Sem mandado, PM do Mato Grosso invade residência e casal relata tortura

    Esposa de pintor, acusado pela PM de ser membro do Comando Vermelho, afirma que foi forçada a cavar o que diziam ser sua própria sepultura; Justiça aponta ilegalidade em prisão e falta de indícios de crime

    PM do Mato Grosso | Imagem: Reprodução

    A Polícia Militar do Mato Grosso invadiu a residência de um casal no município de Campinápolis, cidade a cerca de 550 km de Cuiabá, sem mandado e sem autorização e, segundo os moradores, torturou o marido, que trabalha como pintor, e a esposa, uma vendedora de roupas, para que entregassem onde supostamente guardavam drogas. 

    Os policiais afirmam ter ido ao local após supostamente terem sido informados por um usuário de drogas que pegou entorpecentes com o casal, e indicado onde era a casa. No boletim de ocorrência, consta que os policiais passaram a acompanhar a movimentação na residência, e concluíram que o morador do local é membro da facção criminosa Comando Vermelho, e estaria “na ativa realizando venda de entorpecentes em sua residência”. 

    Conforme a versão da Polícia Militar, que consta no boletim de ocorrência, o homem atuava traficando drogas no município sob a conivência da esposa. No entanto, segundo a defesa do casal, o pintor e a vendedora não têm nenhum envolvimento com crime. 

    Os PMs afirmam que enquanto observavam a residência do casal, um homem teria se aproximado do dono da casa para supostamente comprar drogas. Nesse momento, a polícia interceptou. No boletim de ocorrência, os policiais dizem que o pintor correu para dentro da casa, e foi perseguido pelos policiais. Dentro da residência, a mulher dele também foi abordada.  

    Após fazerem as buscas na residência, os policiais militares afirmam ter encontrado duas porções parecidas com maconha e substâncias semelhantes à cocaína, além de uma balança de precisão. Do lado de fora, o homem que supostamente teria ido à casa comprar drogas também foi abordado e, segunda a polícia, portava maconha no bolso. 

    O caso aconteceu na última quarta-feira (11/1), mas o casal só foi liberado dois dias depois, quando houve a audiência de custódia e a juíza substituta Lorena Amaral Malhado, da Vara Única de Campinápolis, entendeu que o suposto crime que teria levado os policiais à residência do casal não há indício nenhum de existir. 

    “O flagrante foi realizado sob o fundamento de que os custodiados teriam envolvimento com a traficância, entretanto, pelas provas juntadas no APF (Auto de Prisão em Flagrante), bem como pelo que foi dito durante a solenidade, não é possível verificar a presença de indícios suficientes de justa causa, para que houvesse a busca na residência dos custodiados”, escreveu a juíza na decisão. 

    A versão do casal vai de encontro ao que os policiais disseram. Em depoimento, o pintor disse que a perseguição que sofre dos policiais acontece por causa do passado dele, que já teve envolvimento com ações criminosas, e que, por isso, é monitorado por uma tornozeleira eletrônica, já que cumpre pena em regime aberto. 

    A vendedora também disse que os policiais invadiram a casa do casal ainda pela manhã, quando ela estava dormindo, e foi acordada com os agentes puxando se cobertor a questionando sobre onde estariam as drogas. 

    O pintor também relata que os policiais chegaram na casa do casal ainda pela manhã, e começaram a torturar o homem e a mulher, que estavam jogados no chão, enquanto os agentes os agrediam e vasculhavam a residência em busca de drogas. A tortura durou “umas quatro, cinco horas”, segundo a vendedora, e teve muitos chutes, pontapés, além de afogamentos e até choque. 

    Ainda sob agressões, o casal foi levado para uma viatura da Polícia Militar, enquanto os policiais seguiam as buscas no interior da residência. Em seguida, os PMs tiraram a vendedora da viatura e levaram para trás da casa para espancá-la. O pintor afirma ter ouvido os gritos de dores da mulher, enquanto outros policiais insistiam para ele dizer onde guardava drogas, senão a mulher seguiria sendo torturada. O marido afirma ter começado a gritar pedindo socorro também. 

    Forçada a cavar “a própria sepultura”

    Em seu depoimento, a vendedora disse que quando foi levada para o fundo da residência, os policiais pegaram a toalha de mesa da casa, encheram o tanque de água, enrolaram o pano na cabeça dela e começaram a afogá-la, e dar choques na perna, abdômen e cabeça. 

    Depois de um tempo com os dois gritando pedindo por socorro, o pintor afirma ter sido retirado da viatura também, mas teve a boca amarrada com uma camiseta vermelha, como uma tentativa de silenciá-lo. A mesma camiseta teria ainda sido usada para enforcar o homem. 

    Buraco que teria sido cavado por mulher durante tortura | Foto: Arquivo pessoal

    Uma das viaturas saiu do local, levando a vendedora no camburão, enquanto o pintor seguia sob posse dos policiais e um outro PM permanecia dentro da residência. A mulher ficou desaparecida do local com os policiais por cerca de 40 minutos, que foi o tempo para uma médica familiar do casal chegar para entender o que estava acontecendo, já que havia recebido informações de que os dois gritavam por socorro.  

    A vendedora disse que foi levada para um local chamado pelos policiais de “bica”, que é no meio de uma região de mata. No local, os PMs teriam feito a mulher cavar um buraco onde eles disseram que ela seria enterrada. Os PMs seguiram com as torturas físicas e psicológicas a fim de conseguir alguma confissão relacionada a um tráfico de drogas que, de acordo com o casal, não existe. 

    Enquanto a vendedora estava no mato, outros profissionais da saúde e um advogado acompanhavam a médica do lado de fora da casa, mas não foram autorizados pelos policiais a entrarem na residência. 

    Segundo a pintor, enquanto todos estavam do lado de fora da casa, sua esposa chegou, com a roupa suja de lama e aparentava ter sido vítima de muita agressão física. 

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    Antes da ocorrência ser levada para a delegacia, o pintor afirma que os policiais determinaram que a vendedora tomasse banho e trocasse de roupa, para tirar a sujeira de lama ocasionada, supostamente, em uma sessão de tortura. 

    Questionada pela Ponte, a Secretaria de Segurança Pública do Mato Grosso não retornou até a publicação desta reportagem. 

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