Moradores denunciam violência após polícia e guardas ocuparem comunidade no interior de SP

PM e GCM de São José dos Campos instalaram bases na Comunidade do Banhado após operação em 7 de julho e não explicam motivo; famílias relatam abordagens truculentas, invasão de casas e fechamento de comércios

Base da Guarda Civil Municipal em frente à quadra esportiva do centro comunitário da comunidade do Banhado | Foto: arquivo pessoal.

Desde 1930, a família da liderança comunitária Elaine Lopes, 39, criou raízes na comunidade Jardim Nova Esperança, mais conhecida como Comunidade do Banhado, uma das primeiras de São José dos Campos, no Vale do Paraíba, no estado de São Paulo. Nascida e criada no local, ela já viu de tudo, mas nunca tinha presenciado uma ação das forças de segurança pública como a do dia 7 de julho. “Foi um cenário de guerra”, lembra.

A TV Band informou que a ação contou com “18 viaturas, 16 motos, 80 policiais militares e cinco cães farejadores”, sem especificar qual o intuito e que, durante a operação, uma pessoa foi presa e drogas foram apreendidas. “Helicópteros sobrevoavam nossas casas com muitos drones, os policiais desciam de rapel, muitas viaturas, motos da Rocam, um cenário horrível mesmo, com fiscalização da prefeitura, e começaram a fechar os bares, oprimiram os moradores, queriam alvará de abertura de comércio, mas aqui é um bairro irregular, começaram a etiquetar carros como abandono de veículo alegando ser via pública, mas a gente não tem CEP, não tem internet, não tem infraestrutura, não tem asfalto”, conta Elaine.

PM abordando morador em veículo na comunidade | Foto: arquivo pessoal.

Desde então, duas bases da Polícia Militar, uma da Guarda Civil Municipal e cerca de cinco viaturas estão no território e moradores denunciam abordagens e ações truculentas. “Eles foram na minha casa quando eu não estava, minhas filhas e minha companheira estavam, eles estavam com cachorro farejando meu quintal, entraram no quintal, não arrombaram a minha casa, mas não tinha mandado nem nada”, denuncia outra liderança, Renato Leandro, 33, que mora na comunidade há 25 anos. “Três casas foram invadidas, uma a pessoa que mora não estava, abordam todo mundo, ficam na frente das nossas casas. Todo mundo é tratado como se fosse um suspeito”, prossegue.

Na tarde desta sexta-feira (29/7), os moradores protestaram na Avenida Madre Teresa, na orla do Banhado, pela regularização da comunidade e contra a ocupação da PM e da GCM. Segundo eles, a guarda instalou um poste de luz para permanecer no local.

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Ao todo, são cerca de 450 famílias, ou seja, aproximadamente 2 mil pessoas que moram no terreno que tem como proprietária predominante a Prefeitura de São José dos Campos e outra parte menor, próxima à linha férrea, que pertence ao governo federal. “Eles [policiais] apontam arma para as famílias, até para criança, começam a invadir as casas perguntando de droga, sendo que isso é mentira. É um tipo de abordagem que existiu no antigo Pinheirinho e eles estão repetindo tudo que fizeram no Pinheirinho, mas com um porém porque o Banhado está com tudo para ser regularizado”, complementa Elaine, ao lembrar do Massacre do Pinheirinho, quando uma ação policial tentou retirar à força cerca de 6 mil pessoas que ocupavam um terreno particular na cidade, em 2012, após uma decisão de reintegração de posse.

Na época, o governo paulista deixou milhares de pessoas desabrigadas e foi acusado de cometer mais de 1,8 mil violações de direitos humanos, conforme relatório elaborado pelo Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (Condepe). Treze policiais militares da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a tropa mais letal da PM, foram denunciados pelo Ministério Público acusados de estupro, tortura e lesão corporal.

Com isso, os moradores do Banhado procuraram entidades para denunciar as violações e pelo receio de serem removidos. A advogada e integrante do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Pedro Lobo, Sabrina Diniz B. Nepomuceno, visitou a comunidade entre os dias 16 e 19 de julho, recolhendo denúncias, e elaborou um dossiê apontando relatos como de um morador que teve o celular quebrado e jogado no lixo, outros de casas invadidas, ameaças, fechamento de comércio ou impedimento de catadores recolherem material de reciclagem, viaturas em frente às residências impedindo livre acesso. A Guarda Municipal, que tinha uma base do lado de fora da comunidade, também deslocou o veículo para a frente da fachada de um centro comunitário do Banhado.

Fotos que integram o dossiê feito por Sabrina Nepomuceno em visita à comunidade do Banhado | Fotos: Lucas Lacaz Ruiz/A13 cedidas à advogada

Ela mesma apontou que foi filmada por policiais enquanto conversava com assistentes sociais na semana passada durante um ato em solidariedade aos moradores da comunidade. “O policial começou a fotografar e eu disse que eu não autorizava registrar a minha imagem, que aquilo era uma forma de intimidação, perguntei o que ele ia fazer com aquela filmagem e ele disse que ‘ia ficar para mim'”, disse à Ponte.

A advogada também relatou que recebeu respostas contraditórias sobre a ocupação das forças de segurança. “A gente perguntou para a guarda por que tinha descido a base, porque o Banhado é uma ladeira e a base deles ficava do lado de fora, e disseram que foi um pedido da Polícia Militar. Só que a gente perguntou para a tenente Juliana e ela disse que não tinha nada a ver e que a base da PM estava na comunidade porque era um trabalho de polícia comunitária, mas não tem uma justificativa para eles estarem ali. A gente não conseguiu uma informação oficial do porquê estão lá e por que fizeram aquela operação no dia 7 de julho”, explicou Sabrina.

Regularização fundiária

Para os moradores, a ocupação das forças de segurança é uma maneira de pressionar a saída das famílias do terreno, já que fica na região central, cujo entorno é alvo da especulação imobiliária. Segundo eles, já aconteceu antes outras formas de pressão, como operações policiais, proibição de reforma das casas, oferta de auxílio-aluguel, mas não com uma ocupação da polícia e da guarda por tempo indeterminado. “A prefeitura tem interesse político no local, quer remover todo mundo e fazer uma via ou conjunto habitacional de luxo. Já quiseram fazer um parque, mas não conseguiram financiamento, houve vários desmandos para tentar questionar as moradias dos moradores do Banhado”, afirma Renato Leandro.

O Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública e a Comissão de Direitos Humanos da 36ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – São José dos Campos enviaram, em conjunto, no dia 15 de julho, ofícios ao prefeito da cidade, Anderson Farias (PSD), ao secretário de Proteção ao Cidadão, Bruno Henrique dos Santos, ao comandante da GCM, Carlos de Queiroz Alvarez, ao secretário da Segurança Pública, João Camilo Pires de Campos, ao corregedor da PM, Eduardo Briciug Martine, à Ouvidoria das Polícias e ao Comando de Policiamento do Interior 1. Até o momento, porém, não tiveram retorno.

O defensor público José Luiz de Almeida Simão, que atua em São José dos Campos, também pediu que o Tribunal de Justiça oficiasse essas autoridades para obter informações, o que foi acatado pela juíza Laís Helena de Carvalho Scamilla Jardim, em 20 de julho, no âmbito do processo de regularização fundiária da comunidade do Banhado, que se iniciou em 2018. A magistrada deu cinco dias para resposta a partir do momento em que tivessem conhecimento do ofício.

“Pela reunião que a OAB teve com o comando da Polícia Militar, foi dito que a comunidade seria uma rota de fuga para o tráfico e que aquela operação foi de ordem da PM, por isso eu levei essa situação a conhecimento da juíza para que eles expliquem as razões pelas quais a PM está ocupando”, declarou José Luiz. “Uma das justificativas, que eu acho que é completamente falsa, é de que a PM vai fazer trabalho social com os moradores do Banhado, promover atividades recreativas, o que não é função da PM, é um absurdo”.

Bases da Polícia Militar e da Guarda Civil Municipal na comunidade do Banhado | Foto: arquivo pessoal

Ele também acredita que a ação seja uma maneira de interferir no processo judicial, já que a administração municipal tem obtido derrotas quanto ao pedido de reintegração de posse e, em 19 de julho, o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), que é ligado à Secretaria Estadual de Infraestrutura e Meio Ambiente, concluiu que não existirão ocorrências de inundação na comunidade que impeça ocupação humana no território em até 100 anos. Esse é um dos argumentos da Prefeitura para impedir a permanência das famílias no local.

“O Poder Judiciário, pelo menos por ora, não autorizou a retirada dos moradores e está dando prosseguimento ao processo de regularização fundiária para ver se é viável e, sendo viável, em que termos que essa regularização deve acontecer”, explica José Luiz.

O defensor aponta que a sua maior preocupação é com o “assédio” e “criminalização” dos moradores do Banhado. “Existe uma tentativa de fazer com que a opinião pública fique contrária à ocupação do Banhado e o meu receio também é de que possa dificultar o processo de regularização fundiária de maneira que os moradores se sintam intimidados e saiam da região”, pontua. “Uma ocupação das forças de segurança sem justificativa e por prazo indeterminado parece violar os direitos dos moradores porque a gente recebeu vídeos de policiais parados na frente da porta das pessoas quase o dia inteiro, relatos de que abordam crianças e adolescentes perguntando quem é o pai, quem é mãe, o que faz, que hora chega em casa, onde mora. Esse não é o trabalho de uma força de segurança num país democrático.”

Ajude a Ponte!

À Ponte, o ouvidor interino das Polícias, Elizeu Lopes, disse que recebeu o ofício, mas não conseguiu agendar reunião com a PM e também não teve retorno. Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Subseção de São José dos Campos, Aparecida Santana Borges, disse que foi agendada uma reunião com a prefeitura para acontecer em 2 de agosto.

O que diz a polícia

A Ponte havia questionado, em 11 de julho, sobre as denúncias dos moradores, mas não houve resposta. Perguntamos novamente, nesta sexta-feira (29), indicando os ofícios dos órgãos mencionados. A Fator F, assessoria terceirizada da Secretaria da Segurança Pública, enviou a seguinte nota:

A SSP informa que recebeu o documento, confirmou o recebimento com as instituições e responderá aos questionamentos, como de praxe, dentro do prazo regular.

O que diz a Prefeitura de São José dos Campos

A reportagem também havia enviado e-mail em 11 de julho perguntando se a operação estava relacionada à alguma atuação do governo municipal. Foi respondido que era uma ação exclusiva da PM. Procuramos novamente a prefeitura, tendo em vista também a atuação da GCM. Porém, não houve resposta.

O que diz o Ministério Público

Procuramos a assessoria do órgão para saber se há acompanhamento da ação da polícia, já que o MP tem prerrogativa de controle externo da atividade policial, mas também não houve resposta.

Reportagem atualizada às 18h27, de 29/07/2022, para corrigir data da reunião da Prefeitura, de 3 para 2 de agosto, e incluir informações sobre o protesto dos moradores.

Atualização às 10h18, de 2/8/2022, para incluir resposta da SSP.

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