Há um ano, Vitor Santiago perdeu uma perna e ficou paraplégico após ser baleado pelas Forças de Pacificação do Exército na Favela da Maré, no Rio. Ministério Público Militar até hoje não abriu inquérito para apurar o crime
Na madrugada do dia 12 de fevereiro do ano passado, Vitor Santiago Borges voltava para a comunidade Vila do Pinheiro, onde mora, no Conjunto de Favelas da Maré, com quatro amigos, quando o carro no qual se encontrava foi intensamente baleado por militares das chamadas Forças de Pacificação do Exército – que, por um ano e três meses, ocuparam a Maré, transformando-a numa espécie de campo de guerra.
Atingido por duas balas de calibre 7.62 mm (fuzil), Vitor foi internado no Hospital Getúlio Vargas, onde viveu um período em coma e passou por cirurgias, e de onde saiu, 98 dias depois, paraplégico e sem a perna esquerda – que precisou ser amputada para que ele não perdesse a vida.
Exatamente um ano depois, Vitor permanece sem qualquer assistência do Governo do Estado. Sua mãe, Irone Maria Santiago Borges, de 51 anos, que trabalhava como feirante, vendendo roupas, parou de trabalhar e, desde então, dedica-se integralmente a cuidar do filho e a lutar por justiça, cobrando do Estado uma resposta para o que foi provocado por servidores de suas Forças Armadas.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, a Ponte Jornalismo solicitou acesso ao processo judicial de Vitor a órgãos da Justiça Militar em outubro de 2015, percorrendo um processo de apuração até ser informada, pelo Ministério Público Militar, que não havia nenhum registro do caso em andamento e que não foi aberto sequer um inquérito, até hoje.
A noite que mudou a vida de Vitor
Eram pouco mais de duas horas da madrugada do dia 12 de fevereiro, véspera de carnaval. Vitor, então com 29 anos, voltava com quatro amigos do bar onde havia assistido a um jogo do Flamengo na noite da quarta-feira, dia 11. “Entramos pela Vila do João e já tinha um grupo de militares. Parecia uma zona de guerra: tinha saco de areia, arame farpado, tanque de guerra, tinha tudo”, recorda Vitor. A bordo de um Fiat Palio branco, os cinco jovens foram abordados por soldados, que revistaram o automóvel e os liberaram em seguida.
Aproximadamente 12 a 15 minutos depois, quando passavam pela comunidade Salsa e Merengue, outro grupo de militares efetuou diversos disparos de fuzil contra o automóvel onde os rapazes se encontravam, que ficou repleto de furos, como mostra a foto abaixo, tirada por uma das vítimas após o ataque. “Nós fomos atacados sem mais nem menos. Estávamos simplesmente passando e o tiroteio começou. Era muito tiro. A princípio, a gente imaginou que estava rolando algum tiroteio por perto, que o Exército estava trocando tiro com bandido, mas não, era tudo em cima da gente, tudo em cima do carro”, conta Vitor, único a ser atingido além do jovem que conduzia o carro, que foi baleado no braço.
Daquele momento em diante, atingido por duas balas de fuzil (calibre 7.62 mm), Vitor “só lembra de flashes”. O primeiro projétil atingiu o tórax do jovem, atravessando o pulmão e alcançando sua medula, motivo pelo qual ele perdeu, instantaneamente, os movimentos dos membros inferiores, e não sentiu quando o segundo projétil atingiu sua perna esquerda.
“Na hora em que eu tomei o [primeiro] tiro, já deu um estalo, um desligue assim, que eu fiquei ouvindo um sino. E ficou dormente, tudo daqui pra baixo, como se fosse um formigamento”, diz, apontando para as pernas. “Eu não sentia mais nada. Aí saiu todo mundo do carro e eu fiquei lá dentro do carro, sangrando. Lembro-me de aparecer um soldado, abrir a porta do carro e me pedir pra sair. Ficava gritando, pedindo pra eu sair. E eu falava pra ele que eu estava baleado, mas, como tomei um tiro no pulmão, eu já estava sem ar e perdendo muito sangue”, conta Vitor, que soube que tinha tomado o segundo tiro quando já estava no hospital.
Levado a bordo do tanque de guerra dos militares que o balearam à UPA (Unidade de Pronto Atendimento) da Maré, Vitor foi transferido em caráter emergencial para o Hospital Estadual Getúlio Vargas, onde permaneceu por 98 dias, internado no Serviço de Ortopedia e Traumatologia. O laudo médico expedido em 24 de março, quase um mês e meio depois, alegava não haver previsão de alta.
O projétil que entrou por seu fêmur direito atingiu o esquerdo, resultando em um impacto maior na perna esquerda. “Tinha destruído tudo, veia, vaso, osso, tudo. E o médico disse que não tinha jeito, que se eu não amputasse correria um risco muito grande, poderia até morrer”, recorda o jovem, que encarou com valentia o fato de que, em função da gangrena isquêmica de que padecia sua perna esquerda, não haveria saída senão amputar o membro. “Eu sabia que eu precisava daquilo para sobreviver”, diz.
Com seus pais e um irmão, Vitor num sobrado na Vila do Pinheiro, uma das comunidades do Conjunto da Maré. Para se chegar ao primeiro cômodo da casa, é preciso subir treze degraus de uma escada muito íngreme. O grau de inclinação da escada, no entanto, nunca foi um problema para a família – até um ano atrás. Hoje, Irone conta que só pode levar seu filho ao médico quando há vizinhos para ajudarem, numa força-tarefa, a levar Vitor até a rua, onde tem início a segunda parte do processo: é preciso um carro, seja de um vizinho ou a ambulância que, quando ia buscar o jovem, chegava com horas de atraso – quando ia. Hoje, nem busca mais. Assim, Vitor já perdeu consultas, cujo agendamento é difícil.
“O desespero maior do meu filho, que eu tenho sentido no momento, é ele querer um neurocirurgião para avaliar a lesão e o tipo de fisioterapia [que ele precisará fazer]. Isso o tem angustiado muito, não ter um fisioterapeuta. A maior dificuldade de colocá-lo num carro é justamente o fato de a perna dele não estar dobrando”, diz a mãe, que espera que a fisioterapia devolva os movimentos nos membros inferiores a Vitor.
“Ele foi negado na Rede Sarah [Centro Internacional SARAH de Neurorreabilitação e Neurociências], a ABBR [Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação] até atendeu, mas ele não pode ainda fazer o tratamento, por causa das escaras. E tenho certeza que essas feridas só têm demorado a cicatrizar por falta de material [para tratá-las]. Há pouco tempo, nem gaze tinha no posto de saúde”, afirma.
Irone vem procurando uma resposta do Estado há um ano, sem sucesso. “Esse silêncio nos angustia muito”, diz. Sem recursos para financiar o tratamento de Vitor, a família espera ser indenizada pelo Estado por causa da ação violenta que vitimou Vitor.
“Nós trabalhávamos, éramos produtivos. E hoje meu filho não pode trabalhar, eu não posso produzir, não posso trabalhar, porque eu vivo pra ele. Eu sou mãe, enfermeira, advogada. Procuro ser tudo pro meu filho. Corro atrás, vou a tudo quanto é lugar que for necessário”, desabafa Irone.
Durante o tempo em que permaneceu internado, Vitor conta que sua maior preocupação era com a filha, Beatriz, hoje com três anos, que ele frequentemente levava para passear. “Tem gente que diz que, quando está à beira da morte, quando está numa situação de perigo, a vida passa diante dos seus olhos. Isso não aconteceu comigo. Eu não me importava com mais nada, só pensava na minha filha”, lembra.
Em contraste com o tempo que hoje passa na cama, sob os cuidados da mãe, o jovem tinha uma vida ativa – “quase não parava em casa”, conta ele. Trabalhava em uma empresa de distribuição de material cirúrgico especializada em ortopedia e cursava Técnica em Segurança do Trabalho no Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial). Também andava de skate e era músico amador – tocava cavaquinho e violão em rodas de samba e pagode com amigos.
“Impactou bastante [a minha vida]. Porque você olha pra trás e vê que você era completamente ativo, e hoje você tá nessa inércia, parado assim, é algo um pouco frustrante. Não que minha vida tenha parado assim, sabe? Mas deu uma rarentada, por conta do que aconteceu”, conta.
Apesar das transformações profundas pelas quais sua vida passou, Vitor tem esperanças de que sessões de fisioterapia o permitam voltar a andar. “Eu acredito que tudo vá voltar ao normal. Tudo vai acontecer de novo. Eu posso trabalhar, eu estou vivo, tenho minha filha, tenho minha mãe, minha família”, encerra.
Exército nem investigou crime
A ocorrência foi registrada no CPOR/RJ (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva), localizado na Avenida Brasil, onde prestaram depoimentos, horas após o fato, as vítimas (com exceção de Vitor, que se encontrava em coma) e dez militares: Paulo Ricardo Ulguim da Silva Junior (soldado), Matheus Santos da Silva (cabo), Felipe Ditigen da Costa (soldado), Jean Soares de Brito (cabo), Gian Cristian Cantos Rios (3º sargento), Bruno dos Santos Nogueira (capitão), Yuri da Silva Cortês (tenente), Gabriel Vidal Braga (cabo), Ubirajara Félix da Silva (sargento) e Renato Vilar de Araújo (cabo).
Por meio da Lei de Acesso à Informação, a Ponte Jornalismo solicitou ao CPOR/RJ acesso aos termos de declaração de todas as testemunhas envolvidas. “Essa Organização Militar não tem essas informações. Os responsáveis pela Operação não ocupam mais o CPOR/RJ”, respondeu o CPOR/RJ, por e-mail.
A reportagem entrou em contato também com o CML (Comando Militar do Leste), responsável por assuntos relativos às Forças de Pacificação, que respondeu que “as demandas da Lei de Acesso à Informação devem ser preenchidas no site do Exército Brasileiro”. O pedido de acesso a informações sobre o caso foi então encaminhado ao Ministério da Defesa, que informou que “o processo da ocorrência em pauta tramita na 1ª Circunscrição Judiciária Militar (1ª CJM) – Rio de Janeiro – RJ, não sendo do conhecimento deste Ministério os dados constantes do mesmo”.
Por fim, a reportagem se reportou ao MPM (Ministério Público Militar), órgão responsável pela apuração de crimes militares. “Não foi encontrado em nosso banco de dados o registro de processo referente ao caso de Vitor Santiago Borges. Maiores informações sobre o caso poderão ser obtidas no local onde o incidente foi registrado, no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, na Avenida Brasil, Rio de Janeiro”, respondeu o MPM, referindo-se ao primeiro órgão procurado pela Ponte Jornalismo.
Quando a reportagem contatou Irone Santiago para contar-lhe sobre as repostas obtidas por meio da Lei de Acesso, a mãe de Vitor encontrava-se no Centro do Rio, acompanhada por ativistas da campanha “Reaja ou será morto, Reaja ou será morta”, percorrendo instituições a procura de informações sobre o processo relativo ao caso de seu filho. Eles então se dirigiram à sede do MPM, no Centro do Rio, onde confirmaram a informação de que não havia nenhum documento relacionado à apuração das circunstâncias em que militares dispararam diversos tiros de fuzil contra o carro onde se encontravam os cinco jovens.