima”, afirma.

    Medo

    “Eu tenho medo de estar cobrando uma coisa que é direto meu. Medo não por mim, mas pelos meus outros filhos. Por mim não, porque eles não podem mais matar o que está morto. O que resta para uma mãe agora são perguntas. Por quê? O Estado tem a obrigação de dar as respostas”, narra Sol.

    Conexão Periférica, de Itaquaquecetuba, tem letra forte na música “Na calada” I Foto: Paulo Eduardo Dias

    “Como moramos perto, ele nos olha de rabo de olho. Eu tenho medo de acontecer algo com minha filha. Se ele souber que estou na luta com as Mães em Luto ele pode querer fazer alguma coisa, alguma vingança”, diz Iracema Oliveira.

    O ato por justiça se encerrou com uma apresentação da dupla rapper Conexão Periférica, que tem em seus versos de “Na calada”, uma declaração que não só as Mães da Leste sabem de cor, mas muitas outras espalhadas pelo Estado e pelo Brasil:

    “O treinamento que eles têm é para atirar, para matar qualquer tipo de suspeito. A preferência: é pobre ou preto, com a aparência simples de um jovem do gueto. É na calada que o chicote estrala”.

    Outro lado

    A Ponte Jornalismo procurou as assessorias de imprensa do Ministério Público Estadual de São Paulo e da Secretaria da Segurança Pública a respeito das denúncias levantadas pelas Mães em Luto da Leste. Até a publicação da reportagem, não houve resposta por parte da Promotoria.

    Por sua vez, a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, administrada pela empresa terceirizada CDN Comunicação, encaminhou uma nota para a reportagem, mas sem explicar a situação atual dos policiais acusados:

    “A SSP esclarece que todas as ocorrências de morte em decorrência de oposição à intervenção policial são rigorosamente investigadas. Dos casos apresentados pela reportagem, a morte de Wesley Ferreira Gomes foi investigada pelo DHPP [Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa], que relatou o inquérito à 1ª Vara do Júri no dia 05 de novembro de 2015, sem constatação de irregularidade na conduta do policial militar.

    O caso envolvendo Peterson Conti segue em andamento com o 50º DP [Itaim Paulista] por meio de inquérito policial, que corre sob segredo de Justiça. A polícia aguarda por laudo pericial complementar e a investigação está em fase final.

    Em ambos os casos a Corregedoria da PM não identificou irregularidade e aguarda o andamento dos processos na Justiça.

    Com relação ao caso de Victor Antonio Brabo, as armas do suspeito e do policial civil foram apreendidas e encaminhadas para perícia. Há inquérito instaurado no DHPP e, até o momento, não foi constatada irregularidade na conduta do policial. A Corregedoria da Polícia Civil instaurou procedimento administrativo para apuração dos fatos”.

    * Reportagem atualizada às 23h40 de 2/5/2017 para acréscimo do posicionamento da Secretaria de Segurança Pública

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