PM atira em jovem e reprime comunidade revoltada

Luiz Carlos, 20 anos, que estava em moto roubada, foi baleado pelas costas; comunidade na zona oeste de São Paulo denunciou agressões de policiais após protestar por demora no socorro

Ao passar pelas casas das comunidades Jardim Esperança e da Serra, na zona oeste da cidade de São Paulo, os depoimentos se repetem: revolta, exaustão e medo da violência policial. Vídeos gravados na última quinta-feira (16/3) mostram policiais militares agredindo, chutando e empurrando moradores no cruzamento da Rua Carlos Faria com a Avenida Engenheiro Antônio Eiras Garcia. Algumas pessoas aparecem tossindo em outra gravação e afirmaram à Ponte que os PMs jogaram spray de pimenta nelas.

Toda a violência começou porque a população questionou a demora do resgate ao ajudante geral Luiz Carlos Gil de Santana, 20 anos, que foi baleado pela polícia em uma perseguição policial na mesma noite. “É mentira de que eles levaram [o jovem] na hora, demoraram uns 40 e poucos minutos, quase uma hora. Quando chegou, o menino estava quase morrendo”, relata um morador, que pediu para não ser identificado por medo de represálias. Revoltados, alguns moradores jogaram pedras nos PMs.

“A população tacou pedra, mesmo, porque ficamos revoltados, mas eles não estão certos, eles estão querendo limpar a farda deles, mas farda deles para mim é suja”, afirma o morador. Ele conta que uma parente sua foi empurrada no chão pelos policiais, que tentaram obrigar os moradores a desligarem os celulares para não filmar os abusos.

Outra moradora, que vamos chamar de Maria (nome fictício), disse que viu o momento em que Luiz, após bater a moto roubada que dirigia, correu a pé pela Avenida Engenheiro Antônio Eiras Garcia e passou a ser atingido por tiros. “Eu gritei para parar de atirar e nisso a população já começou a vir”, disse. Ela relata que seus familiares, que estavam do lado de fora de casa, foram os primerios a serem agredidos. “O policial perguntou para o meu irmão ‘tá me encarando por quê?’ e já empurrou na parede. Meu outro irmão viu e foi atrás e dois foram agredidos com cassetete, com tudo o que você possa imaginar”, denuncia.

A reportagem viu um dos rapazes que trazia marcas de hematomas nas cotas, mas ele não quis dar entrevista e a família pediu para não registrar os ferimentos. “Os policiais empurraram eles [irmãos] para dentro de casa, deram mata-leão, meu irmão dizendo que não conseguia respirar”, conta a mulher.

Maria ainda afirma que os policiais jogaram spray de pimenta dentro da sua casa. “A gente ficou com medo e levou as crianças para dentro, tranquei elas no quarto da minha mãe, mas o policial jorrou spray de pimenta lá dentro. Minha avó, que tem diabetes, passou mal. Eu só consegui ver meus irmãos sendo espancados pela polícia e eu não consegui fazer nada”. Um dos vídeos mostra um dos seus irmãos, algemado, sendo arrastado pelos policiais, e um dos PMs pergunta: “Quer apanhar mais?”.

“Se foge, eles atiram. Se para, eles forjam”

Uma outra moradora, Katia (nome fictício), disse que uma policial tentou retirar o celular da sua mão quando tentava gravar a ação. “Os policiais não queriam socorrer [Luiz Carlos]. Eu fui lá, uma policial feminina queria pegar meu celular e jogou spray de pimenta no meu rosto. Eu fui para minha casa pegar um leite, porque tenho problema de pulmão, mas voltei”, diz.

“Aqui a violência é grande e eles atiram para matar”, completa Simone (nome fictício), outra moradora. “Se foge, eles atiram. Se para, eles forjam”.

Enquanto a Ponte percorria as duas comunidades, que são vizinhas, na tarde deste domingo (19), as donas de casa Maria do Carmo Martins Gil, 56, e Priscila Gil de Santana, 23, respectivamente mãe e irmã de Luiz Carlos, corriam para o Hospital das Clínicas onde puderam ver, pela primeira vez, como o jovem estava. Isso porque hoje o Tribunal de Justiça de São Paulo autorizou a visita delas após três dias de informações desencontradas e de serem impedidas de entrar no quarto do hospital ou de ter qualquer notícia sobre o estado de saúde do rapaz. O pedido foi feito pela Defensoria Pública a pedido da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que denuncia violações de direitos humanos nas periferias.

“Não se pode impor restrições de visitas e conversações, com familiares e advogado. O sentimento com o preceito dignificador de todo e qualquer indivíduo não pode ver óbice ao cumprimento de um atendimento básico e primaz”, argumentou a juíza Karina Ferraro Amarante Innocencio. “As previsões dos direitos da pessoa presa estão na Constituição Federal e compromissos internacionais, nos quais o Brasil é signatário, como o Pacto de San Jose da Costa Rica e as Regras de Mandela”.

A psicóloga Marisa Fefferman, articuladora da Rede de proteção e Resistência Contra o Genocídio, considerou “um exemplo de criminalização de toda uma comunidade, que só clamava para que o Luiz Carlos permanecesse vivo”. “A extrema violência com que os agentes do Estado agiram demonstra que o objetivo era matar”, declarou à reportagem.

Mesmo sem poder se mover, Luiz Carlos Gil de Santana permanece algemado | Foto: Arquivo pessoal

Do hospital, o advogado Rafael Moura, que representa a família, disse que conseguiram visitar Luiz Carlos após apresentarem a decisão judicial e que o jovem foi atingido por dois tiros: um no ombro e outro nas costas. “Nós conversamos com ele. Ele aparentemente está bem, mas sem os movimentos da perna”, declarou à Ponte. Ele informou que os médicos ainda farão uma avaliação para ver se é possível retirar uma bala que ficou alojada na coluna. “Ele está se alimentando por sonda, com aquelas meias nas pernas para não gangrenar. Abatido. E, como ele estava usando algemas, o pulso dele está inchado, marcado, mas está sendo bem cuidado no hospital”, disse.

Maria do Carmo tem um outro filho, de 10 anos, que é paraplégico, e agora teme pelo estado de saúde de Luiz. “Eu estou sem trabalhar porque estava cuidando do caçula e preciso procurar um serviço. Não sei como vou fazer se tiver mais um filho paraplégico”, lamenta. O pai, segundo ela, deixou a casa para buscar tratamento para dependência de álcool em outra cidade.

O advogado, que pretende denunciar o caso na Corregedoria da PM, contou que policiais que participaram da ação foram ao hospital, onde zombaram e “deram risada” do jovem baleado.

“Os policiais atiraram no seu irmão”

Irmã de Luiz Carlos, Priscila Gil denuncia que também foi alvo da violência generalizada contra a comunidade. Outros moradores relataram que viram a irmã levar spray de pimenta no rosto por insistir em ver como estava Luiz Carlos. “Eu estava lavando roupa quando um menino veio até aqui avisar: ‘os policiais atiraram no seu irmão, deram um monte de tiro no seu irmão, ele tá sangrando lá”, conta.

Com a filha de um mês no colo, Priscila foi até o local quando viu o irmão caído, cercado por diversos policiais. “Eu só consegui ver ele deitado no chão, eu pedia para o policial deixar eu ver ele, o policial me empurrou e me xingou e eu xinguei de volta, foi aí que ele jogou o spray de pimenta, mas eu consegui correr”, afirma.

Priscila disse que viu os PMs usando câmeras nas fardas, mas afirma que eles retiraram o equipamento acoplado ao suporte do colete algumas vezes.

A família busca entender o que aconteceu, já que seria a primeira vez que Luiz Carlos teria andado em uma moto roubada. “Ele nunca precisou disso, fazia seus bicos, às vezes ficava na minha casa, na casa da minha mãe, e de vez em quando me ajudava num sítio em que sou caseiro”, relatou Geanderson Oliveira da Silva, 30, um dos sete irmãos de Luiz Carlos.

Luiz Carlos tem 20 anos | Foto: arquivo pessoal

“Se ele estava nessa moto, prendessem ele, levassem para a delegacia, mas não atirar”, lamenta a mãe, Maria do Carmo. “A violência da polícia está de mais, tem um monte de mãe chorando”.

À Ponte, o advogado Rafael Moura disse que Luiz lhe contou que ouviu quatro tiros e caiu em seguida, virado para cima, ao ser atingido nas costas. E que, ao cair, não conseguia sentir a pernas e já pedia socorro. “Depois que ele caiu, [os policiais] só falaram que deu sorte de estar vivo”, disse. O advogado confirmou que Luiz estava armado, mas o revólver, segundo ele, não funcionava.

A versão da polícia

De acordo acordo com o boletim de ocorrência registrado pela Polícia Civil, por volta das 20h10 do dia 16 os soldados Heverton Rafael Rosa de Lima e William Tomas dos Santos, do 16º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), estavam em patrulhamento pela Avenida Engenheiro Antônio Eiras Garcia quando viram duas motocicletas, uma preta e outra branca, “em alta velocidade e em atitude suspeita, uma seguindo a outra” e que decidiram abordá-las porque “há na região muitos roubos de motocicletas”.

Os PMs afirmam que o motorista da motocicleta preta conseguiu fugir, mas o da motocicleta branca, Luiz Carlos, virou para o sentido contrário e bateu em um carro e num poste. Em seguida, o jovem desceu da moto e tentou fugir a pé.

O soldado William Tomas diz que o jovem colocou a mão na cintura enquanto corria na sua direção. Segundo ele, Luiz Carlos teria sacado uma arma, por isso o policial freou sua moto e deu dois tiros contra o jovem, que caiu no chão. Ele afirma que não deu mais tiros depois porque havia “cessado a ameaça”.

Os policiais apresentaram no 89º DP (Jardim Taboão) um revólver calibre 38, com numeração raspada, com quatro munições, sendo uma picotada. Ali, verificaram que a moto tinha sido roubado uma hora antes. A vítima do roubo contou na delegacia que foi roubada por volta das 19h20, quando estava com o filho na garupa. Dois homens armados aproximaram-se dele e levaram a moto. Às 20h39, a vítima recebeu uma ligação da seguradora informando que o veículo havia sido encontrado “bastante danificado”.

Família afirma que estojos foram coletados por moradores | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

Os dois irmãos da moradora Maria, que vamos chamar de João e Ricardo (nomes fictícios), também foram levados à delegacia porque os soldados disseram que eles estavam entre os moradores da comunidade da Serra que “começaram a se inflamar contra a polícia, para que não permanecessem por lá, inclusive jogando pedras contra os policiais”.

Ambos, contudo, negaram que jogaram pedras em depoimento na delegacia. João relatou que “estava na frente de sua casa quando um policial perguntou se conhecia a mulher que estava gritando com eles” e o mandou encostar na parede, mas saiu correndo para dentro de casa. Ele contou que os PMs entraram na sua casa e o mandaram sair para a rua e que não resistiu à detenção. Ricardo, por sua vez, disse que viu o irmão ser agarrado pelos policiais “quando ele respondeu malcriado” e que passaram a discutir com os policiais.

Os dois foram liberados após assinar um termo circunstanciado (registro de infração de menor potencial ofensivo) por resistência. Maria disse que os irmãos não quiseram denunciar agressões.

Os PMs também disseram que não preservaram o local onde Luiz Carlos foi baleado porque teria sido “impossível, ante o risco para a equipe e para os moradores, manter a preservação para perícia”.

A delegada Sabryna de Souza Freitas entendeu que os depoimentos dos policiais têm “presunção de veracidade”, além da declaração da vítima e das circunstâncias dos itens apreendidos, e indiciou Luiz Carlos por roubo majorado (mediante grave ameaça por uso de arma de fogo) e tentativa de homicídio contra o soldado William Thomas. Depois, pediu a prisão preventiva (por tempo indeterminado) do jovem.

Apesar de o 16º BPM/M ser um dos contemplados pelo programa de câmeras na farda, o boletim de ocorrência não informa se os PMs em questão usavam os aparelhos no momento da ocorrência. A delegada também não solicitou acesso às imagens, não pediu perícia para o local e não considerou busca por câmeras de vigilância nem por testemunhas.

Luiz Carlos não foi ouvido por estar hospitalizado. A audiência de custódia foi realizada mesmo assim e a juíza Luciana Menezes Scorza determinou a conversão da prisão em flagrante em preventiva. “Embora primário, o indiciado foi preso em flagrante pouco tempo após a ação criminosa, resistiu a prisão, bem como investiu contra os policias, o que evidencia a periculosidade do agente e a gravidade concreta da conduta delitiva”, escreveu.

O que diz a polícia

A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar sobre o caso, mas a Fator F, assessoria terceirizada da pasta, disse que só poderia responder na segunda-feira pois está em “esquema de plantão nas delegacias” e que só consegue apurar “casos factuais do fim de semana”.

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