O mundo aberto é logo ali

    Aos doze anos, Gabriela* já era vítima de um sistema que criminaliza a dependência química e a pobreza. Hoje, aos 27, com quatro filhos e diversas passagens pela prisão, ela diz que precisa ser uma pessoa melhor e sorri. Ela ainda não sabe, mas já é uma pessoa boa

    Ilustração: Maria Hallack

     

    No coração de Gabriela* não cabem todas as dores do (seu) mundo. Por isso, como escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade, ela se despe, se grita e se expõe. Precisa falar. E quando fala, sorri. Apesar de sua história ser um ponto fora da curva entre as histórias da maioria das mulheres que habitam o interior dos muros da prisão, ela não tem vergonha de dividi-la com as pessoas que se aproximam: era dependente química, traficava e roubava para sustentar seus vícios, a si própria e a seus filhos.

    Gabriela conheceu o sistema punitivo brasileiro quando tinha apenas 12 anos. Filha de uma mãe dependente química do crack e de um pai que, segundo ela, era “bandido”, a pequena sofreu sua primeira internação na antiga Febem (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor), atual Fundação Casa, devido a um furto.

    Hoje, ela cumpre a sétima pena desde que alcançou a maioridade. Foi presa em março de 2016, grávida de quatro meses, por tráfico de drogas. Sua prisão foi forjada e isso é uma das coisas que a deixa mais revoltada, porque transformou sua filha em mais um bebê nascido e criado entre muros — ela considera um absurdo a filha ter que pagar por um erro que não cometeu. “Falaram que me prenderam em flagrante, mas era mentira. Eu não tava traficando na hora, só que eu já era conhecida por ali. Os policiais jogaram um monte de droga nas minhas coisas e me levaram, nem quiseram saber se eu tava grávida”.  Depois da apreensão, foi levada ao Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha, um lugar horrível, segundo ela e as demais mulheres com quem conversei. Lá, as celas são superlotadas e as presas não têm atendimento médico nem acesso a medicamentos.

    Quando a gravidez de Gabriela alcançou os oito meses, ela foi transferida para o pavilhão materno da PFC (Penitenciária Feminina da Capital) e foi lá que nos conhecemos. Inicialmente, ocupava uma das celas compartilhadas, que contam com três camas, três berços e um banheiro, e hoje fica em uma cela individual, que considera melhor por dar mais privacidade e segurança para ela e Ana, sua bebê.

    A PFC compõe uma pequena estatística entre os presídios femininos do Brasil. Segundo dados do Ministério da Justiça divulgados em 2014, entre as prisões femininas, apenas 34% possuem cela/dormitório adequado para gestantes e somente em 32% existem berçários e/ou centro de referência materno-infantil. Ainda assim, são poucas as diferenças entre o pavilhão materno e os pavilhões regulares da instituição. Nos corredores, as mesmas paredes frias agora contam com folhas sulfites estampadas com desenhos infantis e carrinhos de bebê enfileirados. No pátio, o único banco de cimento não fica protegido do sol e três escorregadores de plástico se destacam em um cenário pobre de cores e nuances. Os brinquedos são inúteis, uma vez que a unidade só aceita que as crianças fiquem lá até seis meses de vida, apesar de este ser apenas o tempo mínimo de permanência dos filhos junto às mães que estão em cárcere, segundo a Lei n.º 11.942, de 2009. De resto, nada ali grita que gestantes e bebês existem dentro daqueles muros — o que talvez seja uma forma de fazer com que eles não existam mesmo.

    Antes de Ana

    Fora da cadeia, a vida de Gabriela girava em torno da dependência química do crack. Moradora da região central de São Paulo que é popularmente conhecida como Cracolândia, ela afirma que “levava jeito” para traficar e essa foi a saída que encontrou para pagar as drogas que usava e um teto para ela e os quatro filhos que vieram antes da caçula Ana. Depois que conheceu a rotina do tráfico, recusava-se a morar na rua e passou a viver em pensões cujo valor da diária era R$ 70,00. Também precisava de dinheiro para comprar café da manhã, almoço e jantar para ela e os quatro filhos, uma vez que o quarto alugado não possuía fogão ou geladeira. “Eu comprava 500 pedras de crack. Usava 200, vendia 300 e até sobrava dinheiro pra eu comprar um tênis ou um casaco que algum dos meus filhos pediam. Eles gostam de coisa que aparece o nome da marca”, lembra.

    Gabriela ficou grávida pela primeira vez aos treze anos, quando deu à luz uma menina. Depois da primogênita, vieram mais três gravidezes e hoje a família é formada por uma adolescente de catorze anos, uma de doze, um menino de nove e mais uma menina de sete, cuja irmã gêmea morreu durante o parto. Todos são filhos de homens que Gabriela conheceu no contexto do crack e de quem ela quer distância. Os chama de “perdidos” e fala com muita certeza que não deseja mais pessoas assim em sua vida.

    Enquanto esteve na rua, seus filhos permaneceram debaixo de suas asas, apesar do vício. Como passava a maior parte do tempo fora de casa, traficando e usando drogas, não conseguiu construir relações de afeto com as crianças, mas cuidou delas do jeito que sabia e da melhor forma que podia. Ela fez questão de colocar todos na escola e sempre se desdobrou para comprar as coisas materiais que pediam, mas tem consciência de que suas prisões constantes os afetam de maneira direta. “Uma vez pediram meu endereço na escola da minha filha mais velha. Ela virou pra mim e falou que ia passar o endereço da cadeia, já que eu nunca saía dessa vida. Falou que não aguentava mais. Eu fiquei sem chão de ouvir isso, mas eu sei que ela tá certa”, desabafa.

    Depois que foi presa no início do ano, as crianças passaram a ficar sob os cuidados de um “irmão”, como são conhecidos os traficantes que fazem parte do PCC (Primeiro Comando da Capital), facção criminosa que ela conheceu na Cracolândia. Gabriela nunca mais teve contato com eles e, por enquanto, prefere continuar assim. “Eu tenho vergonha da minha situação. E eu sei que eles estão protegidos, ninguém mexe com eles. Eles vão pra escola, vão até pra igreja. Quero me endireitar primeiro, arrumar minha vida, pra depois pegar eles de volta”, afirma, como quem tenta arranjar justificativas para si própria.

    Depois de Ana

    A vontade de mudar seus hábitos veio depois do nascimento de Ana, que hoje tem apenas três meses. Apesar da transformação que representa na vida de Gabriela, a chegada da filha também veio carregada de tropeços, afinal, foi um parto conduzido pelas mãos de um sistema cruel e violento. Tudo começou quando Gabriela sentiu as primeiras contrações. Ela chamou a guarda da prisão responsável por requisitar a escolta que leva as mulheres até o hospital, mas a funcionária insistiu em dizer que ela estava mentindo sobre o trabalho de parto, que queria sair da cadeia para “passear”. Gabriela, uma mulher de temperamento forte, ficou muito nervosa. “Eu tive quatro filhos, eu sei como é a dor do parto. Nessa hora eu já tava de cabeça quente”, ela conta. A espera foi intensa e nesse meio tempo ela pediu dois calmantes na enfermaria para tentar não brigar com a carcereira no que seria um dos dias mais importantes e difíceis de sua vida.

    Muitas horas depois e sob o efeito de remédios, ela foi escoltada até o hospital e deu à luz uma bebê que precisou passar três dias na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) Neonatal porque nasceu depois do tempo ideal. Para ela, é difícil lembrar das violações que sofreu durante o nascimento de Ana. “Primeiro não queriam deixar eu ter minha filha. Aí quando eu cheguei lá, a Senhora [como as mulheres devem se referir às funcionárias da prisão] falou para os enfermeiros não me tratarem bem porque eu era bandida e tinha tentado abortar. Era mentira! Eu tomei remédio porque aquela mulher estava me deixando louca. Depois eu tive alta e não queriam deixar eu ficar com a minha filha. Foi horrível. Esse lugar acaba com a gente”, desabafa, com a respiração ofegante.

    Em seguida, olha para a filha enquanto a amamenta e sua feição muda quando ela começa a falar de Ana. Os olhos brilham, a respiração se acalma e parece que ela segura a bebê ainda com mais paixão. “Ela é perfeita. Olha só esses pézinhos… não é que eu ame mais ela do que meus outros filhos, mas essa é a primeira vez que eu tenho a chance de cuidar de verdade de um filho meu e agora eu entendo que eles não têm que pagar pelos meus erros. Minha filha não é presa. A presa sou eu”.

    Decidida a abandonar todas as coisas que considera negativas em sua vida, Gabriela também parou de fumar e para manter sua cabeça ocupada se matriculou em todos os cursos que a unidade oferece às mulheres. Durante a semana, ela frequenta aulas de Ética e Cidadania ministradas por advogados, de confecção de bijouterias e de shantala, uma técnica de massagem própria para bebês. “Se eles oferecem, eu vou, né. Não dá pra ficar aqui sem fazer nada”, conta. Além das atividades oferecidas pela instituição, ela ocupa seu tempo sendo manicure das colegas, escolhendo novos desenhos para estampar suas unhas e mudando a cor do cabelo. Toda semana, ela tem alguma novidade para mostrar. “É por isso que eu levava jeito pro tráfico, toda hora eu tava com um cabelo diferente, ficava fácil de disfarçar quem eu era”, brinca, com um sorriso largo estampado no rosto.

    Apesar de comparecer a todas as atividades da cadeia, Gabriela continua sendo uma mulher que subverte às regras disciplinares da prisão e à docilidade imposta pelo sistema — constantemente se envolve em uma discussão. A última história que me contou foi a de que bateu em uma mulher que zombou dos traços de sua filha. “Se mexem com a minha filha, eu mato. E eu não tenho medo de falar isso não”. Ao mesmo tempo, possui um senso de coletividade que é difícil de ser visto entre os muros da prisão. Quando faz alguma coisa errada, se apresenta às carcereiras e diz que foi sua culpa para que nenhuma outra mulher seja repreendida por seus erros. Além disso, a maioria das brigas que ela se envolve tem a ver com a defesa do coletivo, uma vez que constantemente a diretoria da ala materna tenta punir todas as mulheres do pavilhão pelo desvio de uma só. “Por exemplo, aqui a gente tem uma televisão por andar. Por causa de uma menina que respondeu a guarda, elas iam tirar a televisão de todo mundo. Eu fui lá e discuti. Isso não tá certo. É por isso que tem umas guardas aqui que não gostam de mim”, explica.

    Nos intervalos das atividades que exerce no dia a dia, o cotidiano de Gabriela é preenchido com a rotina exigida pelo sistema prisional. O horário de banho inicia às 9h. Às 11h15 já chega a papinha dos bebês e às 11h30, o almoço das mulheres. Antes mesmo do sol se pôr, às 16h30, já é o horário da janta. De duas em duas semanas, um pediatra visita a instituição, mas as cerca de 60 mulheres precisam se revezar para que todas as crianças sejam atendidas pelo menos uma vez por mês. Além disso, quando elas entram na ala materna, ganham direito a um carrinho de bebê que deve ser usado apenas no andar térreo do pavilhão e ser devolvido às guardas quando o relógio marcar 16h. Toda semana, as mães recebem um kit com 45 fraldas e todo mês, um pacote com 70 lenços umedecidos. A opinião sobre ambos é consenso entre as internas da PFC: a qualidade é ruim, não têm absorção e dão alergia nos bebês.

    Nesse ponto, Gabriela tem sorte. Toda semana seu companheiro Marcelo envia o jumbo, nome dado ao kit de mantimentos, produtos de higiene, alimentação e roupas que os detentos podem receber de familiares. Ele também visita ela e a filha todos os sábados.

    Marcelo é a única família de Gabriela. Há quatro anos, sua avó, a pessoa de quem ela era mais próxima e por quem era apaixonada, faleceu. Já o contato com seu pai foi interrompido anos antes, quando suas prisões passaram a ser constantes. Ele ficou sabendo que a filha havia sido presa mais uma vez em março, mas afirmou que só a visitaria se ela estivesse disposta a dar a guarda definitiva de Ana para ele. Gabi recusou a proposta e até hoje espera que o pai responda suas cartas. “Ele não me considera mais filha dele, e eu até entendo… mas achei que ele iria mudar de ideia quando conhecesse a Aninha”.

    Enquanto isso não acontece, ela continua depositando no marido toda a sua confiança e a certeza de que uma vida completamente diferente a espera no mundo aberto. Ele não é o pai biológico de Ana, mas Gabriela não costuma trazer isso à tona porque Marcelo cumpre com todas as expectativas que ela construiu em cima de uma figura paterna. Eles se conheceram logo no início da gravidez e Marcelo não pensou duas vezes em assumir a guarda da bebê quando soube que Gabriela não queria mais contato com o pai da criança. Hoje, a pequena Ana carrega o sobrenome de Marcelo, e ela não poderia estar mais orgulhosa. “Ele é maravilhoso pra mim, traz tudo que eu e ela precisamos e ainda vem me visitar. Não é todo mundo aqui dentro que tem isso”, conta. Marcelo é dono de uma pensão na região da Cracolândia e também tira parte de seu sustento do tráfico. Apesar disso, ela afirma que ele é a pessoa mais correta com quem já teve um relacionamento.

    Uma pessoa melhor

    Foram muitas semanas encontrando Gabriela até que seu primeiro encontro com um juiz finalmente acontecesse — algo recorrente, visto que cerca de 30% das mulheres presas no Brasil não possuem condenação, segundo o Ministério da Justiça. Sete meses depois de sua prisão, quando ela finalmente sentou à frente da juíza responsável pelo caso, seu defensor público não estava preparado para representá-la, a juíza passou boa parte do tempo discursando sobre a irresponsabilidade de Gabriela em ser uma mulher, mãe de quatro filhos, “viciada e bandida” e condenou-a na mesma hora a 16 anos de regime fechado. Gabriela tentou argumentar que era lactante e amamentava uma bebê de apenas dois meses na época, mas não havia junto ao processo nenhum documento que comprovasse essa situação. Uma semana depois, a penitenciária enviou as provas de que ela havia dado à luz e sua sentença caiu para seis anos, algo difícil de acontecer em um espaço tão curto de tempo.

    Ainda que a lei permita que ela cumpra apenas dois quintos da sentença que lhe foi imposta, Gabriela permanece angustiada. Todos os dias, ela pensa no momento em que terá de entregar a pequena Ana para Marcelo e então seu cotidiano no cárcere ficará ainda mais difícil. Ela reza para depois disso ser enviada aos pavilhões regulares da PFC, já que a instituição oferece trabalho, o que promove a remissão de pena e permite que ela se mantenha ocupada e longe de brigas, e é um local de fácil acesso ao marido, que já está acostumado a se deslocar todo sábado até a Zona Norte da cidade.

    Mesmo aflita, quando pergunto sobre os planos que tem para sua liberdade, ela abre um sorriso e começa a falar sem parar: “A primeira coisa que eu vou fazer quando sair da cadeia é ir na igreja agradecer. Dessa vez eu aprendi. Aprendi a gostar de mim e ser feliz com o que eu tenho. Aprendi a fé. Vou ser diferente, vou dar o melhor de mim para os meus filhos”. Gabriela também quer voltar a estudar, pois cursou apenas até a terceira série do ensino fundamental, e deseja encontrar um trabalho que dê a ela condições de morar sob o mesmo teto de Marcelo e consolidar uma família. Falar de planos para o futuro a deixa extasiada. O brilho em seus olhos chega a ser o mesmo de quando ela assiste Aninha dormir e não resiste em beliscar a filha ou arrumar algum detalhe em sua roupinha. Eu nunca a havia visto tão serena.

    Depois de quatro meses encontrando-a e conhecendo suas histórias de dentro e fora da prisão, a idade de Gabriela nunca tinha vindo à tona e eu finalmente perguntei. “Vinte e sete, mas não parece né? Eu tô acabada”, ela responde. Me assusto. Não por sua aparência, mas pela bagagem que ela carrega consigo. Aos doze anos, ela já era vítima de um sistema que criminaliza a dependência química e a pobreza. Hoje, aos 27 e com tantas passagens pelo sistema carcerário, ela afirma que precisa ser uma pessoa melhor e sorri, como sorriu em todos os outros momentos em que estivemos juntas. Ela ainda não sabe, mas já é uma pessoa boa. Penso comigo: o mundo aberto não perde por esperar.

    Leia também:
    Sonhos não cabem entre muros

    * Nome fictício

    ** Texto originalmente publicado no livro-reportagem “Metamorfose entre Muros”, TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) de Andressa Vilela para a PUC-SP em dezembro de 2016.

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