Os trinta algozes não são loucos. São homens em uma sociedade machista

    Eles agiram segundo as próprias regras sob as quais funcionamos. Essas que estruturam a sociedade de uma maneira hierárquica e colocam as mulheres em posição de inferioridade

    Ilustração: Ribs

    Ilustração: Ribs

    Por Maíra Kubík Mano,
    especial para a Ponte Jornalismo

    Eu estou com ódio.

    Mais de 24 horas depois de ler a primeira notícia sobre o estupro da adolescente carioca cometido por cerca de 30 homens, e que foi compartilhado por eles via redes sociais, eu só consigo sentir ódio e revolta. Escrevo agora, depois de quase um dia de silêncio, com os olhos cheios d’água. Escrevo como uma mulher, alguém que, por ser socialmente identificada de uma determinada maneira, poderia ter passado pela mesma situação que essa garota.

    Nós, mulheres, todos os dias experimentamos a vulnerabilidade da violência – assim como ocorre com boa parte da população brasileira, por diferentes razões que não apenas o patriarcado, mas também o racismo e a desigualdade social, em um grau maior ou menor, geralmente imbricados.

    Experimentamos, cotidianamente, a possibilidade, ou a realidade, de sermos estupradas, de apanharmos, de morrermos, em geral pelas mãos de nossos familiares e/ou companheiros, antigos ou atuais. Nossas existência está sempre em risco justamente porque não podemos vivê-la em sua plenitude. Somos coisas, objetos que pertencem a outras pessoas, seja por laços matrimoniais, seja por laços consanguíneos. E por esse estatuto social menor, nossos corpos são públicos, podendo ser apropriados no meio da rua.

    O estupro é uma peça-chave dessa engrenagem. Funciona como o recado dado às mulheres para não sairmos desse lugar de inferioridade social. A violência é justamente o mecanismo que, longe de ser um desejo incontrolável dos homens, é uma maneira dos dominantes exprimirem, mas também produzirem, a inferioridade das mulheres. Esses trinta e poucos algozes que quiseram mostrar ao mundo que tinham dilacerado uma vagina não são loucos. Eles são homens, criados em uma sociedade machista. “O racista numa cultura com racismo é por esta razão normal”, dizia Frantz Fanon. O machista, em uma sociedade machista, é normal – com todas as aspas que a palavra “normalidade” pode comportar. Eles agiram segundo as próprias regras sob as quais funcionamos. Essas que estruturam a sociedade de uma maneira hierárquica.

    A violência é justamente o mecanismo que, longe de ser um desejo incontrolável dos homens, é uma maneira dos dominantes exprimirem, mas também produzirem, a inferioridade das mulheres

    No Brasil, são 47 mil estupros registrados por ano. E nem todos os estupros aparecem nas estatísticas. Muitas das que passam por situações de violência em seus próprios lares não conseguem fazer a denúncia. Dizem as más línguas que elas não querem sair desse lugar. Ou que elas merecem. Ou que elas provocam. O que não dizem é que, quando elas cedem a esse tipo de vivência, não quer dizer que elas estão consentindo – como afirma a socióloga francesa Nicole-Claude Mathieu.

    Eu estou com ódio.

    Estou com ódio porque o novo ministro da Educação, que foi colocado no cargo por um golpe parlamentar-jurídico-midiático, recebeu, para discutir o ensino no país, no mesmo dia desse caso descrito aqui, um homem que “confessou” um estupro em cadeia nacional de televisão. Enquanto isso, há cerca de um mês eu acompanhei, com pouco mais de cem pessoas, a votação do Plano Estadual de Educação (PEE) da Bahia, que eliminou o debate de gênero e combate ao machismo de suas diretrizes. Nessa ocasião, a Bíblia prevaleceu sobre o Estado laico e o que poderia ser um mecanismo fundamental de, no futuro, impedir que tais situações de violência existam, foi simplesmente descartado. Assisti, em plena Assembleia Legislativa da Bahia, a um deputado estadual pregar que esse tipo de assunto não deveria ser discutido nas escolas porque “Eva nasceu da costela de Adão”. E, para além de uma vanguarda de trabalhadores da educação, a sociedade local não reagiu a tamanha atrocidade. Infelizmente, 15 dias depois uma professora foi assassinada em plena escola, em Salvador (BA), pelo próprio marido. E daí quem não tinha se mobilizado em prol do gênero no Plano Estadual de Educação fez um ensaio de mea culpa, mas insuficiente para reverter qualquer disputa política.

    Assisti, em plena Assembleia Legislativa da Bahia, a um deputado estadual pregar que esse tipo de assunto não deveria ser discutido nas escolas porque “Eva nasceu da costela de Adão”.

    Eu estou com ódio.

    Estou com ódio porque no dia em que saiu a notícia do estupro no Rio de Janeiro também circulou uma outra, referente a uma moça que sofreu algo semelhante no Piauí. Porque isso já aconteceu tantas outras vezes. Porque em Queimadas (PB), em 12 de fevereiro de 2012, dez homens decidiram “presentear” um amigo aniversariante com o estupro coletivo de cinco mulheres. Elas foram convidadas para a festa e, em um dado momento, dois dos participantes se retiraram e voltaram ao recinto usando máscaras, simulando que a casa onde ocorria a comemoração estava sendo assaltada. Duas delas foram torturadas e assassinadas – a recepcionista Michelle Domingos e a professora Izabella Pajuçara. Não nos esquecemos delas.

    Eu estou com ódio.

    Estou com ódio porque o Brasil é o país do mundo que mais mata travestis e transexuais.

    Eu estou com ódio.

    Tomara que, assim como eu, todas as pessoas que estejam com ódio, ou revoltadas, ou envergonhadas, ou estarrecidas, ou minimamente sensibilizadas por esse caso saiam a público para dizer: basta! Nem uma mulher a menos. Simplesmente não podemos permitir que a violência prevaleça. Eu não quero viver com ódio.

    * Maíra Kubík Mano é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora do departamento de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisa a participação e representação política das mulheres.

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