“Me ressinto de a FMUSP não ter feito nada sobre os trotes”, diz ex-aluno

    Médico que foi presidente do Centro Acadêmico da faculdade foi vítima de trote violento e denunciou o Show Medicina
    rsz_fachada_fmusp_dia
    Fachada da Faculdade de Medicina da USP. Foto: Divulgação

    Em 1991, o hoje psiquiatra Maurício Lucchesi era um calouro recém-admitido na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) quando, numa noite de pizzada organizada pela Atlética, foi submetido a um “pascu”, ou “pasta”, prática de passar pasta de dentes nas nádegas e/ou ânus de um aluno. “Fui pego por várias pessoas. É uma situação bem desagradável publicamente ser violentado com a pasta de dentes”. Até hoje, ele não sabe o motivo de ter sido o escolhido da noite, “mas foi algo bastante marcante. Não consegui digerir direito, só depois de muitos anos”.

    Na época, relata, não havia um movimento de estudantes para denunciar as práticas de violência cometidas durante os trotes, “que nunca respeitaram a opinião dos alunos”. Porém, avalia, quem vivia e presenciava tais práticas “sabia que um dia aquilo poderia resultar em algo muito grave”, diz, referindo-se à morte de Edison Tsung Chi Hsueh, em 1999, na piscina da Atlética, durante uma festa de recepção aos calouros.

    A experiência violenta o afastou da Atlética da Faculdade e consequentemente do Show Medicina, grupo que realiza anualmente uma apresentação teatral de veia humorística, que este ano chegou à sua 72ª edição. Em 14/11, a Ponte denunciou a existência de castigos físicos, trotes violentos e humilhações nos meses de preparação da peça. Depoimentos de ex-alunos mostram que essas práticas violentas já fazem parte do currículo da instituição há pelo menos duas décadas.

    Em 1993, Lucchesi foi presidente do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC), quando ele e outros integrantes denunciaram as violações. “Poucas pessoas sabiam o que acontecia lá. Mesmo quem passava pelo trote e não queria continuar era ameaçado de forma muito violenta para não divulgar o que acontecia durante os ensaios.”

    Denúncia

    Naquele ano, o jornal do centro acadêmico publicou textos assinados pelos alunos Luís Fernando Tófoli e Leon Lobo de Souza Garcia, hoje também psiquiatras. “Houve uma repercussão grande na faculdade, mas dificuldades das comissões em investigar a fundo a questão”, afirma. Como consequência às denúncias, a diretoria da faculdade decidiu que o Show Medicina ficasse sem acesso ao teatro, medida que durou dois anos.

    A denúncia, avalia Lucchesi, foi “histórica”, porque o Show era muito blindado. “Havia muita dificuldade de saber o que acontecia lá. O que sabíamos, explica, era que havia pessoas mais velhas que apoiavam e iam às apresentações. Havia uma proteção na investigação desses casos por parte de professores que faziam parte dessas comissões, que não andavam. Então presumíamos que deveria haver algum acordo tácito em torno dessa tradição, dessa irmandade.” Segundo o psiquiatra, “assim como hoje a faculdade parece não querer passar a situação a limpo, sentíamos o mesmo na época. Talvez porque muitos dos professores passaram pelo Show”.

    Ainda em 1993, Lucchesi denunciou um suposto pagamento de propina para bedéis que controlavam a lista de presença das aulas da faculdade. A acusação foi publicada num artigo do Jornal do Campus da USP. A direção da faculdade, que tinha à frente Adib Jatene, instalou uma comissão para investigar o caso. Como resultado, Lucchesi foi julgado e suspenso. “Isso aconteceu porque eu não apresentei provas, já que eram denúncias de alunos que tinham me relatado a situação, e não quis entregá-los”. O aluno organizou um abaixo-assinado junto aos estudantes da FMUSP e em outras faculdades de Medicina e, assim, conseguiu reverter a suspensão. No ano seguinte, a faculdade investigou o caso e chegou à conclusão que havia mesmo uma situação de irregularidade, determinando o controle de lista feito por bedéis.

    Acobertamento

    Para Lucchesi, o Show Medicina “corporifica essa tradição da faculdade, tanto em relação à da história das pessoas que passaram por lá, quanto desse tipo de acobertamento que se faz”, acredita. “É uma cultura que se cria, na qual há uma situação que propõe uma relação de descaracterização, individualização, submissão”. E, há, explica, “um vínculo que se cria e que favorece uma certa proteção. Quem passa pelo trote depois perpetua a situação. E as relações vão se mantendo com trocas de favores, fisiologismo e acobertamento”.

    Segundo ele, essa proteção dos “sapos”, como são conhecidos os integrantes do Show Medicina que já terminaram a graduação, tende a minimizar os abusos cometidos pelos alunos e segue “para a vida adulta”, “acobertando situações envolvendo alguma irregularidade dentro de algum departamento, oferecendo privilégio a um professor em algum concurso e até segregando alguma pessoa que não faça parte da ‘irmandade’”. “Há pessoas bastante importantes dentro e fora da faculdade, de outras instituições e esferas da instituição, por exemplo. E como tem esse vínculo, acabam sendo lenientes, dando certa proteção, sob a desculpa de ‘isso é coisa de menino’. Isso favorece muito para não se colocar um limite nesses excessos.”

    Perpetuação da violência

    Depois da sua formatura, em 1997, Lucchesi continuou ouvindo relatos de violências cometidas nos trotes da faculdade, “algo difícil de se conceber”. O psiquiatra afirma que guarda ressentimento em relação à instituição, por ter mantido a impunidade em relação aos casos de violência e desrespeito. “As pessoas que participavam do trote entravam porque era algo institucionalizado e muita gente acabava caindo nessa. Mas quem realmente poderia mudar algo, as diretorias, por exemplo, não fizeram. Eu me ressinto de não terem feito nada, de terem perpetuado essa violência e acabado nessa situação lamentável ao longo de todos esses anos”, avalia.

    Para ele, passados 21 anos das denúncias feitas, as violências continuam existindo na faculdade porque as pessoas de certa forma se sentem comprometidas com a instituição e, por conta de um vínculo com o grupo, acabam distorcendo a realidade. “Inclusive pessoas influentes e importantes dentro da faculdade que talvez não compactuem diretamente, mas que não fizeram seu dever de denunciar a situação para que não se chegasse a esse tipo de complicação.”

    Lucchesi acredita que há uma cultura de naturalização da situação. “São coisas que elas não acham certo no começo, mas depois fazem também. É como se lá houvesse uma lei própria, como se a lei não entrasse ali”. Como exemplo, o psiquiatra fala de um colega que na época em que eram estudantes concorreria para a residência de uma carreira muito difícil de entrar, a cirurgia. “Ele falou assim: ‘Se eu precisar dar o cu para entrar na residência da cirurgia, eu vou dar. Mas depois que eu entrar, eu vou comer’. Eu não acho que a maioria das pessoas pense assim, não com toda essa clareza. Mas há algum rabo preso que vai ficando, que impede as pessoas de colocarem um ponto final nessa história, de uma vez por todas.”

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas