‘Nunca mataria um cidadão de bem’, diz PM acusado pela maior chacina de SP

    No terceiro dia de júri, Victor Cristilder, acusado da morte de 17 pessoas, se disse inocente e deu nova versão sobre emoji de Whatsapp apontado como prova pela acusação

    Em todos os dias, policial permaneceu com a mesma roupa | Foto: Arthur Stabile/Ponte.org

    O policial militar Victor Cristilder declarou que jamais mataria um “cidadão de bem”, ao se defender da acusação de ter participado da maior chacina da história de SP, em 2015. Ataques a tiros vitimaram 23 pessoas em Osasco, Carapicuíba, Barueri e Itapevi e o PM responde a júri popular acusado de ter matado 17 das vítimas. 

    “Quando entrei na PM, jurei que daria a minha vida para proteger as pessoas, eu nunca mataria um cidadão de bem”, garantiu Cristilder, durante o seu interrogatório no terceiro dia de trabalhos, nesta quinta-feira (1º/3). “Sou legalista. Fiz prisões sem dar um tiro. Se o acusado dispara contra mim, eu vou disparar. Nunca tratei mal um preso”, sustentou.

    O PM rebateu as provas usadas pela promotoria para ligá-lo ao guarda civil municipal Sérgio Manhanhã, condenado no ano passado a 100 anos e 10 meses por 17 mortes na chacina. Segundo a acusação, uma troca de emojis de “joinha” no WhatsApp, entre o PM e o guarda, teria servido para indicar que os ataques haviam sido iniciados e, depois, que haviam sido bem sucedidos. A dupla trocou os primeiros sinais de joia, com os polegares levantados, às 19h de 13 de agosto. Quatro horas depois, perto das 23h, Cristilder mandou mais um emoji de joia. Manhanhã respondeu com outros dois emojis, um joia e um braço forte.

    Segundo o policial, um outro emoji sumiu quando o celular do GCM foi periciado pelo DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa). Havia, junto do segundo joia, a figura de um homem correndo, o que indicava que ele estaria indo embora do pelotão naquele momento. Cristilder afirma que, naquele dia 13, trabalhou das 6h45 às 19h e permaneceu na base pra aguardar um livro a ser entregue por Manhanhã. Como ele não apareceu, enviou essa mensagem e foi para casa. “Estavam acontecendo ataques e vocês só trocaram figuras?”, questionou a juíza Élia Kinosita Bulman. “Vidas estavam sendo ceifadas, como pergunto de um livro?”, respondeu Victor. Ele estudava pra prestar o concurso de sargento da polícia e havia pedido o livro emprestado.

    Foi a primeira vez que o PM mencionou a existência do emoji do homem correndo na troca de mensagens entre a dupla, que acabou sendo uma das provas-chave para a condenação do GCM. “A graça de Deus vai dando discernimento e a gente vai lembrando das coisas”, disse Victor, sobre o período preso, para explicar por que só agora havia se lembrado desse detalhe. As mensagens haviam sido apagadas do celular e recuperadas por um programa usado pelo DHPP.

    Um perito contratado pela defesa questionou o fato de o celular de Manhanhã ter sido submetido à perícia por um investigador, e não por pessoal específico. Alegou a possibilidade de o programa ter feito uma recuperação truncada, que teria deixado de recuperar algumas mensagens apagadas, como a do homem correndo. Porém, o promotor Marcelo Alexandre de Oliveira pontuou o fato de a perícia não precisar do trabalho específico de um perito. “Se pluga o celular ao equipamento, aperta um botão pra recuperar as mensagens. Como pode ser questionado o fato de não ter sido feito por perito? É só sabe apertar o botão”, argumentou.

    O celular do policial militar, apreendido pela polícia e apresentado no tribunal, deu motivo ao momento mais tenso e cinematográfico do julgamento até agora. O advogado João Carlos Campanini fez um requerimento para violar o lacre onde o celular estava guardado e ligar o aparelho, com a intenção de mostrar aos jurados a existência de supostas provas no Whatsapp de Cristilder que a polícia teria ocultado. A juíza Élia negou o pedido da defesa, afirmando que “o momento de produção de provas” já havia passado.

    O advogado, então, se exaltou e jogou o celular na mesa, gritando “Vocês estão se recusando a mostrar a verdade, a verdade está dentro desse celular!”.  Dirigindo-se ao promotor e à juíza, perguntou: “Vocês têm medo do quê?”. O promotor Marcelo Alexandre de Oliveira respondeu: “Tenho medo do que você pode fazer”. Por fim, o advogado finalizou dizendo: “Tenho medo que esse celular possa sumir igual ao do Manhanhã e por isso pedi para vistoriar”.

    Cristilder sustenta que permaneceu no batalhão ao longo das horas nas quais os crimes ocorreram, no dia 13; Disse nunca ter feito bicos (serviço fora da corporação) em estabelecimentos comerciais, o que seria “suicídio”, e de ter apelido diferente do de “Boy”, apontado por uma testemunha protegida como sua alcunha. Essa testemunha, que viu um homicídio ocorrido cinco dias antes, é quem liga Cristilder ao GCM. “Nunca fui chamado de Boy. Quem tem apelido Boy é quem tem dinheiro, eu moro em um cortiço que minha sogra colocou eu e minha esposa para morarmos. Meu apelido desde a infância é Dedé, não conheço nenhum Boy. Ela me confundiu com outra pessoa”, garantiu o PM.

    Acusação a delegados e sofrimento da família

    Depois, Cristilder listou as dificuldades na infância pra comprovar a tese de que nunca poderia ser chamado de Boy. “Quando era pequeno, meus amigos iam pra quermesse se divertir e eu ia pegar latinha pra me sustentar. Ia com minha mãe na Ceagesp pegar peixe podre pra comer porque não tínhamos condição. Olhava carro na igreja pra ganhar moedas. Quando consigo um emprego digno, vou colocar tudo em xeque por uma vaidade minha? Minha honra foi desonrada por essa pessoa. Trabalhava 38 horas direto, chegava em casa e meu filho já estava dormindo, mal dava atenção para minha esposa, pra dar uma vida melhor à minha família lá na frente”, contou, emocionado.  Segundo ele, conseguiu prestar o concurso dentro do Presídio Militar Romão Gomes e se tornou o primeiro na história da PM a passar na prova escrita estando preso. “Mas não me deixaram fazer o exame físico”, lamentou.

    Advogado de defesa discutiu com juíza sobre celular não periciado | Foto: Arthur Stabile/Ponte.org

    Cristilder afirma que os policiais civis erraram ao acusá-lo pois, segundo ele, o delegado José Mario de Lara, do DHPP, estava sofrendo “forte pressão” pra dar resposta à sociedade sobre a maior chacina da história de São Paulo. E relatou o sofrimento vivido por ele e sua família desde a prisão, no dia 8 de outubro de 2015. “Todos os dias eu pergunto a Deus porque estou preso. Meu filho batia na minha cintura, hoje ele tem 14 anos e está quase maior que eu. Minha mulher tinha um cabelão que começou a cair, ela tem depressão e passa por psicólogo. Eu desenho quadros na cadeia e, além da ajuda de PMs amigos, eles fazem rifa pra ela se sustentar. Comprei um apartamento em 345 vezes em 2012, ele foi entregue ano passado e nunca vi. Nunca tive nada na vida, nunca desviei para o caminho do mal”, desabafou, antes de falar sobre a condenação de Manhanhã.

    “Todos os dias na cama lembro que tem uma pessoa condenada a 100 anos por eu ter pedido um livro emprestado pra ela. Ela está presa por minha causa por esse livro, uma pessoa íntegra presa por minha causa”, disse, chorando. Antes, ele disse não guardar “mágoas” da testemunha Beta, a qual, segundo ele, foi coagida a incriminá-lo.

    O 4º réu

    O PM Victor Cristilder é acusado por participar de 17 das 23 mortes ocorridas na maior chacina da história paulista. Em setembro do ano passado, outros três acusados foram condenados a mais de 600 anos – somadas as penas. O processo de Cristilder acabou desmembrado por falta de documentos na fase final do processo. Somente da semana passada para esta, o advogado que o defende incluiu oito mil páginas no processo, de acordo com a promotoria.

    Os policias militares Fabrício Eleutério e Thiago Henklain e o GCM de Barueri Sérgio Manhanhã foram considerados culpados por 17 dos 23 assassinatos ocorridos entre os dias 8 e 13 daquele mês. Fabrício pegou 255 anos, 7 meses e 10 dias; Thiago, 247 anos, 7 meses e 10 dias; Sergio, 100 anos e 10 meses. Todos cumprem as penas em regime fechado.

    Nos dois dias anteriores, a principal testemunha do julgamento do policial militar Victor Cristilder não apareceu no primeiro dia do júri. A pessoa, que tem sido chamada de ‘Beta’ por questões de segurança, foi peça-chave no indiciamento do PM, segundo a promotoria. “Não sei se esta viva. Você sabe bem o que acontece com testemunhas aqui em Osasco, não sabe?”, declarou a assistente de acusação, Maíra Coraci Diniz. Na quarta-feira (28/2), foi a vez do advogado de defesa João Carlos Campanini questionar ao pai de Letícia Vieira Hillebrand da Silva, morta aos 15 anos por uma bala perdida e uma das 23 vítimas da chacina, se ela se “relacionava com alguém ligada ao crime”.

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