‘Me sinto abandonado. Em vez de levantar o pião, eles derrubam ainda mais’

    Homem em situação de rua que vive na Cracolândia encontra dificuldade para conseguir ‘kit viagem’, custeado pela Prefeitura de SP, para retornar à cidade de origem

    Carlos Henrique caminha pela Rua Helvétia | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    O pedreiro Carlos Henrique Santos Silva, 38 anos, mais de 12 morando na rua, tem um objetivo muito claro: retornar à Pesqueira, em Pernambuco, onde nasceu e viveu até os 18 anos. A arcada dentária superior de Henrique, como gosta de ser chamado, está toda comprometida. Os quatro dentes da frente ficaram destruídos pelo uso de crack e, segundo ele, pela cocaína. “A gente passa na gengiva para o efeito ser mais rápido”, conta. “Eu entro no fluxo de vez em quando para comprar droga, mas crack não uso mais. Agora só as mais leves, tipo maconha e, de vez em quando, cocaína. E viver lá dentro [do fluxo] nunca”.

    Há pouco mais de dois meses na Cracolândia, Henrique sobrevive “fazendo uns corres” e até o mês passado fazia artesanato com material reciclável. “Roubaram todas as minhas coisas um dia aí que teve uma briga perto do fluxo. Eu estava na tenda e parei para olhar, prestar atenção no que estava acontecendo. Aí um cara, um usuário roubou todas as minhas coisas. Todo material, minhas roupas. Eu só tenho essa roupa aqui que me doaram ainda, porque nem dinheiro para comprar eu teria”, lamenta.

    Henrique estava vivendo na rua na região da Mooca, onde há alguns serviços voltados a população em situação de rua, como os Centros POP. Ele decidiu seguir para a Cracolândia, atraído pela notícia de que o prefeito João Doria (PSDB) e também o secretário da assistência social, Filipe Sabará, falavam de ampliação do programa de passagens para quem quisesse retornar à cidade natal. Mas, segundo Henrique, a propaganda, pelo menos até agora, foi enganosa.

    Os funcionários da assistência social orientaram Henrique a buscar um contato da família em Pernambuco, um procedimento padrão do programa, até para certificar que o vulnerável terá uma melhora de vida e um local para ser recebido quando retornar ao município de origem.

    “Eu tenho contato com minha família pelo Facebook. Eu uso no Poupatempo da Sé e, de lá, falo com duas tias e uns primos meus. Pedi o telefone de uma dessas tias e entreguei para o pessoal da assistência”, explica. “E tenho cobrado se eles ligaram. Faz mais de 15 dias que entreguei o contato e minha tia disse que ninguém ligou. Aí eu cheguei e perguntei ‘Vocês ligaram pra minha tia?’. E eles falaram: ‘Ligamos’. Só que eu tinha falado com ela, que disse que ninguém ligou”.

    Henrique confrontou o funcionário, que disse que “havia tentado o contato, mas sem sucesso”. O pernambucano afirma que está se sentindo abandonado. “No lugar de levantar o pião, eles estão derrubando mais ainda. Vai acabando com nossa fé”, diz o rapaz, que conta que um funcionário da assistência social, comovido com a história dele, disse que se fosse um local mais próximo, pagaria a passagem do bolso dele.

    Esse discurso não é propriamente uma novidade. No mês passado, o secretário Filipe Sabará postou um vídeo na rede social dele, ao lado de um suposto morador de rua do Maranhão, no trajeto da Luz até a rodoviária, onde o rapaz, identificado como Antonio, foi colocado em um ônibus. Questionado pela reportagem do UOL sobre o custo da passagem, Sabará disse que “pagou do próprio bolso”.

    O terceiro abandono

    Henrique tem um histórico de duplo abandono por parte da mãe, com quem morou em São Mateus, na zona leste, quando veio para São Paulo, há 20 anos. “A minha mãe não gosta de mim. É um fato. Quando eu tinha 4 anos de idade ela me abandonou em Pernambuco e foi embora para a vida. Aí ela voltou atrás de mim, quando eu estava perto de completar 18 anos e fui iludido com a ideia de conhecer São Paulo. Acabei vindo com ela e meu irmão. Só que nossa convivência não foi boa. Depois de pouco tempo ela virou evangélica e queria que eu ficasse na igreja a força e isso não era pra mim”, conta.

    Henrique já usava drogas nessa época e, segundo ele, a mãe o expulsou de casa quando deixou de ir aos cultos da igreja. “Eu parei através da igreja. Fiquei por uns dois anos. Aí eu tive uma recaída e voltei de novo a usar drogas, mas crack não. Fui para as mais leves, maconha, cocaína”, conta. A mãe acabou por expulsá-lo definitivamente. “Ela me proibiu de falar com meu irmão também”, lamenta.

    Henrique conta que se arrependeu e chegou a prometer que mudaria de vida, mas a mãe não perdoou. “Eu liguei para ela no Dia das Mães e ela disse: ‘se soubesse que era você nem teria atendido’. Aí eu falei: ‘Só liguei pra desejar feliz Dia das Mães’. E ela disse que eu não era mais filho dela. Isso afeta a gente, sabe?”.

    Agora, sem conseguir retornar à Pesqueira, se sente abandonado pela terceira vez. Henrique tem usado os programas disponíveis pela Prefeitura de São Paulo. Todos os dias cumpre a mesma rotina: chegar na fila por volta das 15h30, esperar pela senha até 16h30 e esperar uma hora para entrar nos containers.

    Apesar disso, avalia bem o serviço: “Você entra umas 17h30, pode tomar banho, jantar e dormir. O banheiro é limpo, a cama também”. Henrique, contudo, conta que existe uma burocracia que precisava ser revista. “Os encaminhamentos são conjuntos. O que acontece é que, às vezes, o cara só quer jantar ou tomar banho. Não quer dormir. E acaba pegando vaga de quem quer o serviço todo. Esses dias, por exemplo, era alta noite já e tinha cama vazia em uns cinco containers”, conta.

    “O único albergue que não tem condição de tomar banho ou dormir é o Prates [emergencial, na rua Prates, também na região]. É nojento. Eles colocaram uns banheiros químicos, é um horror. Tem gente que chegar e não consegue entrar no banheiro e faz tudo no chão”.

    O promotor Eduardo Valério, da Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo, explica que é prerrogativa do município destinar orçamento para esse fim, mas que cada caso deve ser analisado individualmente.

    “Existem normas a serem cumpridas, por exemplo, a garantia de que haverá no local de destino um familiar a receber essa pessoa. Porque senão você estará tirando a pessoa de um local e colocando em outro e a situação de vulnerabilidade persistirá. Depois de estabelecer esse contato com a família e certificar que o vínculo poderá ser restabelecido por vontade de todas as partes, é necessário que a assistência do local de origem entre em contato com o sistema do local de destino para garantir que receberá essa pessoa”, explica.

    Sobre o caso de Henrique, o promotor Eduardo Valério diz que é difícil ter certeza do que pode estar acontecendo, mas levanta algumas possibilidades. “A prefeitura está sem dinheiro, tem cortado gastos onde é possível, não é difícil imaginar que esse programa possa ter sido afetado de alguma forma”, pondera.

    “A outra possibilidade que precisa ser analisada é, por exemplo, a assistência ter de fato entrado em contato com essa tia que, para ele, disse que poderia recebê-lo por falta de coragem de dizer a verdade, mas quando o agente ligou a tia disse que não teria condições ou mesmo que não gostaria de restabelecer qualquer vínculo”, avalia.

    Valério destaca que a premissa do programa de pagamento de passagens municipal é o livre arbítrio do solicitante. “Às vezes, o cara pode ser do Nordeste, ter vindo na esperança de dias melhores, ter dado tudo errado, mas ainda assim, preferir ficar. Nenhuma prefeitura pode impor a saída. Isso seria o que a gente chama de sequestro. A gente até tem informações que em cidades menores existe uma prática de colocarem moradores de rua em uma van e levarem para município vizinho, de madrugada. Não conseguimos provar, mas se ouve falar, sim. Isso é uma deturpação”, ressalta.

    “Também por isso houve a abertura de investigação diante da atitude do secretário Filipe Sabará. Não está comigo esse assunto, mas me parece que, nesse caso, foi apenas uma atitude pessoal dele e não do ente público”, afirma.

    Outro lado

    A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social informa que mantém o Centro de Referência do Migrante no Terminal Rodoviário do Tietê, desde 2003. O serviço oferta “kit viagens”, refeições, passes de Metrô, encaminhamento para serviços sócio-assistenciais e passagens rodoviárias.

    O último benefício visa oferecer suporte a quem migrou e tem necessidade de retornar para a cidade de origem por vontade espontânea. A equipe de assistentes sociais pesquisa se existem familiares ou amigos que podem acolher e dar suporte em seu retorno. No caso do migrante não querer deixar a cidade, é encaminhado para um dos serviços da rede sócio-assistencial para que tenha acesso a um local para dormir, refeições e demais atendimentos.

    São oferecidas, em média, 100 passagens mensalmente. Em 2015, foram 1.348 benefícios, enquanto em 2016, 1.416. Até maio de 2017 foram 566 pessoas beneficiadas.

    Em relação ao ATENDE, o jantar não está condicionado ao pernoite. Se um usuário faz a refeição e prefere voltar para a rua, é registrado como “evasão”, e a vaga para pernoitar é automaticamente liberada para outra pessoa.

    Com relação aos banheiros químicos do Complexo Emergencial Prates, os equipamentos são limpos diariamente.

    A reportagem questionou a pasta municipal sobre a situação de Carlos Henrique:

    Qual o motivo da demora?

    O programa ainda está em vigor ou sofreu cortes?

    Há alguma escala de prioridade? Se sim, qual é ela?

    Mas a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social não se manifestou sobre o caso específico de Carlos Henrique.

     

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