PMs afirmam que jovem com perna quebrada correu e atirou contra eles após roubo

    Filho de PM da reserva, Oswaldo Kaique, 19 anos, é acusado de roubo, tentativa de homicídio e corrupção de menores; pai defende que versão apresentada pelos policiais é inconsistente

    Oswaldo ficou em coma sete dias com a fratura na perna (à dir.), decorrente da batida | Foto: Arquivo pessoal/Montagem

    É noite de um sábado de maio, dia 19, quando uma viatura da Polícia Militar de São Paulo persegue um Ford Ka roubado na Estrada de Taipas, zona norte. O motorista perde o controle, bate de frente em um poste. A violência do acidente causa fratura em três partes do fêmur da perna esquerda de um dos ocupantes do carro. Depois disso, segundo os policiais militares que atendiam a ocorrência, essa vítima teria se levantado e, mesmo com a fratura, corrido e atirado contra eles, que revidaram com pelo menos cinco disparos. A versão dos PMs tornou Oswaldo Kaique Lima Dias Souza, 19 anos, acusado pelo roubo, também réu por tentativa de homicídio.

    Naquela noite de maio, Oswaldo estava com dois amigos, quando planejaram assaltar um Uber. Levaram o carro e decidiram participar de uma festa. Ao fim, resolveram voltar para o mesmo bairro do roubo, onde moravam. Uma viatura estranhou a velocidade do carro e os perseguiu. No caminho, os PMs identificaram se tratar de um carro roubado, pediram reforços e seguiram. O fim da história confronta os policiais e o jovem, único sobrevivente.

    Segundo os PMs, Oswaldo e os outros jovens saíram do carro atirando logo após o choque do carro com o poste. Os policiais apontam que Oswaldo e o passageiro de trás estavam cada um com uma pistola calibre 38. Todos foram baleados, dois morreram no local. Oswaldo foi socorrido e levado ao hospital, onde se recuperou após ficar uma semana em coma.

    O jovem conta que tudo aconteceu por volta da 1h e que as cenas jamais sairão da sua mente. “Senti uma das maiores dores da vida, não aguentava me mexer. Em seguida, os policiais me tiraram do carro e me alvejaram com cinco disparos mesmo sem esboçar reação alguma”, conta o jovem em relato à Ponte, transmitido por seu pai, o PM da reserva Valdir Dias Souza.

    Raio-X da fratura na perna do adolescente | Foto: Arquivo pessoal

    Valdir luta para provar que o filho cometeu apenas o roubo, mas não a tentativa de homicídio e a corrupção de menores, já que os outros jovens não tinham completado 18 anos. Os PMs, a Polícia Civil, o Ministério Público e a Justiça de São Paulo tomaram a versão policial como verdade.

    Valdir coloca como missão de vida provar a inconsistência da história contada pelo sargento Fábio Augusto dos Santos e pelos soldados Dani Cardoso Leite e Clayton Ralf Dias da Silva, que atuaram naquele dia. Para isso, mostrou dois exames de raio-X, um feito na perna e outro na mão do jovem. O primeira tem três pedaços de ossos, unidos com pinos e canos de metal. O segundo, a imagem de dois dedos com vários pedacinhos de ossos fraturados por conta do tiro.

    “Ele estava pedindo pelo amor de Deus. Tiraram ele do carro, colocaram sentado na calçada e atiraram. Foram dois tiros na barriga, um na mão, outro na área do pescoço, perto do queixo, e outro no escroto, que fez ele perder um testículo”, conta Souza, incrédulo com a versão oficial. “Como ele sairia do carro com o fêmur quebrado? Ia cair na hora. E quem atira com a mão espalmada para frente, como está no exame? Ninguém!”, continua.

    Uma parte do B.O. (Boletim de Ocorrência) da perseguição destaca as más condições do tempo e os prejuízos para a realização de uma perícia adequada ma cena do crime. No documento, assinado pela delegada Gisele Maciel Rocha, um dos policiais responsáveis por preservar a área relatou uma forte chuva. “Como se tratava de uma descida, a enxurrada levou um dos aparelhos celulares, bem como os cartuchos [das balas], que não foram recuperados, e também levou vestígios das manchas hematoides [ de sangue]”, diz o B.O..

    Segundo o pai, ele recebeu dois tiros na barriga, um no pescoço e outro no saco escrotal | Foto: Arquivo pessoal

    Uma das armas tinha seu número intacto. Uma consulta ao Prodesp, sistema em que a polícia identifica a origem das armas, apontou que um dos calibres 38 é de propriedade de uma empresa de seguranças. Não havia nenhum relato de roubo, furto ou desaparecimento da arma. A segunda arma, também foi identificada, com o então dono relatando um furto ocorrido em maio de 2010.

    A impossibilidade de uma perícia 100% verídica do que ocorreu, devido a forte chuva, e o confronto da versão dos PMs com o ferimento constatado em Oswaldo Kaique Lima Dias Souza não tirou do MP (Ministério Público) a certeza do crime. O promotor Norberto Joia deu sinal positivo para a versão que colocar Oswaldo como autor da tentativa de homicídio e denunciou o jovem.

    Na sustentação da denúncia, aponta que Oswaldo “tentou matar” o PM Fabio Augusto dos Santos, que revidou. Joia considera que o jovem não o assassinou “por circunstâncias alheias à sua vontade” ao errar a pontaria. O promotor enquadrou a prática de três artigos do Código Penal: 121, sobre “matar alguém”; 157, de roubo; e art. 329, que trata de se opor a um ato legal. Ainda o denunciou por corrupção de menores, previsto pelo artigo art. 244-B do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

    O processo ao qual Oswaldo responde está em andamento na 2ª Vara do Júri no Foro Regional I em Santana, na capital paulista. A juíza Fernanda Salvador Veiga autorizou a fase de instrução e ouviu os envolvidos na ocorrência no dia 24 de outubro. Até o momento, não publicou uma decisão. Existe a possibilidade de que o jovem seja levado a júri popular pela tentativa de matar um policial militar.

    Exame mostra fraturas na mão esquerda, a qual o pai aponta ter sido baleada quando Oswaldo tentou se proteger | Foto: Arquivo pessoal

    “Meu filho é réu confesso, quero que ele pague. Fez burrada, sempre teve bons exemplos em casa, dei o que ele precisava, mas errou. Qual meu medo? Que ele pague por um crime que não cometeu: a tentativa de homicídio. Errou? Errou, tem que pagar pelo erro, não o que estão colocando nas costas dele”, diz Valdir, emocionado.

    Ainda que reverta a possibilidade de o jovem ser condenado por algo que diz não ter cometido, o pai sabe que parte dos danos são irreversíveis. E não se refere aos antecedentes criminais que Oswaldo caso seja condenado, a dificuldade de encontrar um emprego posteriormente ou o preconceito de ser um egresso do sistema prisional. Valdir teme seu filho nunca mais ser saudável.

    No sábado (24/11), o PM reformado visitou Oswaldo mais uma vez no CDP 3 de Pinheiros. O rapaz fica em uma cadeira de rodas. Ainda está com ferros para corrigir as fraturas na perna, bem como fios e pinos na mão baleada. Os relatos são de total descaso por parte da SAP (Secretaria da Administração Penitenciária).

    Segundo Valdir, nunca houve atendimento no local, não o levam em consultas em hospital ou, então, possibilitam a realização de fisioterapia. “Os músculos dele estão atrofiando, já tem dano que nem fisioterapia reverte. Ele não levanta a perna direito. Se voltar a andar, certamente será mancando”, conta, antes de dizer à reportagem o desabafo de Oswaldo.

    Local em que o carro bateu no poste e em que os jovens foram baleados | Foto: Arquivo pessoal

    “Não tenho feito fisioterapia, minha perna esquerda não estica mais. Sinto dores constantes. Para me locomover mesmo com cadeira de rodas é extremamente difícil pois minha mão está ferida, preciso que alguém me empurre. Para tomar banho vou ao banheiro e alguém precisa me carregar”, conta.

    “Só me resta lamentar pelo erro que cometi. A pena que estou pagando me parece bastante severa pelo crime que cometi: dirigir o carro roubado com ameaça. Só me resta aguardar a justiça”, diz, ainda com esperança de responder pelo roubo que sustenta ter cometido e não a tentativa de matar um policial.

    A Ponte entrou em contato com a Polícia Militar do Estado de São Paulo, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) e a SAP para solicitar posicionamento referente ao caso. Em nota, a SSP informa que o caso está em investigação “por meio de inquérito policial instaurado pelo DHPP, que está ouvindo testemunhas e trabalha em busca de demais elementos que auxiliem no esclarecimento dos fatos. O IPM instaurado pelo Batalhão da área foi remetido ao Tribunal de Justiça Militar. Dois policiais militares envolvidos na ocorrência foram afastados do serviço operacional.

    Em nota, a SAP* afirmou que a denúncia não procede e que a pasta esclarece que os presos têm atendimento de saúde garantido em todas as unidades de todo o estado. “Os casos mais complexos são encaminhados à rede pública de saúde e/ ou ao Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário da Fundação ABC, nos hospitais de referência em saúde e quando necessitam de atendimento em especialidades os presídios agendam por meio do Sistema SUS –  Sistema Único de Saúde em parceria com a Secretaria de Estado da Saúde”.

    Ainda de acordo com a secretaria, o preso Oswaldo Kaique Lima Dias Souza está recebendo todos os cuidados necessários quanto a sua saúde e explica que no dia 12/11, houve impossibilidade de levar o jovem ao atendimento por causa da alta demanda de escolta de presos. “Kaique tinha consulta marcada, porém como haviam 592 solicitações de escolta de presos, entre essas  61 de caráter emergencial para Pronto Atendimento, não foi possível realizar a escolta do referido preso ao Hospital. A unidade prisional ligou diversas vezes para o hospital a fim de reagendar a consulta e conseguiu o agendamento para 03/12/2018. No momento, Kaique também foi agendado para a realização da fisioterapia no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário”, explicou a nota.

    *Reportagem atualizada às 13h48 do dia 29/11

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