Nos terminais de ônibus da periferia, os cantos calados pela ditadura

    Dupla se apresenta em terminais de São Paulo cantando 12 músicas que foram censuradas e contando histórias sobre a repressão do regime militar
    Canto Calado
    A dupla Josi e Wellington, do projeto Canto Calado. Foto: Divulgação

    Juca Guimarães, especial para a Ponte

    A dupla Josi Burigo e Wellington Silva faz versões com banquinho e violão de músicas compostas durante a ditadura militar no Brasil. Os jovens músicos são os idealizadores do projeto Canto Calado, que é apresentado em terminais de ônibus na periferia da capital. No repertório estão 12 canções que tiveram problemas com a censura. Entre uma música e outra, eles contam um pouco como a repressão dos anos de chumbo foi prejudicial para o país.

    A proposta da dupla também serve de reflexão para os dias atuais, quando uma parte conservadora da população pede a volta dos militares ao poder. “A liberdade para expressar seus pensamentos e ideias, seja contra ou a favor qualquer assunto é essencial e qualquer ação que vá contra esse espaço de liberdade é, no mínimo, preocupante”, diz Wellington.

    O projeto Canto Calado está nos terminais desde julho e tem mais seis apresentações programadas. Em outubro, eles começam uma temporada no no teatro Zanoni Ferrite, na rua Renata, 163, Vila Formosa, na Zona Leste. Confira a entrevista com a talentosa dupla.

    Qual a formação musical de vocês?

    Josi – Técnico em Canto Popular, Pós-técnico em Composição e Arranjo pela ETEC de Artes; atualmente faço aulas de canto com o tenor Gilberto Chaves.

    Wellington – Técnico em Canto Popular e Regência Coral pela ETEC de Artes; atualmente curso graduação em música pela FAAM e estudo violão na EMESP, com o violonista Edmilson Capelupi.

    Como surgiu a ideia do projeto?

    Josi – Além da música, trabalhamos também com contação de histórias já há algum tempo. Surgiu a vontade de montar um espetáculo que reunisse música e história voltada a um público mais jovem/adulto, então começamos a pesquisar qual época na história da música brasileira poderíamos falar. Durante nossa pesquisa, chegamos à conclusão de que o período que abordamos tem uma produção musical extremamente vasta e com curiosidades que vão além das letras das canções. Este ano escolhemos doze canções para compor a apresentação nos terminais, mas durante a pesquisa conhecemos diversas outras canções que guardamos para alternar em outras apresentações, assim como temos a intenção de, futuramente, inserir outras canções do período que achamos interessantes.

    Como foi a seleção do repertório?

    Josi – Procuramos canções de músicos atuantes neste contexto, desde alguns clássicos até outras praticamente desconhecidas de boa parte do público. Não focamos apenas nas chamadas “canções de protesto”, mas também em canções que fizeram sucesso na época em que foram lançadas, seja em discos ou festivais.

    Qual o período das musicas escolhidas para o show?

    Josi – Escolhemos canções entre as décadas de 1960 e 1980.

    Como foi feita a pesquisa para a entender a censura na época da ditadura?

    Josi – Através de livros de história, trabalhos acadêmicos sobre a época em questão, biografias de alguns compositores e documentários.

    Durante os shows vocês fazem algum tipo de introdução para explicar a música e os motivos pelos quais ela foi censurada?

    Josi – Sim. A cada canção apresentada explicamos seu contexto histórico, trazendo informações e curiosidades sobre a música, seu(s) compositor(es) e principais intérpretes.

    Além da censura por conteúdo político, teve muita censura por questões sociais e comportamentais. Por exemplo, a banda Premeditando o Breque teve a música Rubens censurada, já no começo dos anos 1980, porque falava do amor de dois homens. Vocês tem alguma música que foi censurada por algum motivo parecido?

    Josi – Uma das canções que apresentamos é “O Mestre-sala dos Mares” (antes intitulada de “O Almirante Negro”), de João Bosco e Aldir Blanc. Originalmente, a canção era uma homenagem ao marinheiro João Cândido (que liderou a Revolta da Chibata, ocorrida no Rio de Janeiro no início do século XX). João Cândido, o homenageado desta canção era negro e este foi o motivo alegado pela censura para proibição da música. Aldir Blanc alterou o título e algumas palavras da letra da canção até que finalmente foi aprovada pelos censores.

    Confira a agenda das apresentações: São dois shows por dias, às 17h30 e às 19h
    25/09 – Term. Pirituba
    02/10 – Term. Mercado
    09/10 – Term. Cidade Tiradentes
    16/10 – Term. Sapopemba
    23/10 – Term. A.E.Carvalho
    30/10 – Term. Carrão

    E o repertório do show
    – Arrastão (Edu Lobo/ Vinícius de Moraes) – 1965
    – Disparada (Geraldo Vandré/ Théo de Barros) – 1966
    – Ponteio (Edu Lobo/ José Carlos Capinam) – 1967
    – Travessia (Milton Nascimento/ Fernando Brant) – 1967
    – Pra não dizer que não falei das flores (Geraldo Vandré) – 1968
    – Sabiá (Tom Jobim/ Chico Buarque) – 1968
    – Sá Marina (Antônio Adolfo/ Tibério Gaspar) – 1968
    – Cálice (Chico Buarque/Gilberto Gil) – 1973
    – O Mestre-sala dos mares (João Bosco/Aldir Blanc) – 1975
    – Treze Anos (O Divórcio) – (Luiz Ayrão) – 1977
    – O bêbado e a equilibrista (João Bosco/ Aldir Blanc) – 1979
    – Vai passar (Chico Buarque) – 1984

    Além da música, a censura no período militar também foi implacável com o teatro, a literatura, a poesia e o cinema. Quadros e livros infantis também foram censurados. Vocês pesquisaram outros tipos de obras censuradas para compor o clima do show? Quais?

    Josi – Conhecemos casos de obras e artistas de outras linguagens que foram censuradas, mas neste show focamos apenas no contexto musical.

    cantocalado
    Material de divulgação do projeto

    Hoje existe um movimento conservador que pede a volta da ditadura militar. Qual a opinião de vocês como artistas em relação a isso?

    Josi – Não concordamos com qualquer tipo de ditadura. A liberdade para expressar seus pensamentos e ideias, seja contra ou a favor qualquer assunto é essencial e qualquer ação que vá contra esse espaço de liberdade é, no mínimo, preocupante.

    Como é tocar em terminais de ônibus na hora do rush?

    Josi –  A escolha de tocar em terminais na hora do rush vem junto a uma reflexão e desejo de levar a música a grande quantidade de pessoas, ao mesmo tempo em que temos que lidar com a transitoriedade das mesmas. Por ser um local caracterizado pela sua rotatividade é muito gratificante quando uma pessoa ou um grupo de pessoas para e assiste a trechos da apresentação.

    Wellington – No aspecto técnico temos a experiência de montar, instalar e desmontar todo o equipamento de som a cada apresentação, tendo que lidar com todo tipo de ruído característico do local.

    Qual tem sido a reação do público?

    Josi – Temos atingido públicos de diversas faixas etárias, desde crianças e jovens que não viveram o período em questão, até pessoas mais idosas que se emocionam ao recordar o que viveram na época abordada. Ficamos felizes ao ver pessoas que chegam no começo, ou no meio da apresentação e vão ficando, ficando… até a última música. Algumas inclusive se despedem de nós quando precisam ir embora.

    Vocês pretendem continuar a turnê deste show em outros lugares?

    Josi – Sim. Já apresentamos este espetáculo em Fábricas de Cultura, e estaremos em outubro no teatro Zanoni Ferrite, em São Paulo.

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