No Pará crime de feminicídio aumentou 100% na pandemia

    Mulheres relatam processo de romper com ciclos de violência e dificuldade de fazer denúncia; Justiça negou a renovação automática de medidas protetivas durante o isolamento

    Foto: Roberta Brandão/Amazônia Real

    A costureira, Isaura*, de 29 anos, estava em processo de separação do marido quando, em março, começou o isolamento social da pandemia do novo coronavírus. Não havia alternativas. Com uma criança de colo, ela teve de permanecer na sua casa, em Belém do Pará, com o agressor. No confinamento, a tensão só piorou. “Tivemos brigas que fizeram nossa filha chorar. Ficou insuportável para mim.”

    Com o isolamento social, Isaura passou a ter menos trabalho, o que significou ficar dependente da família do marido. Foi o que bastou para sofrer mais violências. “Ele me agrediu verbalmente e psicologicamente por causa da questão financeira”, lembra. Os dias se tornaram tão insuportáveis que a costureira procurou um outro lugar para viver.  “Precisei sair nesse momento de pandemia e vim morar em um espaço de um amigo. Se não tivesse esse lugar acho que talvez fosse impossível eu me mudar”, desabafa, com a voz embargada em conversa ao telefone com a reportagem da agência Amazônia Real.

    Isaura é uma das mulheres que relatou sua história para a série Um vírus e duas guerras, que divulga denúncias e apresenta dados oficiais sobre a violência doméstica durante a pandemia do novo coronavírus nas cinco regiões do País. O primeiro levantamento traz um mapeamento dos casos de feminicídios registrados entre os meses de março e abril deste ano. O monitoramento é realizado por uma parceria inédita entre as mídias independentes Amazônia RealAgência Eco Nordeste, #ColaboraPortal Catarinas e Ponte JornalismoA reportagem que abre a série pode ser lida aqui.

    O levantamento da série mostrou que o crime de feminicídio no Pará saltou de 5 para 10 casos no segundo bimestre do ano, uma aumento de 100% durante o isolamento social. Quando analisado o quadrimestre entre os anos de 2019 e 2020, a alta é de 225%: de 8 para 26 mortes de mulheres.

    Infográfico: Fernando Alvarus/2020

    A pandemia do novo coronavírus foi decretada no mundo em 11 de março pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Como não exista ainda uma vacina ou remédio que cure a doença e para evitar o colapso nos hospitais, a OMS sugeriu a quarentena e isolamento social da população como melhor forma de combater a incidência da pandemia.

    No Pará, o Ministério da Saúde já registrou 74.192 casos de Covid-19 e 4.350 mortes até esta quarta-feira (17 de junho). A população feminina do Pará é de 4.292.000 mulheres, segundo dados do IBGE de 2020.

    Durante a pandemia, o Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) informou à Amazônia Real que o número de processos abertos de violência doméstica contra mulheres chegou a 5.043 de janeiro a março, um crescimento de 17,7% em relação aos 4.281 casos do mesmo período de 2019. Foram abertos nove inquéritos para investigar crimes de feminicídio no mês de março, diz o TJPA.

    Um dos casos investigados é o assassinato de J.R.S., morta a golpes de faca pelo marido, Ocimar de Oliveira Gomes. Ele foi preso em flagrante em 6 de  abril, no bairro do Maguari, em Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém. Réu confesso, ele foi denunciado e responde à ação penal por crime de violência doméstica contra a mulher e feminicídio. O julgamento na 4ª Vara Penal de Ananindeua ainda não foi marcado.

    A partir de dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup), o levantamento da série Um vírus e duas guerras detectou uma redução de 42% das ocorrências de violência doméstica entre 18 de março a 21 de abril (916 registros ante 1.585) e o mesmo período de 2019.

    Mas o número geral menor de registros não indica que houve uma diminuição da violência contra meninas e mulheres, segundo o Fórum Brasileiro da Segurança Pública (FBSP). Assim como a Covid-19, onde há casos subnotificados, pode estar havendo violências não registradas na Segup. Com o confinamento, ficou mais difícil procurar ajuda dos órgãos policiais.

    O monitoramento da série Um vírus e duas guerras também analisou os dados dos 20 estados, que forneceram as informações da violência doméstica nos meses de março e abril, durante a pandemia. O grupo atingiu uma média de 0,21 feminicídios por 100 mil habitantes mulheres. Onze estados tiveram taxas acima dessa média, entre eles, o Pará com 0,23. O Acre, que está em primeiro lugar, tem um índice de 0,88 por 100 mil habitantes mulheres.

    Nem sempre o agressor é preso

    O processo de romper com ciclos de violência é doloroso e cheios de dificuldades para muitas mulheres. “Eu não queria chegar a esse ponto, nunca imaginei que passaria por isso”, diz a pedagoga Soraia*, 26 anos. Ela foi outra vítima da violência doméstica durante a quarentena.

    As tensões entre a pedagoga e o ex-companheiro aumentaram muito durante o isolamento social. Em 2 de abril, ela tentou sair de casa, voltando para a casa dos pais. Mas ele ameaçou se matar e ela decidiu dar uma chance.

    Mas o ambiente de violência extrema persistiu. Em 16 de abril, ela descobriu que o companheiro havia a bloqueado em suas redes sociais “Foi para eu ‘não encher o saco’”, afirma. “Tivemos a primeira briga feia, chamei a polícia, que bateu no portão da vila e deu meia volta. Depois ele mandou eu tomar um banho e disse que me amava.”

    Na noite do dia seguinte, Soraia baixou um aplicativo de conversa. Queria encontrar algum alívio para a pressão que estava sofrendo. “Ele me encontrou no celular, apertou meu rosto, me chamou de vagabunda, me jogou no chão, jogou minhas coisas pra fora da casa, me trancou do lado de fora só de calcinha. Quando ele resolveu abrir a porta, me deu uma mata-leão. Nessa confusão de tentar entrar e sair do quarto, ele fechou meu braço na porta, e eu pensei que ele ia quebrá-lo, foi quando gritei muito alto por socorro e a família dele, que mora no andar de baixo, veio”, relata a pedagoga.

    Soraia disse que resolveu pedir ajuda quando o então companheiro a trancou no quarto. Ela decidiu denunciar e postou as fotografias das marcas das agressões em sua rede social. “Ele ameaçou se matar novamente e por pressão de seus familiares retirei a publicação da rede social como um pedido de desculpas”, afirma ela, que não conseguia se libertar daquela situação.

    No dia 19 de abril, Soraia conta que uma amiga desconfiou das violências que estava sofrendo. Essa amiga falou com os pais da pedagoga e um conseguiu que um casal de amigos aparecesse de surpresa na casa em que estava presa e conseguiu libertá-la.

    Soraia disse que foi levada para depor na Delegacia da Seccional de São Braz,na região central de Belém. “Mesmo relatando que estava presa na casa desde do dia 17, não foi o suficiente para a agressão ser considerada flagrante, por este motivo não foi realizado o exame de corpo de delito”, explica.

    A pedagoga relatou que o exame foi marcado para 30 de abril, mas devido à superlotação do Instituto Médico Legal (IML) em razão das mortes pela covid-19, foi desmarcado. Soraia pediu uma medida protetiva, mas o agressor segue solto.

    TJ negou as protetivas automáticas

    Fotografia ilustrativa da violência doméstica em Belém | Foto: Roberta Brandão/Amazônia Real

    No Pará, as solicitações de medidas protetivas aumentaram 5%, de 2.139 para 2.250. Com o aumento da violência contra as mulheres, o primeiro escritório de advocacia feminista, antirracista e anti-LGBTfobia de Belém, MCF, pediu em carta aberta ao Tribunal de Justiça a renovação automática deste recurso, mas o pedido foi negado. A carta foi assinada por diversas entidade, entre elas, o Centro de Estudo do Negro da Amazônia (Cedenpa), Coletivo Sapato Preto, a Comissão da Mulher advogada da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Seccional Pará, e a Secretaria de Direitos Humanos. O TJPA justificou ser impossível ter o controle de quem intimar e nem saber quando as medidas protetivas expiram pelo fato que os processos não são eletrônicos.

    “Isso é uma insegurança jurídica. Deveriam ter um levantamento dessas datas. Não se pode fazer a renovação da medida automática porque não se tem controle”, alerta a advogada Karla Furtado, do MCF. “Como estamos num momento excepcional precisamos de medidas excepcionais. Na nossa visão, essas medidas não violariam direitos.”

    As medidas protetivas foram consolidadas como um direito das vítimas a partir da Lei Maria da Penha (nº 11.340), em vigor desde 2006, e podem ser concedidas por um juiz mesmo que não tenha sido instaurado inquérito policial ou processo cível.

    Procurada pela Amazônia Real, a juíza Reijjane de Oliveira, da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid), do TJPA, justificou por que as medidas protetivas não estão sendo renovadas automaticamente. “Nós não temos processo judicial eletrônico. Então optamos por disponibilizar um número de telefone (091 99126.3949), exclusivamente para violência doméstica”, diz a magistrada. O serviço pode ser acessado por mulheres que têm medidas protetivas com prazo fixado, que estejam vencendo ou tenham se vencido durante o período de quarentena. “Todos os juízes estão conscientes que os pedidos para essa finalidade não precisam de grandes formalidades. Então a mulher dizendo que quer prorrogar, eles estão decidindo imediatamente pela prorrogação.”

    Quando a polícia é algoz

    A ausência da renovação automática das medidas protetivas no Pará é apenas um dos problemas que as mulheres enfrentam neste período da pandemia. Raquel*, de 31 anos, afirma que sofreu duas violências: a primeira pelo agressor e a segunda pela polícia.

    Trabalhadora do ramo da estética-afro, Raquel conta que o policial que atendeu à sua ocorrência de violência doméstica ficou olhando para ela de uma forma assediadora. Depois com o número de telefone da vítima em mãos, continuou o assédio enviando mensagens. “Eu estava com a roupa toda rasgada, devido à violência que havia sofrido, e ele só faltava me comer com os olhos“, lembra.

    Além disso, Raquel relata que a condução dos policiais na ação foi equivocada. “Eles falavam com ele [o agressor] como velhos amigos. Me trataram como se eu fosse uma vagabunda. Essa foi a segunda agressão. Eu já estava de medida protetiva, ele deveria ter sido preso. Deixaram ele ir embora. Eu denunciei o policial”, disse ela.

    (*) Os nomes são fictícios para proteger as mulheres

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    Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, #Colabora, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo
    Parceria entre cinco mídias independentes monitora os casos de violência doméstica e feminicídio no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus

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