Nem esquecimento, nem perdão

    Relatório da Comissão Nacional da Verdade traz recomendações de medidas e políticas públicas para assegurar a não repetição das violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura – que seguem ocorrendo – e promover a efetiva reconciliação nacional

     

    Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo
    Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo

    Um dos muitos pontos assustadores do relatório da Comissão Nacional da Verdade sobre os crimes praticados na Ditadura Civil-Militar (1964-1985) é o capítulo que trata das recomendações para o presente. Significa que os estudos apontam práticas de graves violações de direitos humanos, por parte das forças de segurança do Estado, até hoje.

    “Embora não ocorra mais em um contexto de repressão política – como ocorreu na ditadura militar –, a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e mesmo ocultação de cadáveres não é estranha à realidade brasileira contemporânea. Relativamente à atuação dos órgãos de segurança pública, multiplicam-se, por exemplo, as denúncias de tortura”, revela o relatório. “A tortura continua sendo praticada no Brasil, notadamente em instalações policiais. Isso se deve até mesmo ao fato de que sua ocorrência nunca foi eficazmente denunciada e combatida pela administração pública.”

    As propostas incluem desmilitarizar e unificar as polícias; desvincular os institutos médicos legais e órgãos de perícia criminal das secretarias de segurança pública e das polícias civis; atuar na formação e treinamento das polícias e de membros das Forças Armadas com relação aos direitos humanos; fiscalizar os presídios; e fortalecer as Defensorias Públicas.

    A comissão propõe também o reconhecimento institucional, por parte das Forças Armadas, na ocorrência de graves violações de direitos humanos. Além desses pontos, a CNV indica que os agentes públicos que praticaram graves violações de direitos humanos durante o período não sejam submetidos à anistia, o que foi recentemente rejeitado pelo Superior Tribunal Federal. “Detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres são crimes contra a humanidade e, portanto, imprescritíveis e não passíveis de anistia”, afirma o relatório. “A proibição da tortura, das execuções, dos desaparecimentos forçados e da ocultação de cadáveres é absoluta e inderrogável.”

    São 17 medidas institucionais, 8 iniciativas de reformulação normativa de âmbito constitucional ou legal e 4 iniciativas para o acompanhamento das propostas. As recomendações são fruto de consultas a órgãos públicos, entidades da sociedade civil e cidadãos por meio de um formulário disponível no site da comissão. Assinam o relatório Gilson Dipp, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Maria Cardoso da Cunha, membros da CNV.

    Se as recomendações sugeridas pela Comissão Nacional da Verdade forem adotadas pelo Estado brasileiro, o país dará um passo importantíssimo na consolidação da democracia e do Estado de direito. Já não poderá dar mais nenhum passo atrás.

    Leia as 29 recomendações propostas pela CNV no resumo a seguir:

    Medidas Institucionais

    [dropcaps round=”no”]1. [/dropcaps]Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964 a 1985).

    Recomenda a responsabilização de indivíduos e das Forças Armadas de maneira institucional. Pede o reconhecimento, por parte das Forças Armadas, de modo claro e direto, de sua participação nos crimes cometidos durante a Ditadura Militar.

    [dropcaps round=”no”]2. [/dropcaps]Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposições constitucionais e legais.

    Indica a responsabilização criminal, civil e administrativa dos agentes públicos que participaram das graves violações de direitos humanos e afastamento desses agentes dos dispositivos de anistia. detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres são crimes contra a humanidade e, portanto, imprescritíveis e não passíveis de anistia. São parâmetros internacionais de proteção da dignidade humana. A proibição da tortura, das execuções, dos desaparecimentos forçados e da ocultação de cadáveres é absoluta e inderrogável.

    A CNV considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia.

    A obrigação jurídica do Estado de prevenir, investigar, processar, punir e reparar graves violações a direitos endossa a total impossibilidade de lei interna afastar a obrigação jurídica do Estado a assegurar o direito à justiça e à prestação jurisdicional efetiva. A esse dever correspondem os direitos à justiça e à verdade, os quais abrangem o direito a uma investigação rápida, séria, imparcial e efetiva, e a que sejam instaurados processos voltados à responsabilização dos autores das violações, inclusive na esfera criminal, bem como o direito das vítimas e seus familiares à obtenção de reparação.

    A racionalidade da Corte Interamericana é clara: leis de autoanistia constituem ilícito internacional; perpetuam a impunidade; e propiciam uma injustiça continuada, impedindo às vítimas e a seus familiares o acesso à justiça, em direta afronta ao dever do Estado de investigar, processar, julgar e reparar graves violações de direitos humanos.

    [dropcaps round=”no”]3. [/dropcaps]Proposição, pela administração pública, de medidas administrativas e judiciais de regresso contra agentes públicos autores de atos que geraram a condenação do Estado em decorrência da prática de graves violações de direitos humanos.

    A Constituição vigente (artigo 37, parágrafo 6o) prevê, como já faziam Constituições anteriores, o direito de regresso contra o agente público quando demonstrada a sua responsabilidade pessoal (dolo ou culpa) pelo ato ilícito.

    [dropcaps round=”no”]4. [/dropcaps]Proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964.

    As investigações realizadas pela CNV comprovaram que a ditadura instaurada através do golpe de Estado de 1964 foi responsável pela ocorrência de graves violações de direitos humanos, perpetradas de forma sistemática e em função de decisões que envolveram a cúpula dos sucessivos governos do período. Essa realidade torna incompatível com os princípios que regem o Estado democrático de direito a realização de eventos oficiais de celebração do golpe militar, que devem ser, assim, objeto de proibição.

    [dropcaps round=”no”]5. [/dropcaps]Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos.

    É necessário que a formação dos integrantes das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública seja precedida por processos de recrutamento que levem em conta o conhecimento dos candidatos sobre os princípios conformadores do Estado democrático de direito e sobre os preceitos teóricos e práticos relacionados à promoção dos direitos humanos. Também nos processos de avaliação contínua a que os efetivos dessas forças e órgãos são submetidos, esse conhecimento deve ser considerado, de modo a assegurar a compatibilidade de sua atuação com aqueles princípios e preceitos fundamentais.

    [dropcaps round=”no”]6. [/dropcaps]Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos.

    O conteúdo curricular dos cursos ministrados nas academias militares e de polícia deve ser alterado, considerando parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Educação (MEC), a fim de enfatizar o necessário respeito dos integrantes das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública aos princípios e preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos. Tal recomendação é necessária para que, nos processos de formação e capacitação dos respectivos efetivos, haja o pleno alinhamento das Forças Armadas e das polícias ao Estado democrático de direito, com a supressão das referências à doutrina de segurança nacional.

    [dropcaps round=”no”]7. [/dropcaps]Retificação da anotação da causa de morte no assento de óbito de pessoas mortas em decorrência de graves violações de direitos humanos.

    Em conformidade com o direito à verdade, a Defensoria Pública dos estados ou outros órgãos que cumpram essa função, o Ministério Público e o Poder Judiciário, mediante requerimento dos interessados, deverão proceder de modo célere à determinação da retificação da anotação da causa de morte no assento de óbito de mortos em decorrência de graves violações de direitos humanos, nos termos da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995, conforme os precedentes dos casos Vladimir Herzog e Alexandre Vannucchi Leme, nos quais foi requerente a própria CNV.

    [dropcaps round=”no”]8. [/dropcaps]Retificação de informações na Rede de Integração Nacional de Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização (Rede Infoseg) e, de forma geral, nos registros públicos.

    Impõe-se excluir da Rede de Integração Nacional de Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização (Rede Infoseg), bem como nos demais registros relacionados à área de segurança pública, informações que envolvam registros de atos de perseguição política e de condenação na Justiça Militar ocorridos no período de 1946 a 1988. A manutenção dessas informações penaliza vítimas de violações aos direitos humanos, quando sua condição de vítima já foi, inclusive, objeto de reconhecimento pelo Estado brasileiro por meio de diferentes procedimentos. Adicionalmente, devem ser adotados procedimentos para desenvolvimento de sistemas de registro de informações que contribuam para a promoção dos direitos humanos, como a manutenção de banco que contenha amostra do DNA de toda pessoa sepultada sem identificação, de modo que seus restos mortais possam vir a ser localizados por seus familiares. 

    [dropcaps round=”no”]9. [/dropcaps]Criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura.

    Identificada nas investigações conduzidas pela CNV como uma das graves violações de direitos humanos que ocorreram de forma generalizada e sistemática na ditadura militar, a tortura continua sendo praticada no Brasil, notadamente em instalações policiais. Isso se deve até mesmo ao fato de que sua ocorrência nunca foi eficazmente denunciada e combatida pela administração pública. Recomenda-se, portanto, a criação de mecanismos, inclusive comitês, para prevenção e combate à tortura em todos os estados da Federação, com a participação da sociedade civil, conforme preceituado na Lei no 12.847/2013, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

    [dropcaps round=”no”]10. [/dropcaps]Desvinculação dos institutos médicos legais, bem como dos órgãos de perícia criminal, das secretarias de segurança pública e das polícias civis.

    Recomenda-se a criação, nos estados da Federação, de centros avançados de antropologia forense e a realização de perícias que sejam independentes das secretarias de segurança pública e com plena autonomia ante a estrutura policial, para conferir maior qualidade na produção de provas técnicas, inclusive no diagnóstico de tortura.

    [dropcaps round=”no”]11. [/dropcaps]Fortalecimento das Defensorias Públicas.

    No contexto das graves violações de direitos humanos investigadas pela CNV, sobressaiu a percepção de que a dificuldade de acesso dos presos à Justiça facilitou grandemente a possibilidade de que fossem vítimas de abusos, por ação ou omissão da administração pública. Como esse quadro subsiste nos dias de hoje, recomenda-se o fortalecimento das Defensorias Públicas, criadas constitucionalmente para o atendimento da população de baixa renda e revestidas das condições institucionais para propiciar maior proteção às pessoas detidas. O contato pessoal do defensor público com o preso nos distritos policiais e no sistema prisional é a melhor garantia para o exercício pleno do direito de defesa e para a prevenção de abusos e violações de direitos fundamentais, especialmente tortura e maus-tratos.

    [dropcaps round=”no”]12. [/dropcaps]Dignificação do sistema prisional e do tratamento dado ao preso.

    A estrutura prisional expressa profundo desrespeito aos direitos humanos. A superpopulação prisional e a ausência de políticas voltadas à reintegração social dos presos são fatores que induzem a população carcerária à falta de perspectiva. Os presídios são locais onde a violação múltipla desses direitos ocorre sistematicamente. Essa situação também se verifica nas instituições destinadas ao acolhimento de crianças e adolescentes infratores.

    – Abolir revistas vexatórias
    – Instituir medidas que dignifiquem os presídios, afastando medidas como, por exemplo, a privatização dessas estruturas, porque o poder punitivo é exclusivo do Estado e deve ser exercido nos marcos do Estado democrático de direito.

    [dropcaps round=”no”]13. [/dropcaps]Instituição legal de ouvidorias externas no sistema penitenciário e nos órgãos a ele relacionados.

    A criação de ouvidorias externas como instrumento de fiscalização e controle social do sistema penitenciário e dos órgãos a ele relacionados – polícias, Defensorias Públicas, Ministério Público e órgãos judiciais – deve ser adotada como uma política pública, com vistas ao aperfeiçoamento das instituições e de sua governança. Os ouvidores devem ser escolhidos com a participação da sociedade civil, ter independência funcional e contar com as prerrogativas e a estrutura necessárias ao desempenho de suas atribuições.

    [dropcaps round=”no”]14. [/dropcaps]Fortalecimento de Conselhos da Comunidade para acompanhamento  dos estabelecimentos penais.

    Já previsto na Lei de Execuções Penais. Conselhos da Comunidade devem ser obrigatoriamente instalados em todas as comarcas do país que tenham varas de execução penal, com a finalidade de promover o acompanhamento de estabelecimentos penais. Sua composição deve ser definida em processo público e democrático.

    [dropcaps round=”no”]15. [/dropcaps]Garantia de atendimento médico e psicossocial permanente às vítimas  de graves violações de direitos humanos.

    Como demonstraram as investigações conduzidas pela CNV, as vítimas de graves violações de direitos humanos estão sujeitas a sequelas que demandam atendimento médico e psicossocial contínuo, por meio da rede articulada intersetorialmente e da capacitação dos profissionais de saúde para essa finalidade específica. A administração pública deve garantir a efetividade desse atendimento.

    [dropcaps round=”no”]16. [/dropcaps]Promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação.

    O compromisso da sociedade com a promoção dos direitos humanos deve estar alicerçado na formação educacional da população. Assim, deve haver preocupação, por parte da administração pública, com a adoção de medidas e procedimentos para que, na estrutura curricular das escolas públicas e privadas dos graus fundamental, médio e superior, sejam incluídos, nas disciplinas em que couberem, conteúdos que contemplem a história política recente do país e incentivem o respeito à democracia, à institucionalidade constitucional, aos direitos humanos e à diversidade cultural.

    [dropcaps round=”no”]17. [/dropcaps]Apoio à instituição e ao funcionamento de órgão de proteção e promoção dos direitos humanos.

    A experiência internacional e brasileira demonstra que a efetividade da proteção e promoção dos direitos humanos se encontra diretamente relacionada à existência de uma rede de organismos públicos que tenha esses objetivos por finalidade específica. No âmbito dos estados e municípios, devem ser estimulados a criação e o apoio ao funcionamento de secretarias de direitos humanos, que, atuando na esfera de decisão da administração pública, possam desenvolver e coordenar ações de proteção e promoção.

    Na esfera específica da investigação de graves violações de direitos humanos ocorridas ao longo da história do Brasil, deve haver a valorização dos órgãos já existentes – o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a Comissão de Anistia –, promovendo-se as reformas no arcabouço normativo que rege esses entes com a finalidade de aprimoramento das condições para sua atuação. Da mesma forma, a administração pública, nos seus diversos níveis, deve apoiar a atuação das comissões da verdade estaduais, municipais e setoriais que foram criadas no período de funcionamento da CNV e cuja duração perdurará mesmo com a extinção da comissão nacional.

    Reformas constitucionais e legais

    [dropcaps round=”no”]18. [/dropcaps]Revogação da Lei de Segurança Nacional.

    A atual Lei de Segurança Nacional – Lei no 7.170, de 14 de dezembro de 1983 – foi adotada ainda na ditadura militar e reflete as concepções doutrinárias que prevaleceram no período de 1964 a 1985. A Constituição de 1988 inaugurou uma nova era na história brasileira, configurando a República Federativa do Brasil como Estado democrático de direito, fundado, entre outros princípios, na promoção dos direitos humanos. De forma consistente com essa transformação, impõe-se a revogação da Lei de Segurança Nacional em vigor e sua substituição por legislação de proteção ao Estado democrático de direito.

    [dropcaps round=”no”]19. [/dropcaps]Aperfeiçoamento da legislação brasileira para tipificação das figuras penais correspondentes aos crimes contra a humanidade e ao crime de desaparecimento forçado.

    O direito internacional dos direitos humanos identificou – por meio de tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, entre eles o Estatuto de Roma, constitutivo do Tribunal Penal Internacional – condutas cuja gravidade é extrema e que não podem ser admitidas em nenhuma circunstância. Nesse sentido, recomenda-se o aperfeiçoamento da legislação brasileira para que os tipos penais caracterizados internacionalmente como crimes contra a humanidade e a figura criminal do desaparecimento forçado sejam plenamente incorporados ao direito brasileiro, inclusive com a estipulação legal das respectivas penas. A previsão legal do desaparecimento forçado como tipo penal autônomo é, como afirmou a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros versus Brasil, uma obrigação imposta ao Estado brasileiro pelo direito internacional dos direitos humanos (artigo 2o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 3o da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas e artigo 4o da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados). O pronto cumprimento do dever de criar um tipo penal autônomo, que contemple o caráter permanente desse crime, até que se estabeleça o destino ou paradeiro da vítima e se obtenha a certificação sobre sua identidade, é fundamental para a coibição do desaparecimento forçado, uma prática ainda presente no Brasil. 

    [dropcaps round=”no”]20.[/dropcaps]Desmilitarização das polícias militares estaduais.

    A atribuição de caráter militar às polícias militares estaduais, bem como sua vinculação às Forças Armadas, emanou de legislação da ditadura militar, que restou inalterada na estruturação da atividade de segurança pública fixada na Constituição brasileira de 1988. Essa anomalia vem perdurando, fazendo com que não só não haja a unificação das forças de segurança estaduais, mas que parte delas ainda funcione a partir desses atributos militares, incompatíveis com o exercício da segurança pública no Estado democrático de direito, cujo foco deve ser o atendimento ao cidadão. Torna-se necessário, portanto, promover as mudanças constitucionais e legais que assegurem a desvinculação das polícias militares estaduais das Forças Armadas e que acarretem a plena desmilitarização desses corpos policiais, com a perspectiva de sua unificação em cada estado.

    [dropcaps round=”no”]21. [/dropcaps]Extinção da Justiça Militar estadual.

    De forma consentânea com a recomendação proposta no item anterior, a desmilitarização das polícias estaduais deve implicar a completa extinção dos órgãos estaduais da Justiça Militar ainda remanescentes. Reforma constitucional deve ser adotada com essa finalidade, resultando na previsão unicamente da Justiça Militar federal, cuja competência, conforme ressaltado no item subsequente, deverá alcançar apenas os efetivos das Forças Armadas.

    [dropcaps round=”no”]22. [/dropcaps]Exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar federal.

    Ainda com o propósito de circunscrever a competência da Justiça Militar aos efetivos das Forças Armadas, além da extinção da vertente estadual desse corpo judiciário, deverá ser promovida mudança normativa para exclusão da jurisdição militar sobre civis, verdadeira anomalia que subsiste da ditadura militar. Assim, a Justiça Militar, cuja existência deve se restringir ao plano federal, deverá ter sua competência fixada exclusivamente para os casos de crimes militares praticados por integrantes das Forças Armadas.

    [dropcaps round=”no”]23. [/dropcaps]Supressão, na legislação, de referências discriminatórias  das homossexualidades.

    Recomenda-se alterar a legislação que contenha referências discriminatórias das homossexualidades, sendo exemplo o artigo 235 do Código Penal Militar, de 1969, do qual se deve excluir a referência à homossexualidade no dispositivo que estabelece ser crime “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”. A menção revela a discriminação a que os homossexuais estão sujeitos no âmbito das Forças Armadas.

    [dropcaps round=”no”]24. [/dropcaps]Alteração da legislação processual penal para eliminação da figura do auto de resistência à prisão.

    Recomenda-se alterar a legislação processual penal para que as lesões e mortes decorrentes de operações policiais ou de confronto com a polícia sejam registradas como “lesão corporal decorrente de intervenção policial” e “morte decorrente de intervenção policial”, substituindo os termos “autos de resistência” e “resistência seguida de morte”, respectivamente.

    [dropcaps round=”no”]25. [/dropcaps]Introdução da audiência de custodia para prevenção da prática de tortura e de prisão ilegal.

    Criação da audiência de custódia no ordenamento jurídico brasileiro para garantia da apresentação pessoal do preso à autoridade judiciária em até 24 horas após o ato da prisão em flagrante, em consonância com o artigo 7o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica), à qual o Brasil se vinculou em 1992.

    Medidas de seguimento das ações de recomendações da CNV

    [dropcaps round=”no”]26. [/dropcaps]Estabelecimento de órgão permanente com atribuição de dar seguimento às ações e recomendações da CNV.

    A atividade da CNV gerou avanço significativo, mas não esgotou a possibilidade de obtenção de resultados na investigação das graves violações de direitos humanos ocorridas no período de 1946 a 1988. As perspectivas abertas com esse trabalho e o grande volume de informações colhidas indicam a conveniência de estabelecimento de um órgão de seguimento com funções administrativas, com membros nomeados pela Presidência da República, representativos da sociedade civil, que, em sintonia com órgãos congêneres já existentes, como o CNDH, a CEMDP e a Comissão de Anistia, deverá dar sequência à atividade desenvolvida pela CNV, especialmente para:

    a) dar continuidade à apuração dos fatos e à busca da verdade sobre a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres;

    b) prosseguir na investigação de eventos e condutas cuja apuração não pode ser concluída pela CNV, como os casos de massacres de trabalhadores durante o regime militar e o apoio dispensado por empresas e empresários para a criação e o funcionamento de estruturas utilizadas na prática de graves violações de direitos humanos;

    c) cooperar, complementar e coordenar atividades de investigação documental com pessoas, instituições e organismos, públicos e privados, com finalidades de assessoramento, intercâmbio e divulgação de informação;

    d) organizar, coordenar e promover atividades de informação sobre as graves violações de direitos humanos no país e no exterior;

    e) monitorar o cumprimento das recomendações da CNV, com acesso ilimitado e poderes para requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do poder público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo, constituindo grupos de trabalho e pesquisa e instalando escritórios nas unidades federadas onde forem necessários;

    f) apoiar as medidas de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pela população camponesa no período investigado pela CNV, com ênfase na ampliação de políticas públicas para garantir o acesso à terra e a reforma agrária;

    g) apoiar as medidas de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no período investigado pela CNV, com ênfase na regularização, desintrusão e recuperação ambiental de suas terras;

    h) apoiar as medidas de políticas públicas destinadas a prevenir violação de direitos humanos e assegurar sua não repetição. 

     

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