‘Não é o funk, é uma perseguição à quebrada’, diz morador de Heliópolis sobre morte em ação policial

    Observatório de Olho na Quebrada aponta que em 6 anos, 37 pessoas foram mortas pela polícia no local; caso aconteceu no mesmo dia de massacre de Paraisópolis

    Uma das vielas de Heliópolis, a maior favela de São Paulo | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    “A violência na favela é raiz da ditadura”. É assim que o líder comunitário de Heliópolis, conhecido por Macarrão, 45 anos, 41 deles vividos na favela, resume o dia a dia na comunidade, que convive com abusos de autoridade e violência policial, segundo seus moradores.

    Com cerca de 180 mil habitantes, Heliópolis, no Sacomã, na zona sul de São Paulo, voltou ao noticiário policial esta semana após a morte de uma pessoa durante um baile funk na madrugada de 1º/12. Ela foi identificada como Alberto Góis e moradores da comunidade afirmam que era um rapaz em situação de rua. No mesmo dia e em horário próximo, nove pessoas morreram na favela de Paraisópolis, também na zona sul, em ação semelhante da Polícia Militar.

    Em ambos os casos, que resultaram, somados, em ao menos 10 mortos, a PM afirma que entrou nas comunidades atrás de supostos criminosos, refutando a tese de dispersão de baile funk.

    A Ponte teve acesso ao Boletim de Ocorrência registrado pelo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), que possui uma série de peculiaridades, a começar pelo batalhão dos PMs envolvidos no homicídio, distante 18 quilômetros do local do fato, que é de responsabilidade do 46º BPM/M, com sede no Ipiranga.

    Segundo a versão contada por três policiais militares da Força Tática do 5º BPM/M, sediado na Vila Gustavo, zona norte, sendo o chefe da ação um sargento, por volta das 3h do dia 1º/12, eles estavam na viatura M-05016, em patrulhamento pela região da Rodovia Anchieta, no Sacomã, zona sul, em razão de um evento ciclístico, quando receberam pedido de apoio de uma equipe policial da área, que acompanhava o ocupante de uma motocicleta. A narrativa dos policiais envolvidos no caso de Paraisópolis é idêntica.

    De acordo os agentes da Força Tática, ao entrarem na favela, se depararam com um baile funk, mas não participaram de qualquer dispersão, seguindo para outro ponto e logo chegaram à rua do Pacificador.

    Com as vias obstruídas pelo “fluxo”, a concentração do baile funk, dois PMs narram no documento terem descido da viatura e seguido pela viela São Jorge. Nesse local, um homem desconhecido e armado, teria apontado uma pistola na direção da dupla e efetuado um disparo. No revide, foi atingido por dois tiros. À Polícia Civil, a dupla de PMs confirmou ter dado um tiro cada um, sendo um disparo de fuzil 556 e um de pistola .40.

    Os policiais afirmam que, após analisar o homem baleado, acionaram o resgate, que o levou até o Hospital Heliópolis, bem perto do local do fato.

    Outra ação dos PMs que chama atenção, é que logo após o homem ser socorrido, a arma encontrada com ele, uma pistola Tanfoglio (fabricação italiana) de calibre 9 milímetros foi apresentada à delegada do 26º DP (Sacomã), que se recusou a receber o armamento, determinando que fosse colocada novamente no local exato em que o PM havia encontrado, já que o DHPP havia sido acionado para o local.

    O B.O. ainda cita que uma equipe do 27º BPM/M, que tem sede no Parque América, na região do Grajaú, distante 24 quilômetros da suposta troca de tiro, foi quem realizou a preservação da viela. Em nenhum momento o número de uma viatura da área do fato é mencionada no registro da ocorrência.

    O documento da Polícia Civil ainda afirma que o morto é um homem pardo, 1,75 metro de altura e forte, e que foi alvejado no tórax e abdômen. Segundo moradores de Heliópolis ouvidos pela reportagem, a vítima seria um morador em situação de rua, colocando em xeque a tese de que estaria armado e confrontado os PMs.

    Enquanto esteve em Heliópolis, a reportagem da Ponte conseguiu falar com moradores que estavam em uma das associações do bairro, no entanto, como o medo nas comunidades fala mais alto, não foi possível conversar com quem estava no momento dos tiros. Não houve também pessoas que pudessem acompanhar a reportagem até o local dos fatos.

    “Eu acho que aqui é mais do que uma perseguição ao funk e sim uma perseguição à quebrada, porque o funk está em todo lugar. Eu estudo na Mooca e lá toda quinta-feira tem funk, o mesmo que está aqui é o que toca lá. Fecham a rua, tem droga e tem bebida. Lá o policial chega e pede para baixar o som. Aqui chega com bomba e sem avisar. Então, não é perseguição ao funk, mas à quebrada”, analisa o estudante João Vitor.

    A vida em Heliópolis

    Diferentemente de Paraisópolis, que conta com MCs nos bailes, as festas de rua em Heliópolis não possuem palcos e são realizadas através de potentes sons dentro de carros, os chamados “paredões”.

    O líder comunitário Macarrão alega que os paredões já fazem parte da favela e que o “Estado precisa ter uma conversa com os movimentos de funk [antes de tomar qualquer atitude], e que se de fato quiser acabar com os encontros precisa dar opções, caso contrário vira uma ditadura”.

    Diante de tanta violência policial na região, uma nova ferramenta foi criada pela Unas (União de Núcleos e Associações dos Moradores de Heliópolis e Região) para auxiliar a população, chamada de Observatório de Olho na Quebrada, formado por sete jovens pesquisadores locais.

    Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    “Inicialmente, o Observatório de Olho na Quebrada, queria pesquisar e entender quantas pessoas vivem realmente em Heliópolis, além de verificar demandas para subsidiar projetos e políticas públicas. Mas, ao longo das pesquisas, a violência policial e a violência policial nos bailes apresentou uma nova temática presente no cotidiano da favela”, conta o coordenador do observatório, Reginaldo José, 43 anos.

    Árvore do Tempo mostra acontecimentos na favela de Heliópolis ao longo dos anos. Folhas verdes revelam conquistas, enquanto marrons são folhas secas, que indicam situações ruins, como mortes | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    O projeto, que possui noves meses, conseguiu levantar, através de dados da SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo), que 37 pessoas já foram mortas após intervenção policial entre janeiro de 2013 e junho de 2019, sendo que 80% delas estavam desarmadas.

    “O barulho do funk não me incomoda. Já estou acostumada. A gente sabe que tem droga, mas não é só no fluxo que tem droga. A maior parte que frequenta o fluxo não é morador de Heliópolis. Tem bares, lanchonetes, tabacarias em que o pessoal tira seu sustento”, conta uma estudante de 19, que pediu para não ser identificada, por morar perto do “fluxo”.

    Quem tem pensamento semelhante ao da jovem é o educador do Observatório de Olho na Quebrada, Aluizio Marino, 32. “Nesse momento de crise, as pessoas conseguem uma grana a mais [com o comércio na porta de casa]”. O profissional também estranha o fato de “não ter vídeo de confronto [como a PM sempre alega para intervir nos bailes], só de violência policial”, critica.

    Outro lado

    A Ponte procurou a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de SP) para comentar o episódio e questionou o fato de um policial de uma área tão distante estar a frente da operação. Em nota, a pasta apenas informou que “todas as circunstâncias relativas à ocorrência em Heliópolis são apuradas pela Polícia Civil (95º DP) e pela Corregedoria da Polícia Militar” e confirmou que o DHPP é quem investiga a morte ocorrida no dia 1º/12.

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