Retomando a esperança, Marcha da Consciência Negra volta a exigir democracia sem racismo

    Membro do governo de transição e militante do movimento negro, Douglas Belchior disse que governo Lula precisa revisar a atual lei de drogas, que “justifica a ação violenta da polícia nos territórios negros”

    19ª Marcha da Consciência Negra na Avenida da Consolação | Foto: Elisa Fontes/Ponte Jornalismo

    Liderança histórica do Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978, durante a ditadura militar, a geógrafa Regina Lúcia dos Santos, 67 anos, contou que a 19ª Marcha da Consciência Negra, realizada neste domingo, 20 de novembro, em São Paulo, apresentava uma novidade em relação às que ocorreram antes.

    “Essa marcha é um pouco diferente das 18 marchas anteriores, porque a gente está à beira de assumir um governo democrático e popular depois de quatro anos de um governo de extrema direita. E esse governo que vai assumir foi eleito basicamente por negros, mulheres, pobres e periféricos”, disse Regina à Ponte, apoiada na bengala com a qual se move com agilidade, referindo-se à vitória de Luis Inácio Lula da Silva sobre Jair Bolsonaro (PL). “Por conta disso essa marcha é diferente. Porque é a retomada da esperança de poder colocar nossas pautas.”

    Regina Lúcia dos Santos, do MNU | Foto: Elisa Fontes/Ponte Jornalismo

    A esperança, porém, não prescinde da luta. De muita luta, como sempre foi a história do movimento negro. E Regina salienta que será necessário lutar para garantir que o governo Lula se comprometa com as reivindicações do povo negro, já que o amplo leque de alianças que o levou ao poder inclui setores que nunca se importaram muito com elas. “O movimento negro vai assumir o papel de tensionar para que as pautas da população negra sejam colocadas, independente de estarem lá setores que vão da centro-direita à esquerda. Vamos tensionar contra as privatizações, porque saúde e educação privatizadas ferem de morte o nosso povo”, promete.

    À frente da faixa da Coalizão Negra dos Direitos Humanos, que pedia “Pela vida do povo negro” em negras amarelas sobre o pano preto, o educador e ativista Douglas Belchior, um dos coordenadores da Coalizão, teve uma fala muito parecida com a da militante do MNU, embora hoje ocupe uma posição oficial, como membro da equipe de Igualdade Racial do atual governo de transição.

    Doulgas Belchior (esquerda) durante a Marcha | Foto: Antônio Junião/Ponte Jornalismo

    Logo de saída, contudo, Douglas ressaltou que falaria ali não como membro de governo, mas representante do movimento negro. Para ele, a luta pela igualdade racial no próximo governo precisa se voltar para a área de segurança pública, que “sempre foi voltada para matar e encarcerar” a população negra. “Temos mecanismos legislativos, leis, regras, que devem ser alterados para esvaziar as prisões e promover políticas abolicionistas, no sentido de parar com o aprisionamento de pessoas negras”, afirmou.

    Douglas defendeu uma revisão da lei de drogas sancionada pelo governo Lula em 2006: “Sabemos que é uma lei que justifica a ação violenta da polícia nos territórios negros”. Será possível conseguir isso com o próximo governo? Sempre falando como militante, e não membro do governo, ele disse acreditar que sim: “O movimento negro vai defender isso enquanto sociedade civil e o governo Lula tem muito mais abertura ao diálogo do que tivemos no último governo. Tenho certeza de que nós vamos avançar nessa legislação também”.

    Neste ano, a Marcha da Consciência Negra teve como lema “Por um Brasil e uma São Paulo com Democracia e sem Racismo” e se reuniu inicialmente no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp), às 10h. Antes de sair, a marcha começou com uma oferenda e uma louvação aos orixás, pelo grupo de afoxé Vozes do Orun. O afoxé é uma manifestação que busca levar o axé para fora dos terreiros, fazendo um “candomblé de rua”. “Estamos aqui para trazer essa religião para a rua e tirar o estereótipo de ‘religião do diabo’, como os cristãos colocam”, explicou Pedro Cruz, do Vozes do Orun.

    Alegre, pacífica e musical, mesmo assim a marcha teve problemas com a Polícia Militar. Os manifestantes relataram que um carro de som que acompanharia a marcha foi proibido de trafegar porque o motorista não tinha a habilitação requerida para dirigir o caminhão. O movimento propôs substituir o motorista por outro, mas os policiais não aceitaram a solução e ainda levaram o veículo. “Nunca vi isso acontecer numa marcha de 20 de novembro. É sinal do quanto a bolsonarização das polícias está presente, porque foi obviamente ideológico”, criticou a vereadora Luana Alves (Psol), da Câmara Municipal de São Paulo. A PM voltou a ser criticada pelos manifestantes pouco depois, ao colocar uma viatura atravessada sobre a calçada, atrapalhando a circulação dos ativistas.

    Sem o carro de som, a militância teve que recorrer a um jogral (ação em que uma pessoa fala e a multidão repete o que foi dito para todos ouvirem) para amplificar o manifesto lido na saída da Marcha, que rememorou a história do Dia da Consciência Negra, como “um avanço extraordinário da luta antirrascista no Brasil”.

    O manifesto lembrou que o 20 de novembro, data da morte do guerreiro negro Zumbi dos Palmares, em 1695, foi pensada para “simbolizar a luta ativa por cidadania e democracia” em contraponto à outra data que até então marcava a luta dos negros: o 13 de maio, dia da Lei Áurea, assinada em 1888 por uma princesa branca, Isabel. A ideia do 20 de novembro foi criada pelos escritores da associação Grupo Palmares, no Rio Grande do Sul, e se espalhou pelo país a partir de 1978, com a criação do MNU.

    Antes de iniciar a marcha pela Avenida Paulista e descer a Rua da Consolação, o manifesto lido em jogral destacou a simbologia dos espaços: “Começamos a Marcha da Consciência Negra pela Avenida Paulista, antigo endereço de escravocratas barões do café, hoje centro do capital acumulado pela comercialização e pela exploração dos nossos corpos negros. A rua que descemos em seguida não nos serve de Consolação. Nossa referência aqui é o legado de Luiz Gama, da imprensa e da literatura negra”.

    19ª Marcha da Consciência Negra na Avenida da Consolação | Foto: Elisa Fontes/Ponte Jornalismo

    Vestindo a camiseta da Coalizão Negra por Direitos, o poeta Sérgio Vaz, 58 anos, disse que participar da Marcha, para ele, é “um ritual”, em que pode “reencontrar amigos homems, mulheres, todas as pessoas que lutam contra o racismo”, sem esquecer que a luta também acontece nos outros 364 dias do ano. Ele também disse que a 19ª Marcha tinha um clima diferente graças à derrota de Bolsonaro nas eleições. “Agora estamos vivendo esse respiro, com a derrota do demônio, e quem sabe a gente avança nas pautas raciais. É por isso que estamos aqui, porque vamos continuar lutando do mesmo jeito, independente de quem seja o presidente”, prometeu.

    A violência policial foi lembrada em várias faixas e diversos cartazes. Uma das faixas lamentou a impunidade de Luiz Antônio Fleury Filho, ex-governador de São Paulo que morreu no último dia 15 de novembro, sem jamais ter sido responsabilizado pelo massacre de 111 presos na Casa de Detenção do Carandiru, ocorrido em sua gestão, em 1992. “Fizemos questão de lembrar da morte recente do Fleury, que foi responsável por um dos maiores massacres do país e morreu sem pagar pelos seus crimes, por uma atrocidade particularmente contra os negros, que é uma amostra do que a polícia e a justiça racista fazem todos os dias nas periferias”, justificou Marcelo Pablito, trabalhador da Universidade de São Paulo (USP).

    Quando a Marcha estava na Consolação, por volta das 13h, uma chuva forte e rápida fez parte dos manifestantes se abrigar na estação de metrô Higienópolis-Mackenzie. Alguns secos, outros molhados, logo depois todos se encontraram nas escadarias do Theatro Municipal, na República, palco da fundação do MNU, onde o ato chegou ao fim, por volta das 14h.

    Final da Marcha, no Theatro Municipal | Foto: Elisa Fontes/Ponte

    A fala final foi feita por Leonardo Péricles, único candidato negro à Presidência da República nas eleições deste ano, pela UP. Ele pediu reparação imediata pelos danos causados ao povo negro pela escravidão, compreendendo uma reforma agrária e urbana, a implantação de uma justiça de transição para analisar as violências racistas da escravidão até os dias atuais e a desmilitarização das polícias. “A segurança pública é uma pauta central para nós, porque a polícia que está aí serve para matar e encarcerar nosso povo”, diz. Mais uma vez, ao falar em combate ao racismo, não tinha como esquecer de imaginar que outra política de segurança pública é possível e necessária.

    O que diz o governo de São Paulo

    A Ponte Jornalismo entrou em contato com as assessorias de imprensa da Polícia Militar e da Secretaria da Segurança Pública, do governo Rodrigo Garcia (PSDB), e aguarda uma resposta.

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