PM ataca trabalhadores negros em ações ilegais para defender bairros brancos de São Paulo

Criada para combater aumento de roubos nos bairros mais ricos e brancos de São Paulo, a Operação Sufoco, do governo Rodrigo Garcia (PSDB), faz enquadros ilegais contra motoboys, categoria de maioria negra; para especialistas, ação é racista, ilegal e ineficiente

Ação da Operação Sufoco no bairro de Pinheiros | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

O pedido de almoço de uma moradora de Pinheiros, bairro de classe média alta na zona oeste da cidade de São Paulo, atrasou pelo menos vinte minutos na última sexta-feira (6/5). Motivo: o entregador que levava o pedido, Bruno Souza, 38 anos,  foi parado no meio do caminho por uma blitz da Operação Sufoco, da Polícia Militar do Estado de São Paulo, na avenida Henrique Schaumann.

Lançada neste mês pelo governador Rodrigo Garcia (PSDB), pré-candidato ao governo estadual, a operação tem como objetivo enquadrar o maior número de motociclistas que trabalham fazendo entregas, a fim de encontrar pessoas que estejam se passando por profissionais da categoria para cometer roubos. Bruno diz que motoqueiros sempre foram alvos da polícia, mas agora estão sendo colocados como inimigos públicos para toda a sociedade.

“Acho que todo motoqueiro que mora em São Paulo já tomou enquadro da polícia alguma vez na vida. Só que agora eles estão mirando na gente que trabalha fazendo entrega”, relata o entregador, que diz que a população nunca olhou para os motoristas de motocicleta com bons olhos. “Só lembram que a gente existe em três situações: quando a gente atrasa o pedido, quando a gente sofre algum acidente na rua ou quando a polícia para a gente.”

Para especialistas ouvidos pela Ponte, as ações do governo Garcia na Operação Sufoco são racistas, ineficientes e ilegais. A operação mira uma categoria em que 61,6% dos trabalhadores são negros — segundo um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) — e utilizam métodos de abordagem que já foram considerados ilegais pelo Superior Tribunal de Justiça.

Ação da Operação Sufoco no bairro de Pinheiros | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

Em decisão recente, a Sexta Turma do STJ concluiu que a polícia não pode dar baculejo, enquadro ou geral — como são conhecidas popularmente as abordagens ou “buscas pessoais” feitas pelos agentes públicos — baseada nas impressões do policial sobre a aparência ou “atitude suspeita” de alguém. De acordo com o ministro do STJ Rogério Schietti, a suspeita do policial precisa ser justificada “pelos indícios e circunstâncias do caso concreto” de que a pessoa tenha drogas ou armas e não pode servir como desculpa para autorizar “buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo”.

Uma das ações da Operação Sufoco, filmada na semana passada por um morador do bairro rico da Vila Olímpia, revela algo bem diferente de uma ação com base em indícios concretos, ao mostrar uma fileira de motoboys sendo enfileirados e revistados em massa por policiais.

Para o advogado Ariel de Castro Alves, especialista em segurança pública e direitos humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP) e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, a Operação Sufoco desrespeita a Constituição ao enquadrar toda uma categoria de trabalhadores como criminosos em potencial. 

https://ponte.org/se-governo-seguisse-as-proprias-leis-crimes-de-falsos-entregadores-seriam-mais-faceis-de-coibir-aponta-sindicato/

“Estão tratando todos os motociclistas entregadores como suspeitos, sem motivações  concretas e fundadas suspeitas individualizadas sobre cada um deles, conforme prevê o Código de Processo Penal. Então a ação é ilegal e inconstitucional, já que a Constituição Federal prevê que todos são iguais perante a lei e têm direito à presunção de inocência e à liberdade”, enfatiza. “Com base na decisão do STJ,  as abordagens e buscas pessoais somente poderiam ser realizadas diante de fundada suspeita, como no caso de alguma testemunha que diz pra polícia que viu a pessoa a ser abordada com arma, assaltando ou vendendo drogas”, lembra.

“A cor da pele é decisiva”

A questão racial também aparece na própria motivação para a Operação Sufoco: enfrentar uma “onda de roubos” que, apesar de noticiada com alarde em diversos veículos de comunicação, não teve grande impacto no total de roubos registrado na cidade de São Paulo, mas atingiu principalmente os bairros mais ricos e brancos.

Segundo um levantamento feito pelo jornal O Estado de São Paulo com base em dados da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), os roubos têm aumentado nos bairros com população de maior poder aquisitivo da capital paulista e também na região central, principalmente Campos Elíseos, Consolação, Itaim Bibi e Pinheiros. De acordo com a publicação, nas quatro localidades esse tipo de crime aumentou em mais de 100% no período de um ano.

Em contrapartida, o Mapa da Desigualdade, publicado em 2019 pela Rede Nossa São Paulo, mostra que apenas 11,08% dos moradores do bairro de Pinheiros são pretos ou pardos. No Itaim-Bibi esse número é de 8,26%, e na Consolação, 10,61%. O levantamento não cita o bairro dos Campos Elíseos.

O aumento localizado de roubos nesses bairros não se refletiu em outras partes da cidade. Segundo dados da SSP, o número de roubos na capital paulista aumentou 10,14% no primeiro trimestre de 2022 em relação ao mesmo período do ano passado. Mesmo assim, o número é menor do que o contabilizado em 2020, período que antecede a pandemia de coronavírus no País. 

Nos três primeiros meses de 2020, a SSP registrou 40.130 roubos na cidades de São Paulo, enquanto no mesmo período em 2021 foram 31.463 e de janeiro a março deste ano foram 34.654 roubos.

“Essa operação demonstra o regime de racialização que existe na cidade de São Paulo. A perseguição, prisão e morte tem alvo e isso está na própria voz do governador quando ele geolocaliza os motoqueiros. Eu vejo com muita preocupação todo este arsenal bélico, além dos gastos públicos, que só reforça o caráter racista nas formulações de políticas de segurança no estado”, define a advogada Dina Alves, mestre em antropologia com ênfase em gênero e raça pela PUC-SP.

Logo após assumir o governo, após a renúncia do também tucano João Doria, o governador Rodrigo Garcia prometeu uma atuação policial mais violenta, dizendo: “Aqui em São Paulo, o bandido que levantar a arma pra polícia vai levar bala da polícia”. No lançamento da Operação Sufoco, no dia 5, voltou a adotar um tom ameaçador: “Mandei um recado claro para esses falsos entregadores que, de maneira covarde, colocam um capacete e uma mochila de delivery falsa nas costas e cometem crimes em São Paulo, que é melhor eles mudarem de estado ou de profissão”.

https://ponte.org/policia-so-pode-enquadrar-pessoas-se-tiver-motivos-concretos-decide-stj/

“As estatísticas mostram que a cor da pele é decisiva para a polícia sanguinária de São Paulo matar com a chancela do governador e do presidente da República. É muito preocupante porque esse discurso do Rodrigo Garcia orienta os policiais, diante de um episteme racial, a atirar para matar”, defende Dina.

‘É constrangedor ser enquadrado no trabalho’

Esperando alguma corrida para fazer perto da hora do almoço na avenida Duque de Caxias, na região central, Flávio Pereira, 26, conta que foi revistado por PMs da Operação Sufoco, mas considera que esses enquadros não são eficientes. “A gente sabe que, quando a polícia quer, ela descobre rapidinho quem está fazendo essas coisas. Quando mataram o menino lá no Jabaquara, encontraram os assassinos no outro dia. É constrangedor a gente que é pai de família estar sendo enquadrado pela polícia durante o nosso trabalho como se fôssemos ladrões”, desabafa.

Flávio faz referência a morte de Renan Silva Loureiro, de 20 anos, morto a tiros no bairro do Jabaquara, zona sul, depois que um homem disfarçado de entregador tentou roubar seu celular. O crime aconteceu no dia 25 de abril e quatro depois a Polícia Civil, após investigação, conseguiu localizar o autor dos disparos.

Dentre os motociclistas há aqueles que defendem a atuação da PM para identificar as pessoas que cometem crimes se passando por entregadores. É o caso de Alex Michael, 28, que afirma que a culpa maior é das empresas de aplicativos por não fiscalizar seus trabalhadores.

“Eu apoio essa operação, porque se você está com tudo certo e não deve nada a ninguém, não vai ter medo de tomar enquadro da polícia. Agora, quem deveria estar mais atento a essa questão são os aplicativos. Hoje em dia qualquer um pode fazer o cadastro e virar entregador. Basta ter um número de CPF”, afirma.

Entregadores Alex Michael e Carlos Eduardo Teixeira | Foto: Daniel Arroyo /Ponte Jornalismo

Para Alex, a melhor forma de controlar e identificar quem trabalha fazendo as entregas seria uma cadastro mais criterioso e com a possibilidade de rastreamento dos trabalhadores. “Quando eu comecei a rodar com aplicativo eles pediam até antecedentes criminais. Eu acho que cada entregador devia ter um número e esse número ser gravado na bag. Desse jeito tem como identificar de quem é a bag de quem fez um assalto, por exemplo”.

Na última quinta-feira (12/05), o aplicativo Rappi convocou entregadores para que fizessem a troca das suas bags em um ponto da Avenida Rebouças, em Pinheiros. Porém, o número de mochilas foi insuficiente para a quantidades de entregadores que apareceu no local. O resultado foi muita confusão e pessoas que saíram do local com mais de uma bag, enquanto outras ficaram sem nenhuma.

Bags jogadas no chão após confusão para troca do material em SP | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

Gustavo Queiroz, 36, saiu do Capão Redondo, na periferia sul da capital, até o local indicado pela empresa, mas não conseguiu pegar um novo material de trabalho. Encontrou no local várias bags velhas jogadas no chão. “Imagina onde vão parar essas bags que pegaram a mais. Possivelmente na mão de criminosos que vão se passar por entregadores, enquanto isso a gente vai tomando geral da PM e atrasando o nosso serviço”, critica.

O entregador Gustavo Queiroz | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

A poucos metros de onde Gustavo estava, policiais miiltares abordavam motociclistas na rua Pedroso de Moraes, em Pinheiros. De acordo com o sargento Pachêco, que comandava a ação, a Operação Sufoco só aumentou o efetivo de policiais nas blitz de rotina. Houve uma autorização do governador Rodrigo Garcia para que policiais pudessem participar da operação em seus dias de folga, sendo remunerados por isso.

“A gente já costuma a fazer esse tipo de abordagem para verificar documentação de veículos e se há transporte de drogas e outros irregularidades pelos condutores. Nada de muito diferente do nosso trabalho no dia a dia”, declarou o PM. A reportagem viu motociclistas sendo revistados por agentes de seguranças e dois motoristas sendo autuados por terem bebido antes de dirigir.

De acordo com o governo de São Paulo, em seus cinco primeiros dias a Operação Sufoco deteve 61 pessoas, sendo quatro adolescentes e dez procurados pela Justiça, e vistoriou um total de 6,1 mil veículos, dos quais 2,5 mil são motocicletas. Além disso, foram apreendidos um total de 197 automóveis e motos e localizados mais de 40 veículos que haviam sido roubados ou furtados.

‘Por que entregadores e não médicos?’

Para o pesquisador Felipe Freitas, do Núcleo de Direito e Justiça Racial Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e diretor da plataforma Justa, a forma que está sendo feita a Operação Sufoco, baseada em abordagens a motociclistas, é não só ilegal como ineficiente.

Adesivo pede a proteção divina aos entregadores | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

“Ainda que fosse eficaz, esse tipo de operação é ilegal e portanto não pode acontecer, porque consiste na institucionalização de práticas discriminatórias e abusivas. É evidente que o fato de [os entregadores] serem negros é a principal causa das abordagens. Inúmeras pesquisas acadêmicas demonstram como o perfil racial pesa na definição dos padrões de abordagem e o quanto essa seletividade é danosa para a democracia”, explica Felipe.

O pesquisador afirma que a ação determinada pelo governador de São Paulo está estigmatizando toda uma categoria de pessoas que vivem à margem da formalidade e dos direitos trabalhistas ao colocar os entregadores como pessoas que oferecem algum tipo de perigo à sociedade.

“A abordagem focada em  um grupo é ainda mais grave porque, além de abusiva, ela é discriminatória. Por que abordar entregadores e não médicos, professores ou engenheiros? O que de específico justificaria essas abordagens a não ser tratar-se de gente preta e pobre? O argumento de que pessoas praticam determinados crimes infiltrando-se nestas categorias profissionais não pode justificar abordagens em massa”, defende o pesquisador.

O que diz o governo

A reportagem entrou em contato com o Ifood e Rapp, mas até o momento não teve resposta. A assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo enviou como resposta um link do site da pasta que faz um balanço do 9º dia da Operação Sufoco enfatizando a recuperação de 27 toneladas de cobre na cidade de Barueri e a apreensão de cerca de quatro mil peças de motos sem procedência e flagrantes de tráfico, estupro, roubo e contrabando de 15 mil maços de cigarros.

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