Sem ligar para pandemia, Justiça manda demolir casas e 50 famílias vão para a rua

    Para preservar terreno em Piracicaba (SP) usado como pasto, segundo moradores, PM baleou população e destruiu casas com pertences das pessoas dentro

    Idosa que vivia na ocupação deixa local com seus pertences em um saco | Foto: Gabriel Albertini

    Eram pouco mais de 4h desta quinta-feira (7/5), quando policiais militares chegaram na ocupação Taquaral, no Monte Líbano, periferia de Piracicaba, interior de SP, para cumprir uma reintegração de posse. Não demorou muito para que as retroescavadeiras se aproximassem para começar a demolição dos barracos, alguns construídos de maneira improvisada, das 50 famílias que viviam no local.

    Terreno ocupado por famílias fica vizinho da Favela Pantanal | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    “Não sei o que vou fazer. Em casa, somos em sete pessoas”, conta o ajudante de pedreiro que só quis se identificar com o primeiro nome, Cláudio, pai de cinco filhos com idade entre 7 e 14 anos. Com os trabalhos cada vez mais escassos, ele não deu conta de continuar a pagar aluguel de R$ 550 e foi para o local até que as coisas se ajeitassem. Ele acompanhava a destruição das casas do outro lado do córrego, na Favela Pantanal, vizinha da ocupação. “Havia construído um barraco improvisado, mas pelo menos tinha um lugar.”

    Moradores saíram do local pacificamente mas, antes disso, protestaram pedindo moradia | Foto: Gabriel Albertini
    Moradora com alguns móveis e mantimentos esperando o caminhão da prefeitura | Foto: Arquivo/Ponte

    A reintegração começou perto das 5h e foi até 9h30. A PM fez, pelo menos, três intervenções. Na visão de quem estava na ocupação e dos moradores da favela Pantanal, todas foram desproporcionais.

    O pintor Emerson da Silva Matos, 24 anos, um dos moradores que perdeu sua casa, explica que o sol nem tinha nascido ainda quando as pessoas da ocupação decidiram soltar um rojão com o objetivo de avisar todo mundo que precisava sair. E rápido, já que a polícia estava fazendo pressão.

    Policiais militares acompanharam o cumprimento de reintegração de posse | Foto: Gabriel Albertini

    “A gente queria avisar as pessoas para que pudessem acordar e retirar as coisas antes da demolição. Nós não agredimos, não fizemos nada para a polícia. Apenas gritamos e fizemos alguns cantos de protesto. Só isso”, relatou. Policiais apontaram armas para os ocupantes e lançaram algumas bombas. Houve barracos em que a retroescavadeira passou com móveis e pertences dentro.

    Moradora mostra bala encontrada em sua casa | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    Por volta das 7h30, dessa vez um morador da favela ao lado da ocupação estourou um rojão. A resposta veio forte: mais bombas de gás lacrimogêneo e disparos de bala de borracha. A tropa do Baep (Batalhão de Ações Especiais da Polícia) entrou em algumas vielas da comunidade e lançou bombas sobre as casas. Uma delas estourou o cano da residência de uma moradora e provocou uma inundação no barraco.

    Cano estourou após bomba lançada pelos policiais; ao fundo, Baep faz cordão de isolamento | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    A empregada doméstica Roseli Felix, 43 anos, conta que estava em casa e o filho Robson, 7, dormia e levou um susto com o barulho das bombas e dos tiros de bala de borracha disparos pela polícia bem na frente da sua casa. Não demorou muito para o cheiro forte do gás invadir sua casa e tornar inviável a respiração.

    “Meu filho estava dentro de casa dormindo e eu também. Ele ficou com o olho ardendo, sufocado e não deixavam a gente sair”, conta.

    Roseli afirma que considera irresponsável que a ação tenha acontecido durante a pandemia. “Tem mulher com um monte de criança pequena, foi dispensada por causa do coronavírus. A gente não está querendo briga, estamos querendo que o pessoal tenha alguma dignidade”, critica.

    Criança dorme, ainda de madrugada, horas antes de ficar sem casa | Foto: Gabriel Albertini

    A reportagem recebeu informações de uma jovem que havia sido atingida por um disparo de bala de borracha, mas ela não quis dar entrevista. Além disso, a Ponte recebeu duas imagens com pelo menos mais duas vítimas dos disparos.

    Reportagem recebeu duas fotos que indicam que, pelo menos, duas pessoas foram baleadas com bala de borracha da PM | Foto: reprodução

    A advogada Marcela Bragaia, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares, afirma que a reintegração foi um “show de horror” e que houve violência. “As famílias se dispersaram e acabaram não conseguindo se organizar. Os pertences serão levados para um depósito e aí é uma burocracia para retirar depois”, explicou.

    Marcela também afirma que a Prefeitura não foi até o local fazer um levantamento prévio da situação das famílias e criticou a ausência do Conselho Tutelar no terreno.

    O conselheiro tutelar Vitor Antonio Salvador esclareceu que o Conselho foi impedido de entrar pela PM, alegadamente por “uma questão de segurança”, e que o órgão vem atuando no local “há algum tempo”. Além disso, Vitor disse que apenas uma criança foi levada até o atendimento do Conselho.

    A deputada estadual Professora Bebel (PT), que foi logo cedo acompanhar a reintegração para, segundo ela, garantir a integridade das famílias e evitar a violência policial, acabou levando voz de prisão por “desobediência”.

    Um pouco mais cedo, a PM havia tentado impedir a entrada dela na ocupação. “Tenho direito, sim, de acompanhar. [A reintegração] É uma irresponsabilidade. Para onde vão essas famílias?”, questionou.

    Casal em frente ao barraco que pouco tempo depois seria demolido | Foto: Gabriel Albertini

    Algumas organizações também pediam a suspensão da reintegração, como a Casa Hip Hop de Piracicaba, que, em nota pública, chamou a ação de absurda. “Essas famílias são atendidas no trabalho de distribuição de alimentos da Casa do Hip Hop, em parceria com a sociedade civil e a prefeitura, por isso, temos como dever proteger e assegurar não apenas a alimentação, mas também o direito à moradia, saúde e segurança. Em meio a pandemia do corona vírus, não podemos deixar que 50 familias sejam retiradas de suas moradias. São crianças, idosos e mulheres que perdem um direito básico e são expostos ao COVID-19”, escreveu.

    Derrota na Justiça

    Algumas horas antes, ainda na noite de quarta-feira (6/5), a Defensoria Pública de SP amargava a derrota do pedido feito à Justiça de suspender a reintegração por causa da pandemia do coronavírus, que colocaria famílias, já em situação de vulnerabilidade, em um cenário desumano.

    O terreno privado é de propriedade do advogado Spencer Alves Catulé de Almeida Junior e, segundo os ocupantes, estava sendo usado como pasto. As famílias chegaram ao local em janeiro deste ano.

    Retroescavadeiras demoliram, a pedido do dono do terreno, barracos feitos pelos ocupantes | Foto: Gabriel Albertini

    No recurso, a Defensoria argumentou, entre outros pontos, que realizar uma reintegração durante a pandemia colocaria a população já vulnerável em um risco ainda maior. “A perda deste ponto referencial de acesso à cidade (e a consequente desorganização estrutural), neste momento de pandemia, pode ensejar riscos e danos graves e irreparáveis, notadamente à integridade física e à vida das pessoas que encontram na ocupação informal do espaço urbano a única alternativa habitacional, diante da falta de políticas inclusivas”, afirmou.

    A advogada Marcela Bragaia destaca a ausência do Estado para resolver a situação daquelas pessoas. “A dimensão é de uma tragédia. Há imigrantes haitianos no grupo de mais de 150 pessoas, pelo menos 58 crianças”, explicou.

    Viela da Favela Pantanal que dá acesso ao terreno ocupado: policiais acompanham o cumprimento de reintegração | Foto: Maria Teresa cruz/Ponte Jornalismo

    Em recente entrevista à Ponte, a arquiteta urbanista Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), propôs a suspensão de reintegrações e afirmou que o Estado deve disponibilizar imediatamente espaços em imóveis vazios e subutilizados para abrigar a população que não tem onde morar. “Quanto menos condições as pessoas tiverem de fazer as medidas de prevenção, mais elas serão atingidas pela pandemia”, afirmou.

    Mas não teve jeito. A reintegração de posse aconteceu. Primeiro, foi a juíza Fabíola Giovanna Barrea Moretti a determinar, em 30 de janeiro, e depois manter a ordem de saída, em 29 de abril, das 50 famílias do local. Na decisão, a juíza destaca que a propriedade pertence à família de Spencer “há quase cem anos, tendo sido transmitida entre gerações” e que, analisando fotografias e boletins de ocorrência sobre o caso, é “nítido que [os ocupantes] passaram a efetuar desmatamento, demarcar a terra e erguer barracos, com nítido propósito de apoderarem-se do patrimônio alheio”.

    O promotor Luciano Gomes de Queiroz Coutinho emitiu um parecer favorável e justificou que a ocupação era nova, não havendo mais do que “3 ou 4 famílias” vivendo na área.

    Por fim, foi a vez de o desembargador Mourão Neto ratificar o entendimento e manter a reintegração e, em sua decisão, afirmar que há “informações fidedignas de que há aproximadamente 150 barracos no local, ou em construção (a maioria) ou já construídos, mas apenas alguns já ocupados e, menos ainda (3 ou 4), com famílias, inclusive com consideração de que os barracos estão sendo construídos para venda”.

    O processo de saída das famílias seria de forma pacífica, já que havia um entendimento coletivo de não enfrentar a polícia que acompanhava a reintegração. Mas, segundo o pintor Emerson, a PM queria acelerar a saída. Há dois meses, ele estava construindo o barraco em uma parte da ocupação. “Moro em uma casa e tem um rolo de família, e eles querem vender. Queriam que eu desse a parte da casa, mas eu não tenho esse dinheiro e precisei sair”, afirma.

    Emerson estava construindo a sua casa e afirma que vai se virar, mas teme pelas outras famílias: “Vão para a rua” | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    Emerson estava preenchendo o cadastro da Secretaria de Assistência Social do município que estava com algumas mesas na saída da comunidade para receber os despejados. Mas o pintor está descrente de uma resposta rápida. ” Eu ainda consigo ficar nessa casa da família por um tempo, mas as pessoas que não têm para onde ir, vão para rua. Infelizmente, não tem o que fazer”.

    Outro lado

    A Ponte procurou o proprietário do terreno e advogado do caso, Spencer Almeida Junior, por telefone e também em canal de comunicação disponível no site do escritório de advocacia, mas, até o momento, não houve retorno.

    Em nota, a Prefeitura de Piracicaba destacou que a reintegração de posse aconteceu em área particular, foi determinada pela Justiça e o pedido de demolição foi do proprietário.

    “Durante a ação, a Secretaria de Saúde disponibilizou uma ambulância do Samu, de prontidão, para qualquer emergência e para orientar pessoas que estejam com algum sintoma da Covid-19. Assistentes sociais da Emdhap (Empresa Municipal de Desenvolvimento Habitacional) e da Smads (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social) chegaram ao local às 5h e cadastraram 19 famílias”.

    Bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas pela PM depois que comunidade soltou rojões | Foto: Gabriel Albertini

    A prefeitura também afirma que a Smads definiu junto com o Fundo Social de Solidariedade de Piracicaba, “que as famílias não cadastradas em programas sociais municipais devem procurar o Cras da região do Monte Líbano para receber cesta básica”.

    A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública de SP, comandada pelo general João Camilo Pires de Campos nesta gestão de João Doria, e a PM, sob o comando geral do coronel Fernando Alencar de Medeiros sobre se a ação em Piracicaba foi adequada.

    Em nota, a PM esclarece que deu apoio aos oficiais de Justiça que cumpriam determinação judicial de reintegração de posse em um terreno. “Após a saída pacífica dos moradores, um grupo de uma comunidade localizada em frente ao local da reintegração passou a atirar tijolos e rojões na direção da equipe da prefeitura que realizava a limpeza da área, sendo necessário o emprego de técnicas de controle de multidões. Até o momento não há informações sobre feridos”.

    Sobre o episódio envolvendo a deputada estadual professora Bebel, a PM informou apenas que ela tentou entrar no terreno e foi impedida para preservação de sua integridade física. “A deputada e sua equipe acompanharam a reintegração em um local seguro e os PMs permanecem no local aguardando a conclusão dos trabalhos da prefeitura”.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas