Manter prisão em 2ª instância trará ‘mais dor e sofrimento’ a negros e pobres, diz IDDD

    Presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa explica que discussão vai além de Lula e que Justiça tem ‘desapreço’ por Constituição

    Hugo Leonardo (à esq.) defende que manutenção da prisão em segunda instância afeta principalmente negros e pobres | Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

    A Constituição brasileira diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O texto está no artigo 5º do texto, em seu inciso 57. Porém, terá aplicação analisada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) que julga, desde o dia 17 de outubro, a possibilidade de se prender pessoas que forem condenadas em segunda instância e em meio ao andamento do processo. Nesta quinta-feira (7/11), os ministros retomam o julgamento. Para Hugo Leonardo, presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), manter a prisão afeta os direitos prioritariamente dos negros e pobres.

    A questão gera a dúvida se, ao prender alguém após condenações impostas pelos TJ (Tribunais de Justiça, considerada a segunda instância), a Justiça está ou não levando em conta o “trânsito em julgado”, pois ainda há duas esferas superiores: o STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o próprio STF. O que o STF julga é a possibilidade legal de acontecer uma prisão sem o esgotamento dos recursos. Prender alguém em segunda instância é como precipitar a condenação, já que qualquer acusado tem o direito de defender sua inocência até o processo ser transitado e julgado. É o que defende o presidente do IDDD.

    Em entrevista à Ponte, Leonardo pontua que a discussão mostra o “desapreço” do país e da própria Justiça pela Constituição Federal de 1988. “Preocupa o que será do nosso país naquelas situações em que há interesses em jogo e cuja a clareza do texto não seja tão evidente como essa norma”, completa. Para Hugo, o que falta no Brasil é investigação, o que nada se altera com a prisão em segunda instância, “muito pelo contrário, que é a execução provisória da pena. O que falta é inteligência e racionalidade processual. No país com a terceira maior população carcerária do mundo, queremos erroneamente antecipar a pena de um indivíduo que ainda tem o direito de ter o seu processo revisto”, sustenta o advogado.

    Ponte – Em linhas gerais, o que está em jogo com a análise da prisão em segunda instância?
    Hugo Leonardo – O que eu acho importante dizer a respeito disso é que é uma daquelas garantias individuais que tem um conteúdo de regra na nossa Constituição. Não é uma norma programática, é uma regra. É uma regra constitucional expressa, de que o estado de liberdade, na nossa Constituição Federal, é um status de liberdade até o trânsito e julgado. Então, é muito importante que esse tipo de comando constitucional seja devidamente valorizado, porque se nós começamos a relativizar regras, o que nós não faremos com as demais garantias individuais? Eu costumo dizer que isso é um pilar do próprio pacto político, porque na medida que você elege uma norma como essa a uma cláusula pétrea como fizeram, essa normal ela está para a base da democracia. Esse direito individual está diretamente proporcional à importância que se dá às bases da democracia, que são as razões da imutabilidade dessas regras consolidadas em cláusulas pétreas na nossa Constituição Federal.

    Não é possível o Supremo Tribunal Federal imaginar ou pretender que pode – dizendo que está fazendo uma interpretação – flexibilizar uma regra. É papel do Supremo reinterpretar alguma coisa? É papel do Supremo, no máximo, interpretar uma lacuna. Resolver uma situação que haja colidência de normas, uma antinomia. Não é antinomia isso, é Constituição expressa. Só há uma possibilidade para esse tipo de discussão, ou seja, revalidar, ratificar o que a Constituição documentou e que foi fruto de um pacto político nascido em 1988. 

    Ponte – Quando se fala em prisão em segunda instância o debate inicial é sobre o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT). É exclusivamente este o debate ou há outras questões em jogo?
    Hugo Leonardo – O processo do presidente Lula é um processo. Nós temos mais de 800 mil presos no Brasil, nós temos mais de 50% de presos provisórios no Brasil. A legislação federal e, com muito mais intensidade, a norma constitucional, não pode ser tratada ou interpretada por um processo, por mais importante que seja o acusado desse processo. É importante que um país civilizado, em primeiro lugar, revalorize, ou seja, valorize. Confirme a todos os instantes as formalidades do processo, as regras do jogo. Não é possível querer mudar a regra do jogo com o jogo em andamento. Não importa a quem se destina o processo, não importa quem é o acusado e não importa o que acontecerá com 1, 2, 3, 4, 5 casos especificamente. Importa dizer que nós temos uma regra que é fruto de um pacto político, um pacto federativo, que veio de uma consolidação de um momento importante da história do nosso país. E que essa regra foi alçada com a cláusula pétrea, como núcleo desse texto constitucional. É isso que a gente precisa respeitar. Nenhuma consequência advinda da aplicação dessa norma pode ser atuada para flexibilizar essa norma. Esse é o ponto.

    Ponte – Isso impacta no trabalho dos defensores?
    Hugo Leonardo – Isso impacta, e muito, a forma como o país lida com os seus presos, como o país lida com os seus processos criminais. Como eu disse, o nível de civilização de um povo também se mede pela forma como os réus são tratados, como os acusados são tratados e como as garantias de direitos individuais são tratados, respeitados e invioláveis. O que está em jogo, o que está em disputa nessa história é sim cuidar de garantir a todos os cidadãos brasileiros e não só aqueles que hoje estão acusados. Uma garantia individual é voltada a todos nós, brasileiros. Ela é uma garantia que se estende a todos nós. E flexibilizar uma garantia dessas é flexibilizar outras garantias. O que não faremos com outros direitos, se estamos flexibilizando uma clausula pétrea, cuja norma é expressa, a ponto de ser uma regra? O que não faremos com o direito, por exemplo, a liberdade de expressão? O que não faremos com a liberdade de imprensa, se nós não respeitamos uma clausula pétrea, que é um direito tão fundamental que é o status libertais? O direito de se considerar inocente até que se transite em julgado o seu processo. O que será o direito a liberdade de imprensa se estamos flexibilizando essa regra?

    Ponte – As condenações podem ficar mais aceleradas?
    Hugo Leonardo – Esse discurso de que o processo vai tramitar mais rápido ou menos rápido é uma bobagem sem tamanho. O processo vai demorar o tempo que ele tiver que demorar, porque a gente não está falando de encurtamento processual. A gente está falando em execução provisória da pena ou não. E isso não muda a marcha processual. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Não tem nada a ver. É um argumento completamente equivocado, como tantos outros que se utilizam, para tentar fazer uma cortina de fumaça em um tema que é central, constitucional e que deveria ser respeitado por justamente aqueles que juraram compromisso a Constituição Federal, que são os ministros do Supremo Tribunal Federal.

    Ponte – Somos a terceira maior população carcerária do mundo. Como a decisão sobre segunda instância impacta nisso?
    Hugo Leonardo – Nós temos uma quantidade já absurda de presos em relação ao número da nossa população. Nós somos um país que mais prende, mais reprime socialmente. O discurso de que somos um país sem impunidade é mentira. A impunidade que existe, se é que existe algum impunidade, é a impunidade de não investigarmos bem crimes que são cometidos. Nós prendemos muito e ainda prendemos muito mal. Trazer mais inteligência para a investigação e racionalidade ao processo criminal, queremos utilizar uma coisa que não altera em nada o conteúdo do processo, muito pelo contrário, que é a execução provisória da pena. Só trazemos prejuízo com isso, porque ao invés de aprimorar a qualidade da prova, das decisões que nós temos no país, nós queremos executar antecipadamente pena de um sujeito que ainda tem o direito de ter o seu processo revisto. Isso, em um cenário de 800 mil presos, de uma desigualdade social, que boa parte da população brasileira não tem acesso digno a Justiça. As defenderias públicas se esforçam, mas, infelizmente, ainda não são suficientes para dar conta do número de presos e número de processos que nós temos. Nós criamos a possibilidade de aumentar o risco de erro e de injustiça. 

    Ponte – Como a questão da prisão logo após a segunda instância afeta negros e pobres?
    Hugo – Os negros e os pobres já são absurdamente sobrerrepresentados na cifra penal. Eles são muito mais presentes no sistema de Justiça criminal do que fazem parte a população brasileira. Eles são sobrerrepresentados. E a possibilidade de recrudescimento penal vai trazer muito mais dor e sofrimento a esse público seletivo, para essas pessoas selecionadas pelo sistema de justiça criminal. 

    Ponte – O que podemos falar sobre essa população pobre e negra presa em prisões cautelares, que são as temporárias e preventivas?
    Hugo Leonardo – Essa população sobrerrepresentada, essa cifra penal de sobrerrepresentação de negros, pobres e jovens, é espelhada núcleo da instituição provisória. Essas pessoas também estão sobrerrepresentados quando nós olhamos para o altíssimo índice de prisão provisória. Quem está preso provisoriamente no Brasil são essas pessoas, os habitantes das grandes periferias das cidades. Direito penal, infelizmente, seleciona essas pessoas e ao selecionar essas pessoas pune com muito maior rigor aqueles que são mais vulneráveis, com identidade de raça claramente demarcada. 

    Ponte – Como fica a questão da impunidade dos poderosos, que podem recorrer até o caso prescrever?
    Hugo Leonardo – Eu não gosto muito de dizer que os poderosos não são punidos porque aí a gente tem uma ideia de que o sistema de justiça criminal não pune. E quando falamos isso, o que acontece é que ao entoar que precisamos “democratizar” a punição, ou seja, punir todos os andares das nossas classes sociais. Que precisamos punir da mesma forma. Nós acabamos tornando o sistema punitivo estatal ainda mais agressivo, ainda mais violento e ainda mais injusto. O que precisamos fazer é punir com mais racionalidade e punir menos. Ou seja, punir com mais racionalidade automaticamente vai se punir menos todo mundo, inclusive quem estamos punindo muito e indevidamente. O que precisamos fazer é investigar melhor, porque mais de 90% das pessoas que são condenadas são aquelas pessoas presas em flagrante. Isso mostra que a investigação no Brasil é muito ineficaz. Então, ao invés de falar de punição, de punir os poderosos, eu prefiro dizer que o Estado brasileiro poderia investir mais em racionalidade, investir mais em investigação e ter uma objetivação mais inteligente. Aí nós teremos decisões de melhor qualidade e puniremos aqueles que teremos que punir. A punição não deve estar voltado a X, Y e Z, porque senão começamos a entoar o direito penal do autor. Eu não gosto muito dessa visão. Eu gostaria que o direito penal operasse com uma ótica de racionalidade. Falo em uma sentença em um processamento justo e não processamento que resulte em condenação. 

    Ponte – O que seria essa terceira via, com prisão sem trânsito em julgado e com decisão do STJ? 
    Hugo Leonardo – Esse argumento, essa possibilidade, ou essa terceira via, como se queira chamar, ela é tão inconstitucional quanto a decisão de prender provisoriamente. Na Constituição está escrito que tem que punir a partir do julgamento do STJ. Ou cumprimos a Constituição ou não cumprimos a Constituição. Não tem meio termo. 

    Ponte – O que mais precisa ser discutido sobre a prisão em segunda instância?
    Hugo Leonardo – Esse tema é de uma complexidade jurídica rasa. Não há nenhuma dúvida a respeito desse tema, muito me espanta nós estarmos com o Supremo Tribunal Federal gerando pauta jornalística, de um assunto que é absolutamente claro. Isso mostra como nós estamos indo mal e como temos desapreço com a Constituição Federal. Como tamos desapreço a um pacto que nós tivemos, republicano, federativo. Isso me preocupa demais, porque se não respeitarmos um texto constitucional, uma clausura pétrea, que tem uma redação tão clara e tão evidente como essa, me preocupa o que será do nosso país naquelas situações em que há interesses em jogo e suja clareza do texto não seja tão evidente como essa norma. Eu espero, sinceramente, que o Supremo Tribunal Federal resgate o seu papel de garantidor da Constituição. Espero que o Supremo Tribunal Federal tenha um papel de serenidade, com firmeza e de valorizar aquilo que é a sua função de princípio: garantir a rigidez do texto constitucional. 

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