Record TV é multada após apresentador pedir ao vivo para que polícia atirasse contra suspeitos

Juíza da 12ª Vara Cível Federal de São Paulo condenou a empresa a pagar mais de R$ 1 milhão por declaração dada pelo apresentador Marcelo Rezende em 2015. Emissora ainda pode recorrer da decisão

O apresentador do Cidade Alerta Marcelo REzende, morto em 2017 | Foto: Reprodução

Em uma decisão considerada um “marco” pela associação Intervozes, a Record TV foi condenada pela 12ª Vara Cível Federal de São Paulo a pagar uma multa de R$ 1.097.700 por conta dos comentários do jornalista Marcelo Rezende, então apresentador do Cidade Alerta.  A juíza Marisa Claudia Gonçalves Cucio atendeu o pedido do Ministério Público Federal (MPF) e impôs o valor à emissora. A empresa ainda pode recorrer da decisão. 

Durante o programa do dia 23 de junho de 2015 foi exibida uma perseguição de policiais da Rocam a dois homens em um moto no bairro Jardim São Luís, na periferia da zona sul da cidade de São Paulo. Enquanto imagens feitas por um helicóptero mostravam a cena, do estúdio o apresentador pedia para que os policiais atirassem contra a dupla, pois seriam bandidos.

“A narração adotada no programa Cidade Alerta tem diversas passagens grotescas, como aquelas descritas como ‘[…] São dois ladrões numa moto. A ROCAM já tá em cima. Lá vai sair tiro, hein. Vai sair tiro! Porque se é nos Estados Unidos, atira! O homem da ROCAM quase cai. (…) Atira, meu camarada, é bandido!’”, pontuou a magistrada na sentença que condena a Record TV.

Para o MPF, houve um grave crime contra os direitos humanos nas palavras do jornalista e a emissora, que é detentora de uma concessão pública, não cumpriu com seu papel educativo, cultural e jornalístico. 

“É possível notar que o discurso de Marcelo Rezende ultrapassa os limites da mera descrição jornalística de fato cotidiano, atuando como elemento propulsor de incitação à violência em desfavor dos suspeitos, realizando, em rede nacional, um discurso de ódio. Enquanto comunicador de uma radiodifusora, nacionalmente conhecida, o apresentador deve ser considerado como um formador de opiniões”, descreveu em seu pedido o procurador da república Pedro Antônio de Oliveira Machado.

Em sua defesa, a Record TV discorda de que houve qualquer tipo de excesso por parte do apresentador e enfatiza o cunho informativo do programa, além de descrever o pedido do MPF como uma tentativa de censura. 

“A maior parte do tempo a reportagem mostra a perseguição da Polícia Militar aos indivíduos pelas ruas do Bairro Jardim São Luiz, Zona Sul de São Paulo, o que nada pode ser imputado como conduta irregular na exibição da reportagem. Imputar ao conteúdo da reportagem ato atentatório aos direitos humanos é subverter a ordem de valores da sociedade uma vez que se a perseguição foi levada a efeito, somente se deu em decorrência da resistência dos suspeitos, que aqui o Ministério Público tenta defender”, alegaram os advogados Adriana Coutinho Pinto, Luciana Aparecida dos Santos, Renata Struzani de Souza Moreira e Alexandre de Paulo Vieira.

Crimes na TV

Há mais de duas décadas a grade de programação de TVs abertas no Brasil contam com programas que mostram as mais variadas ações policiais pelo país, com uma prerrogativa de prestação de serviço e veiculação do combate ao crime. Porém, como lembra o coordenador executivo do coletivo de Intervozes, Pedro Ekman, uma série de violações são cometidas em rede nacional sem que haja nenhuma intervenção do Estado.

“Eles ficam mostrando a reação da Justiça em relação aos pobres, mas essa mesma Justiça vê uma série de infrações diárias em cadeia nacional e não tem a mesma postura. Esses programas ferem a presunção de inocência cotidianamente. Eles acusam e já definem a pena. Quando você chama alguém de bandido na TV, isso já é dar uma sentença”, argumenta Pedro Ekman.

O Intervozes foi uma das entidades da sociedade civil que entraram com representação junto ao MPF para denunciar as falas de Marcelo Rezende no Cidade Alerta, que serviu como base para a abertura da ação cível na qual a Record TV foi condenada. Em 2005, o coletivo também conseguiu que o programa Tarde Quente, da Rede TV!, apresentado pelo humorista João Kléber, fosse retirado do ar durante 60 dias por violações dos direitos humanos.

Um estudo de 2016 do próprio Intervozes mostrou que, em 30 dias de monitoramento de 28 programas policialescos de rádio e televisão, foram registradas 4.500 violações de direitos.

Para Pedro Ekman, caso esta ação seja julgada procedente até a última instância e processo correr como transitado e julgado, pode ser um marco para a comunicação brasileira, pois abriria uma jurisprudência que mudaria ou extinguiria a forma de produção destes programas, afetando diretamente os anunciantes. 

O coordenador executivo do Intervozes ressalta que falta um maior rigor por parte do poder público para regular esse tipo de atração televisiva e lembra que no Uruguai foi proibido a veiculação de programas que exibissem ações da polícia.

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“Crianças são expostas no meio do dia a esse conteúdo e não há classificação indicativa para esses programas porque eles são considerados jornalísticos, quando não são. Na verdade, eles fazem entretenimento usando a violência. Podemos afirmar que, depois de tanto tempo no ar, esses programas influenciaram a termos uma sociedade mais raivosa e punitivista”, declara Pedro Ekman.

A Ponte tentou contato com a assessoria de imprensa da Record TV por telefone, mas recebeu a indicação de fazer a solicitação por carta. Também tentamos contato através da conta de comunicação da rede no Twitter, mas também não tivemos resposta até a publicação da reportagem.

Correções

Uma versão anterior desse texto utilizava a expressão TV Record para se referir à Record TV. O texot foi atualizado com a grafia correta às 20h13 do dia 18/3/2022

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