Mais de um terço das mortes em confronto com a PM de Goiás ocorre dentro de casa

    Das ocorrências registradas como confronto com a polícia militar em janeiro e fevereiro deste ano, 36,1% foram em residências

    Kayque foi morto quando estava saindo para trabalhar | Foto: Reprodução Facebook

    Publicada originalmente em O Popular

    Mais de um terço das mortes em ocorrências registradas como confronto contra a Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO) nos meses de janeiro e fevereiro deste ano ocorreu dentro de casa, conforme levantamento feito pelo POPULAR. No total, 32 pessoas foram mortas em ações de intervenção da força de segurança em residências neste período. Quase metade destas ocorrências em casas foi fruto de denúncias anônimas.

    Um dos casos, divulgado como confronto, foi o que resultou na morte do estudante Kayque Denúbio Correia Mendanha, 15 anos. Ele foi morto no dia 2 de fevereiro dentro de casa enquanto se preparava para ir trabalhar no pitdog – uma espécie de food truck – do pai. Também foi morto o autônomo Guilherme Junio Ferreira Evangelista, 27 anos, vizinho da família. Dois policiais chegaram a ser presos, mas a prisão foi revogada dias depois.

    Nos primeiros dois meses deste ano, foram registradas 72 ocorrências de confrontos com 92 mortos – número que já é 39% maior que o registrado no mesmo período de 2017. Em média, significa que uma pessoa foi morta pela PM a cada 15 horas.

    O ano passado foi o com maior letalidade policial, observando os dados disponíveis desde 2011. Comparando com 2017, em 2018 houve um aumento de mais de 50%, com 424 pessoas mortas. A reportagem conseguiu identificar os espaços onde se deram 180 das 288 ações envolvendo a PM. Das identificadas, 40% foram dentro de casa.

    Socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), Giane Silvestre afirma que o fato de as ocorrências serem em casa chama atenção. “As mortes provocadas por policiais são justificadas por decorrerem de confronto. Que tipo de confronto é esse que está ocorrendo na residência das pessoas? É um pouco estranho. Sinaliza muito mais que está havendo algum tipo de abordagem abusiva, que as mortes estejam ocorrendo por uso desproporcional da força”, disse.

    Advogado e professor da Faculdade de Direito da USP, Alamiro Velludo explica que a Constituição Federal estabelece que a casa de uma pessoa é um local inviolável, podendo haver um rompimento em duas hipóteses: ordem judicial, que só pode ser cumprida durante o dia, ou flagrante. “Desde que haja indícios veementes de que há a prática de um delito no local, e não uma mera suspeita ou denúncia anônima”, pontuou.

    O tráfico de drogas, pensando no ato de guardar droga em casa para fins de comercialização, é considerado um crime permanente, havendo sempre a ideia de possível flagrância. O professor explica que, desta forma, há a possibilidade de a polícia entrar forçadamente na residência, mas frisa: “precisa ser algo que derive de uma suspeita bastante razoável. Eu não posso, sob o pretexto de encontrar droga, fazer varreduras na casa das pessoas aleatoriamente.” Conforme advogado, é preciso haver investigação anterior, ou uma informação muito precisa.

    De 26 ocorrências em casa nos primeiros dois meses deste ano, 12 foram fruto de denúncias anônimas. Velludo pontua que não há na legislação algo que especifique o que fazer em casos do tipo. Segundo ele, à princípio, algo anônimo seria algo sem legalidade. No entanto, é preciso levar em consideração que há contatos anônimos que produzem informações relevantes. “O grande dilema é que (a ação) acaba se legitimando posteriormente, após encontrar a droga”, afirmou. Para ele, a polícia precisa deixar bem documentado qual foi o tipo de denúncia e o que exatamente foi dito pelo denunciante, tanto para amparar a prática policial, quanto para haver transparência e evitar abusos.

    Para o coordenador do Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência (Necrivi) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Dijaci David de Oliveira, o fato de a maior parte dos confrontos serem em casa mostra que a política de segurança é feita de forma casual, improvisada. “Estava em um lugar, de repente recebo uma denúncia anônima e invado uma casa porque me disseram que ali tem um suspeito? É assim que se produz a segurança?”, questiona.

    Um outro caso observado pela reportagem foi o do pintor Lucas Sousa Alves, 28 anos. Ele foi morto dentro de casa, no Residencial Santa Fé, quando havia acabado de retornar da casa da sogra, onde deixou a esposa. A ação, realizada pelo Grupo de Radiopatrulha Aérea da PM (Graer), foi no período da tarde. A polícia afirma que recebeu denúncia anônima de que ali se encontrava um homem integrante de uma facção criminosa. Ao ir ao local, disseram ter olhado por debaixo do portão e visto Lucas com uma arma. Ao entrarem, a polícia afirma ter sido recebida a tiros, e por isso atingiram Lucas, que morreu no local. Eles alegam ter achado maconha.

    A reportagem apurou que os militares recolheram os objetos e não quiseram entregar à Polícia Civil (PC) no local, tendo preferido entregá-los na Central de Flagrantes. A Secretaria de Segurança Pública (SSP) foi questionada quanto às provas de envolvimento de Lucas com facção criminosa, mas não houve resposta. A pasta disse apenas que todas as ocorrências passam por investigação rigorosa. Lucas vivia com a esposa e duas filhas, de 10 e 3 anos. Eles moravam na casa há seis anos.

    Apesar de não se enquadrar nas nos casos ocorridos em casa, assim como a morte de Kayque, a ação que vitimou Jefferson Alves Martins, de 25 anos, é lembrada pelo secretário da SSP Rodney Miranda, que o caracterizou como sendo “sob suspeita”. O jovem foi morto em fevereiro, em Aragarças. Policiais relataram terem sido recebidos a tiros no momento da abordagem. A vítima, porém, enviou gravações por WhatsApp para a mãe e a namorada, sem que os policiais percebessem, dizendo que havia sido preso, mas que esperava ser liberado logo. Dois policiais foram presos suspeitos de terem matado o jovem.

    PM matou uma pessoa a cada 20 horas em 2018

    O ano de 2018 foi o de maior letalidade policial, com 424 pessoas mortas em ações da Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO). Isso significa que houve uma morte em intervenção policial a cada 20 horas. Outras duas ocorrências que resultaram em três mortes, em fevereiro e novembro, foram da Polícia Civil. Dentre os mortos nestes registros obtidos pelo POPULAR, não houve vítimas policiais.

    Como comparação, pode-se observar que em São Paulo, por exemplo, foram 821 mortos pela PM no ano passado – ou seja, uma taxa de 1,8 morto por 100 mil habitantes, enquanto em Goiás a taxa foi de 6,1. Em 2017, foram 3,9 mortos por 100 mil habitantes em Goiás, enquanto em SP a taxa foi 1,9.

    Já no Rio de Janeiro, em 2018, foram 1.532 homicídios por intervenção de forças policiais – ou seja, 8,9 mortes por 100 mil habitantes. No ano anterior, o número foi 6,7. Assim, Goiás obteve em 2018 uma taxa aproximada que a registrada no Estado do RJ em 2017.
    Socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), Giane Silvestre afirma que é necessário analisar o contexto do Estado para entender o que está por trás da alteração dos números.

    No entanto, segundo ela, já foi possível observar em outras unidades federativas que o aumento da letalidade está relacionado ao comando da Segurança Pública e da PM.

    “É bastante comum que quando você tem um comando, desde a fala do governo até do próprio secretário e do comando da PM, com um discurso que incentiva uma atuação baseada no uso excessivo da força, os números aumentem consideravelmente. Os discursos dos comandos têm muita influência sobre o que acontece na ponta, na ação dos policiais”, disse. Giane pontua que este é o discurso visto, por exemplo, no Rio de Janeiro e no próprio governo federal.

    Uma fonte da Segurança Pública que preferiu não ser identificada afirma que a tendência de um bandido é a rendição, não o confronto. “Ele sabe que no máximo vai pegar cadeia, e de lá ele foge ou fica pouco tempo”, disse. Entretanto, segundo ela, se souber que a polícia tem matado ao invés de prender, o suspeito irá ao confronto – o que aumentará a taxa de reação contra os policiais, e pode levar a um aumento de vítimas policiais.

    Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência (Necrivi) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Dijaci David de Oliveira afirma que dados mostram que o Estado está migrando de um modelo de segurança cujo objetivo era reduzir a violência por meio das prisões para um modelo de enfrentamento com mortes. “Agora, o que vai garantir a segurança da população é a eliminação dos criminosos, e não mais a prisão deles. É isso que vai gerar tranquilidade nas pessoas: quando acreditarem que os bandidos estão sendo eliminados”, disse.

    Polícia invade casa após ver marcas de tiro em carro estacionado na rua

    Dentre os casos de confronto em residência de janeiro deste ano está o que resultou na morte de Matheus Alves Fernandes, de 22 anos, e Vitor Caetano de Souza, 24, em Goianira, cidade a cerca de 50 quilômetros de Goiânia. Os policiais alegam que faziam patrulhamento por uma rua do Setor Real Conquista e viram um veículo com marcas de perfuração que aparentemente seriam de arma de fogo na porta. O carro estava estacionado em frente a uma casa e os policiais entraram e abordaram um homem. Ele era foragido pelo crime de homicídio.

    No local, os policiais alegam ter encontrado droga e dois carros roubados. Segundo eles, o homem teria, então, relatado um endereço onde havia mais droga. Na outra casa, os militares alegam terem sido recebidos a tiro, atingindo os dois jovens, que morreram no local. A polícia diz ter apreendido na casa mais droga, bloqueador veicular, armas e carga possivelmente roubada de bebidas. Em audiência de custódia, o homem alega ter sido agredido fisicamente e torturado dentro de casa.

    Um policial morto em intervenção

    Dentre as 92 pessoas mortas em 72 ações registradas como confronto em janeiro e fevereiro deste ano, está um policial militar. O sargento André Balselar Ramos estava de folga e foi morto em um assalto no Entorno do Distrito Federal em fevereiro. No último dia 12, houve um caso de um policial atingido em um confronto. O soldado Maurício Estevan Machado foi baleado no abdome em uma perseguição policial no Jardim Curitiba III, em Goiânia, tendo recebido alta hospitalar no mesmo dia.

    Já em relação aos dados de 2018, nas 290 ocorrências de confronto (incluindo dois casos da Polícia Civil), não há nenhum registro de policial assassinado.

    A reportagem buscou casos noticiados e identificou alguns envolvendo policiais mortos, mas não em confrontos. Foi amplamente divulgado, por exemplo, o caso do sargento da Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas (Rotam) Mackleiton Rodrigues Alves, que foi baleado por outro militar enquanto perseguia um homem em Goiânia, em novembro. Na época, falou-se que o homem, que estava descaracterizado, foi atingido por engano.

    Na última quarta-feira (17), o 2º sargento da Polícia Militar (PM) José Pereira da Silva, 44 anos, foi morto enquanto levava a namorada ao trabalho, no bairro Chácaras São Pedro, em Aparecida de Goiânia. Integrante da Rotam, ele estava de motocicleta e foi abordado a três quadras de sua casa por dois homens, em duas motos, que deram a voz de assalto. O sargento foi atingido na cabeça e não resistiu aos ferimentos.

    Um adolescente de 15 anos foi apontado como autor do disparo que matou o sargento. A polícia conseguiu encontrá-lo porque ele foi baleado no braço durante o crime e procurou atendimento médico. Ao titular da Delegacia de Apuração de Atos Infracionais (Depai) de Aparecida de Goiânia, Carlos Levergger, ele contou que fazia um arrastão naquele bairro. Segundo o delegado, o adolescente tem registros de atos infracionais análogos aos crimes de estupro de vulnerável, ameaça e roubo. O primeiro deles teria ocorrido aos 12 anos.

    Um outro homem apontado como suspeito de ter participado do crime foi morto no último dia 18 em uma ação policial. Segundo PM, após ser encontrado, Weberson Pereira dos Santos, de 20 anos, reagiu à abordagem atirando contra os policiais, que revidaram.

    Segundo investigações, um terceiro suspeito, que teria ficado nas imediações aguardando a motocicleta do sargento, é irmão do adolescente.

    Em nota, a PM lamentou a morte do sargento. “Policial honrado, altamente treinado, que serviu nas fileiras da PM-GO por quase 19 anos. Que Deus em sua infinita bondade o acolha em Seus braços”.

    Como publicado pelo POPULAR na quinta-feira, Silva era uma pessoa querida e respeitada no bairro onde vivia, apontado como uma espécie de guardião pelos vizinhos. Divorciado, vivia com o casal de filhos de 19 e 16 anos em uma casa simples, muito próxima ao local onde perdeu a vida. O policial foi sepultado no Cemitério Parque Memorial de Goiânia, na última quinta-feira (18).]

    Sem pedido de auxílio ao GCEA

    O Grupo de Controle Externo da Atividade Policial (GCEAP), do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), informou que, apesar de receber as informações de todas as ocorrências de morte por intervenção policial, não possui atribuição de agir em nenhum caso sem que haja pedido de auxílio do promotor natural e subsequente autorização do coordenador do grupo. No ano passado, na maioria das 290 ocorrências do tipo (288 envolvendo a Polícia Militar), não houve pedido de auxílio ao GCEAP por parte dos promotores naturais, que são todos os membros do MP que atuam nos crimes dolosos contra a vida.

    Para o grupo, a ausência de pedidos de auxílio se deve por uma série de fatores. A mais comum é, segundo nota enviada, o fato de os promotores naturais “perceberem elementos suficientes para caracterizar a legítima defesa própria ou de terceiro na ocorrência policial em que há morte”, razão pela qual nem oferecem denúncia.

    O GCEAP foi criado em Goiás em 2014 com o objetivo de buscar a prevenção e correção de irregularidades praticadas por membros das forças policiais do Estado. Neste ano, o caso da morte de Jefferson Alves Martins, de 25 anos, em que dois policiais foram presos suspeitos de matar o jovem e fraudar o local de crime, contou com atuação do grupo.

    Desde 2017, após portaria da Secretaria de Segurança Pública (SSP), a pasta deve repassar, por meio da Superintendência de Inteligência Integrada, todos os casos de confronto ao GCEAP em um prazo máximo de 24 horas. No total, o órgão do MP deve ser abastecido com 12 informações das ocorrências, dentre elas os nomes dos civis e dos policiais envolvidos.

    Secretário de Segurança Pública de Goiás, Rodney Miranda afirma que os casos são todos encaminhados ao MP-GO. Miranda disse ainda que as mortes em confronto são relatadas e investigadas pelas corregedorias. De acordo com ele, todas as ocorrências se tornam inquérito e são remetidas à Justiça, que decide qual será o encaminhamento. “Não há nenhum que é engavetado. Não temos esse poder”, disse.

    Colaboração: Vinícius Marques

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