Prefeitura quer despejar projeto social para crianças de rua na Grande SP

Governo Morando (PSDB) entrou com ação argumentando que vai transformar espaço em centro para população adulta de rua em São Bernardo do Campo; Projeto Meninos e Meninas de Rua e Defensoria Pública contestam ausência de plano para crianças e adolescentes

Manifestantes fizeram protesto em 14 de outubro contra o despejo do Projeto Meninos e Meninas de Rua | Foto: Cadu Bazilevski / Facebook Projeto Meninos e Meninas de Rua

Nas últimas duas semanas, a Associação Projeto Meninos e Meninas de Rua tem se mobilizado contra uma ameaça de despejo da sua sede, que é de propriedade da prefeitura de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Protestos nas ruas e vídeos de apoio de artistas como os rappers Emicida e Dexter e a cantora Daniela Mercury, além de uma ocupação cultural no espaço, reivindicam que a entidade permaneça no prédio para continuar atendendo crianças e adolescentes em situação de rua e famílias em vulnerabilidade social no município.

A associação existe desde 1983 e passou a ter permissão de uso do imóvel na Rua Jurubatuba em 1992, cujo galpão foi reformado pela entidade e contém quadra, parquinho, cozinha, sala de informática, entre outros espaços. O número de crianças atendidas subiu de 40, na época, para 551, além de 210 adolescentes, no ano passado. Em 2018, por decreto, o prefeito Orlando Morando (PSDB) revogou essa concessão e a entidade foi notificada a desocupar o local.

“Mesmo com prefeitos de esquerda e de direita, essa permissão foi se mantendo nas gestões, e quando ficamos sabendo sobre essa revogação, fomos procurar a administração para dialogar e tentar algum tipo de acordo”, afirma Neia Bueno, que integra a coordenação e atua no projeto desde 1995. “Apenas nos disseram para enviar os relatórios [de atividades] e que iriam voltar a conversar, procuramos o procurador [do município] mas até agora não veio retorno nenhum”.

Em 2019, a prefeitura entrou com um processo de reintegração de posse argumentando que o espaço seria destinado à implementação de um Centro Idoso Dia, espécie de asilo, e que o contrato com a associação contém uma cláusula que determina a devolução do imóvel quando solicitado pela administração, sem direito à indenização ou ressarcimento por melhorias realizadas no espaço. Nos autos dessa ação judicial, o objeto desse novo destino é mudado algumas vezes: deixa de ser asilo para um Centro POP Rua para adultos. No entanto, não é anexado nenhum tipo de projeto sobre o novo empreendimento ou plano para o atendimento às crianças e aos adolescentes.

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Ainda naquele ano, a juíza Ida Inês Del Cid determinou desocupação voluntária. Em julho de 2020, a magistrada decidiu que a reintegração ocorresse depois da “normalização da situação de pandemia de Covid-19”. Entretanto, a procuradora Adriana Santos Bueno Zular, que representa a prefeitura, insistiu no final do ano passado e início deste ano sobre “necessidade iminente de ingresso na área” devido à diminuição das medidas restritivas sanitárias. Ela também menciona que, na verdade, o espaço é requerido para a Secretaria Municipal de Assistência Social a fim de que o Centro POP Rua para adultos, que já existe, fosse ampliado no local onde está a sede do Projeto Meninos e Meninas de Rua porque o espaço é maior.

Somente neste ano a procuradoria passou a mencionar que a associação está irregular junto ao Tribunal de Contas do Estado, após uma sentença proferida em janeiro de 2020 na qual a auditora Silvia Monteiro considerou irregular a prestação de contas de um convênio feito entre 2008 e 2011 com a extinta autarquia Fundação Criança e São Bernardo do Campo e determinou que a entidade devolvesse R$ 96.728,42, com as correções monetárias, e que não recebesse repasses públicos até a quitação da dívida.

De acordo com o TCE, a entidade recebeu R$ 257.567,50, mas os R$ 96.728,42 foram utilizados para para pagamento de obrigações trabalhistas, cuja despesa não fazia parte do projeto quando do orçamento e que deveria ser devolvido. “O Tribunal impõe impedimento à assinatura de ajustes (convênio, à época; atualmente, termo de colaboração ou termo de fomento) e consequente recebimento de recursos públicos, enquanto não regularizadas as pendências”, informou em nota a assessoria do TCE à Ponte.

Uma ação judicial aberta também teve uma sentença determinando o ressarcimento do montante em 2016. Neia aponta que estão recorrendo das decisões por entenderem que a despesa com funcionários é uma justificativa e que, mesmo com a decisão do Tribunal de Justiça, o projeto continuou funcionando. “A única pendência que o Projeto Meninos e Meninas de Ruas tem se refere a um convênio com termo em 2011 e está judicializada com recurso interposto pelo associação, que ainda não foi apreciado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cabendo depois dessa fase ainda recursos para os Tribunais Superiores em Brasília”, declarou.

Para ela, a revogação da concessão do espaço tem caráter político. “O mínimo que ele [prefeito] teria que fazer é conversar com a gente, ele é gestor, é político e o mínimo que deveria ter é respeito por uma entidade que existe há 38 anos, que é reconhecida em São Bernardo, é reconhecida internacionalmente, não centrar de que é uma associação de esquerda, mas que presta serviço à criança e ao adolescente, que é a prioridade”.

Durante a pandemia, com a sede fechada, a entidade realizou entrega de cestas básicas para famílias. “A gente está vendo uma situação pior do que na década de 90, vemos muitos meninos com fome, no farol, e a entrega de alimentos não era uma política do projeto, mas as famílias passaram a bater na nossa porta”, afirma Neia Bueno.

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A Ponte consultou alguns especialistas em gestão pública e direito. Para eles, do ponto de vista jurídico, a prefeitura tem legitimidade de solicitar o prédio, já que também é um recurso público. A Lei 13.019/2014, que trata de parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil, veda, no artigo 39, parceira de organizações que tenham tido as contas rejeitadas pela administração pública nos últimos cinco anos a não ser que a decisão seja reconsiderada. Já do ponto de vista político, argumentam que a prefeitura estaria sendo “insensível” e poderia fazer um termo de ajustamento de conduta, que é um tipo de acordo extrajudicial que visa reparar algum dano coletivo e proteger direitos violados, a fim de continuar o atendimento às crianças e adolescentes e, ao mesmo tempo, cobrar pela dívida.

O Tribunal de Justiça emitiu uma decisão em 9 de outubro determinando a saída voluntária do projeto a partir da data da intimação. A associação segue realizando atividades no espaço com o receio do despejo a qualquer momento.

A ausência de plano para meninos e meninas fez com que a Defensoria Pública também se manifestasse no processo de reintegração de posse. O defensor e coordenador do Núcleo Especializado da Infância e Juventude Daniel Palotti Secco solicitou ao Tribunal de Justiça que a reintegração seja suspensa. O órgão não atua em defesa do Projeto Meninos e Meninas de Rua, mas sim para verificar se está ocorrendo violações de direitos de crianças e adolescentes. “O que motiva a nossa intervenção, dentre outras questões, é a ausência de urgência para uma reintegração de posse sem que haja uma audiência, uma tentativa de conciliação e uma conversa com mais calma da situação atual e nos preocupa muito que seja feita com uma decisão liminar [de urgência] sem que haja um esclarecimento sobre como vai ficar o atendimento de crianças e adolescentes”, aponta.

https://ponte.org/criancas-passam-mal-com-gas-lacrimogeneo-lancado-por-gcm-em-tentativa-de-despejo-na-grande-sp/

“A prefeitura, pelo o que consta no processo, não apresentou um plano de como vai ficar o atendimento de crianças e adolescentes, é muito preocupante porque é uma população que já é extremamente vulnerável e por causa da pandemia está ainda mais vulnerável”, prossegue o defensor.

Em 8 de outubro, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) promulgou a Lei 14.216/2021, que suspende despejos forçados de imóveis urbanos durante a pandemia, após o Congresso ter derrubado o veto a essa determinação. Segundo Secco, apesar de a lei fazer referência apenas a imóveis que sirvam de moradia, a Justiça precisa se atentar às especificidades do caso. “Embora não seja um local de moradia, é um local de atendimento a pessoas que não têm moradia, então o Judiciário tem que ter uma preocupação com o que levou a essa lei a ser promulgada”, analisa.

O que diz a prefeitura

Questionada a respeito do processo de reintegração de posse e do atendimento à crianças e adolescentes em situação de rua, a assessoria da Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo encaminhou a seguinte nota:

Em resposta aos questionamentos, a Prefeitura de São Bernardo esclarece que a área pública onde se encontra instalada a ONG Projeto Meninos e Meninas de Rua será adaptada e utilizada pela Secretaria de Assistência Social para implantação de serviços correlatos à Pasta.

A Administração informa ainda que a ONG tem restrições junto ao Tribunal de Contas do Estado e que a execução de serviços socioassistenciais no município depende de apresentação de documentos e registro no CMDCA (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente), conforme legislação federal e decreto municipal vigentes, mediante participação em edital de chamamento público da Secretaria de Assistência Social.

Foram realizadas reuniões entre a ONG e a Prefeitura nos anos de 2018, 2019 e 2020, na tentativa de solucionar a questão, porém, diante das restrições, não há condições de celebração de qualquer convênio.

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