Mesmo com pandemia, mortes a tiros crescem 15% em Pernambuco

    Para pesquisadora Edna Jatobá, estudo do Fogo Cruzado mostra que braço armado do estado ‘segue atuando como atua nos territórios com tortura e abordagens arbitrárias’

    Policiais militares durante ocorrência em Recife | Foto: Divulgação/PM-PE

    Nos dois meses de isolamento causado pela pandemia de coronavírus, entre 21 de março e 20 de maio, o total de mortes causadas por tiroteios aumentaram 15% na região metropolitana do Recife, capital de Pernambuco, em comparação ao período em 2019.

    Levantamento feito pela plataforma Fogo Cruzado, plataforma digital que registra tiroteios e violência armada, constatou 211 mortes e 367 pessoas baleadas nos dois meses de isolamento social causado pelo coronavírus. O estudo detalha, ainda, praticamente o dobro de pessoas feridas, com aumento de 97% no intervalo. Ao longo destes meses no ano passado, o total de vítimas ficou em 183, enquanto os feridos, 262.

    Para a pesquisadora Edna Jatobá, integrante do Fogo Cruzado e do Gajop (Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares), os números refletem a manutenção da violência em determinadas regiões, parte dela promovida por agentes estatais.

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    “Imaginamos aumento da truculência, mas não despertamos para o quanto isso é comum nos espaços periféricos. Essa população de pele preta já tem direito de ir e vir cerceado, muitas vezes pela polícia, da maneira mais arbitrária e sem nenhuma justificativa”, aponta.

    Ponte – Qual a previsão tinham para a violência quando se iniciou o isolamento e qual quadro identificaram na pesquisa?

    Edna Jatobá – No começo da pandemia tínhamos a impressão que a violência armada e da polícia ia cair por conta do isolamento social, pela centralidade que o vírus tomou na vida das pessoas. Essa hipótese, já no primeiro mês, vimos que não foi assim em Pernambuco. O resultado aponta na direção de ascendência da violência. Os números, tanto da violência armada quanto da letalidade, são maiores.

    Ponte – Houve algum momento específico de ruptura?

    Edna Jatobá – Quando fizemos a análise no primeiro mês, as condições se mantém. Não houve ação enérgica da Secretaria da Defesa Social, nenhum enfrentamento ativo à violência armada. Começamos a não nos surpreender mais com aumento da violência a partir daí. A plataforma traz o aumento de 15% nos dois meses que estamos de isolamento, comparando com o mesmo período do ano passado. É um recorte bem preciso. Embora se tenha 15% de mortes, o número de feridos aumentou 97%. Temos um número bem expressivo de pessoas atingidas por disparo de fogo e, apesar do vírus obrigando as pessoas a ficarem em casa, as medidas governamentais de isolamento, o acirramento nesta determinação, uma espécie de lockdown, os números da violência armada e letal aumentaram.

    Ponte – O que motiva esses aumentos?

    Edna Jatobá – O que o estudo nos diz: não existe uma análise que determine a causa exata em determinado território para estes aumentos. A violência é complexa e é necessário entender diversas dinâmicas para o seu aumento ou queda. Tivemos um aumento nesses dois dados no período. Também se tem um aumento de pessoas baleadas dentro de casa, isso também pode significar o efeito da pandemia. As pessoas estão em casa, mas a violência, os conflitos acompanham, não dão trégua nesse período. Ao contrário: as pessoas que estão expostas e estão determinadas a morrer por outras são encontradas mais facilmente. Temos aumento no número de mulheres baleadas, por exemplo. Sabemos que elas estão mais em casa, mais perto dos seus agressores. Nunca estiveram tão perto deles.

    Edna é pesquisadora no estado e integra a Rede de Observatórios da Violência | Foto: Arquivo/Ponte

    Ponte – Como acompanham as estatísticas de mortes violentas?

    Edna Jatobá – Observamos que todo foco da sociedade, do poder público e imprensa, está no coronavírus. Temos análises diárias sobre o aumento no número de mortes, onde estão localizadas, quantas eram homens, mulheres… atualizações diárias em que a gente não percebe o mesmo passo na violência. Vemos um apagão, aqui no estado, na produção de dados. Ainda temos a sistematização, mas é lenta. Os dados oficiais de pessoas que morreram, por arma de fogo ou outro instrumento, aparece 15 dias depois publicamente. Para saber o dado de maio, só no dia 15 de junho. Isso esfria, afasta o debate, sem contar que são pessoas por quem a sociedade não tem muita comoção, não guarda o luto. As histórias se repetem, são problemas crônicos de Recife e região metropolitana, mas não existe preocupação social, não ocupa centro do debate. Só alcança esse patamar quando assume outro perfil, mais branco, mais elitizado, morador dos bairros nobres. E a violência letal normalmente acontece em outros espaços. Talvez isso explique um pouco dessa comoção.

    Ponte – Os casos de violência policial aumentaram, assim como vemos no Rio de Janeiro?

    Edna Jatobá – A violência policial em Pernambuco tem letalidade que não é comparável às ações no Rio de Janeiro, por exemplo. Vemos os números bem dispares: enquanto a polícia do RJ representa 1/3 das mortes violentas, aqui não temos esse número. Se convive com isso, a truculência, cotidianamente. Quanto às ações de repressão ao coronavírus, ainda não se consegue ter dimensão precisa e os números com relação às aglomerações. Não é comparável hoje ao Rio, onde se tem ações impendido, inclusive, a distribuição de cestas básicas. A força estadual segue atuando como atua nos territórios com tortura e abordagens arbitrárias por parte desses policiais. Não gostamos de generalizar, existem maus profissionais em todos os setores, mas a violência nas periferias continua. Há a banalização da violência.

    Ponte – Existe mais preocupação nestas ações policiais em meio à pandemia?

    Edna Jatobá – A maneira como encaramos atuação da polícia nesse momento é como encarávamos as operações quando não tinha coronavírus. Precisamos estar vigilantes no controle externo, que é muito importante que se registre. A arbitrariedade, o uso excessivo, se tem dado muito localizadamente nos territórios onde sempre existiu. O isolamento tem sido, infelizmente, menos eficaz nos territórios da periferia, com os mais pobres. Isso é uma coisa que a sociedade, a imprensa e o poder público tentam sempre discutir para aumentar o índice de isolamento.

    Ponte – O modo de agir segue igual, diferentemente do que era previsto em um primeiro momento.

    Edna Jatobá – Da truculência, começamos a imaginar e falamos mesmo de uma espécie de ação com a polícia ter poder de fazer com que as pessoas não pudessem circular em determinados espaços. Imaginamos aumento da truculência, mas não despertamos para o quanto isso é comum nos espaços periféricos. Essa população de pele preta já tem direito de ir e vir cerceado, muitas vezes pela polícia, da maneira mais arbitrária e sem nenhuma justificativa. Falamos agora de uma excepcionalidade, das pessoas ficarem em casa para aumentar a proteção e evitar a transmissão do vírus, mas não necessariamente para essas pessoas onde a violência continua presente se garante segurança. E, nesses espaços, isso tem aumentado (mortes). O isolamento não tem protegido certa parte da população nem de uma coisa, nem de outra.

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