PM aplica choque elétrico em homem algemado e detido sem motivo

Delegado de Sertãozinho (SP) considerou que vídeo não tinha prova de crime e liberou os policiais. Para advogado Ariel de Castro Alves, PMs poderiam ser presos em flagrante por tortura

Os policiais militares Afonso Caetano Paulini e Arthur Henrique de Carvalho Filho algemaram o ajudante José Henrique Campos Venâncio, 28 anos, e aplicaram nele choques elétricos com taser, por volta das 18h desta terça-feira (28/12), em Cruz das Posses, na área rural de Sertãozinho (SP). Em um vídeo a que a Ponte teve acesso, é possível ver que a dupla aplica os choques mesmo com o rapaz deitado no chão, sem mostrar resistência.

A violência foi registrada como lesão corporal e resistência à prisão na Delegacia Seccional da Polícia Civil da cidade. No boletim de ocorrência, o delegado Thiago Tavares de Carvalho conta que teve acesso ao vídeo, mas não viu crime nenhum ali. Para ele, “tais imagens não revelam todos os fatos conforme noticiados nos depoimentos das partes” e não permitiam concluir, sem “uma apuração mais detalhada”, se houve “eventual excesso ou abuso por parte dos milicianos” (referindo-se aos policiais). O delegado, então, decidiu liberar a todos sem indiciar ninguém.

De acordo com o advogado Augusto Costa, que defende José Henrique, o ajudante tinha acabado de voltar do trabalho, no final da tarde de ontem, quando pediu emprestada a moto de um vizinho para visitar a mãe, que está doente. No caminho, os policiais passaram por ele. Como não tem habilitação para dirigir, José teria descido da moto e passado a empurrar o veículo pela contramão de uma outra rua.

“Ele informa que, nesse momento os policiais retornaram e já o algemaram direto, antes de qualquer abordagem. Os policiais dizem que ele apresentou resistência, fato que ele nega prontamente. Ele foi revistado e tomou alguns golpes de cassetete e alguns chutes e com isso caiu no chão. Quando ele tentou se levantar, foi aí que ele começou a levar os choques com o taser”, conta Augusto Costa.

O advogado informa que, quando o vídeo começou a ser gravado, José Henrique já estaria tomando seu terceiro choque elétrico. “Tudo que acontece no vídeo ocorre depois dele ter tomado dois disparos de taser. As imagens mostram que o soldado Carvalho pede para que ele se levante e vá até a viatura e, quando ele tenta se levantar, é eletrocutado”, descreve.

Tortura e abuso de autoridade

Ouvido pela Ponte, o advogado criminalista Ariel de Castro Alves, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais e especialista em direitos humanos e segurança pública pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), considerou que o vídeo mostra os dois PMs praticando tortura e abuso de autoridade, e não apenas lesão corporal, como registrado pelo delegado.

“O que se vê é uma ação totalmente abusiva, na qual os PMs torturam e cometem abuso de autoridade como retaliação. O rapaz não era suspeito de nenhum crime que justificasse a abordagem policial, tanto que foi liberado na delegacia”, comenta Ariel.

O especialista explica que, ao registrar o crime como lesão corporal — um delito leve, punido com detenção de três meses a um ano —, o delegado na prática jogou para a vítima a responsabilidade de acionar as autoridades para tentar punir os policiais. É que a lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, no artigo 88, determina que as lesões corporais são crimes de ação penal pública condicionada, ou seja, dependem de uma representação da vítima para dar início a um processo judicial.

Segundo Ariel, o delegado deveria enquadrado os policiais pelo crime de tortura, que a lei federal 9.455, de 1997 define como “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental” e prevê pena de reclusão de dois a oito anos. “Se os policiais fossem autuados por tortura, poderia gerar a prisão em flagrante dos PMs”, aponta.

O delegado Thiago Tavares de Carvalho escreveu no boletim que orientou o ajudante agredido pelos policiais a, caso quisesse, procurar novamente a Polícia Civil, nos próximos seis meses, para representar contra os PMs.

O advogado de José afirma que o ajudante ainda não sabe se vai fazer essa representação contra os policiais. “Ontem ele ainda estava em estado de choque diante tudo o que aconteceu. Hoje fomos ao IML fazer o exame de corpo de delito. As imagens do vídeo e as fotos das lesões foram anexados ao processo. Ainda irei conversar com ele para saber qual será a vontade dele em relação a esse caso”, explica Augusto Costa.

O que diz a polícia

Na versão dos policiais, registrada no boletim de ocorrência, José Henrique teria “disparado na contramão da via” ao ver os PMs. Ao ser perseguido, teria largado a moto e fugido a pé. Os PMs afirmam que detiveram o ajudante e, ao revistá-lo, “nenhum objeto ilícito foi encontrado” com ele. Mesmo assim, a dupla resolveu “usar a força física” para “imobilizar o suspeito, que não apenas tentou fugir, mas também lesionou o dedo de um dos PMs”. No boletim, os policiais também reclamam de que José se recusava a entrar algemado na viatura — embora eles não tivessem motivo legal para colocá-lo ali dentro e nem para levá-lo à delegacia.

Por meio de nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo do governo João Doria (PSDB) limitou-se a afirmar que “o caso foi registrado como lesão corporal e resistência”. A pasta reforçou que “foram solicitados exames ao IML para os envolvidos e o indivíduo detido pelos policiais militares foi orientado quanto ao prazo de seis meses para oferecer representação criminal”.

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