Sem vencedores ou vencidos: todos perderam no motim da PM do Ceará, afirmam especialistas

    Lideranças políticas do estado e o governo federal capitalizaram a paralisação, que terminou domingo e escancarou a urgência em repensar modelo de segurança pública

    Imagens feitas por Cabo Sabino mostram viaturas paradas em rua de Fortaleza durante a greve e outras com pneu furado | Foto: Reprodução/Facebook

    A paralisação dos policiais militares do Ceará, que teve início no dia 18 de fevereiro, após uma parte da categoria se mostrar insatisfeita com o acordo de reajuste salarial, terminou neste domingo (1/3) sem vencedores ou vencidos. Na análise de algumas pessoas que atuaram nas negociações ou viram de perto as mobilizações, há um entendimento de que tanto o governo quanto os PMs grevistas saíram com a imagem arranhada.

    De acordo com o governo do Ceará, sob o comando de Camilo Santana (PT), os recursos de R$ 495 milhões previstos na proposta de reestruturação salarial não serão ampliados e serão dissolvidos nos próximos três anos. Ou seja, exatamente a mesma proposta aceita no dia 13 de fevereiro e que causou a insatisfação em parte da categoria, deflagrando a greve, que é inconstitucional para militares. Caso os valores de reajuste sejam remanejados entre as patentes na Assembleia Legislativa do Ceará, em 2022, um soldado no estado poderá ganhar R$ 4.500. Atualmente, segundo o governo, a tropa do estado é composta por 20 mil PMs.

    O pedido de anistia aos 230 policiais militares identificados como participantes do movimento não foi aceito pelo governo. No entanto, os policiais que eventualmente venham a responder por processos da Controladoria Geral de Disciplina terão todo o amparo para que sejam defendidos, além de estar prevista a criação de uma comissão com Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal, Ordem dos Advogados do Brasil e Defensoria Pública para fazer o acompanhamento dessas ações.

    O inspetor da Polícia Civil do Ceará Rogério Araújo denominou o acordo de “anistia branca”, já que, na visão dele, as punições serão abrandadas. Além disso, destaca o fato de que o acordo que pôs fim à greve era o mesmo já firmado há 13 dias.

    Araújo atua como inspetor e defende que as duas instituições saem fragilizadas desse embate, que entre muitas consequências teve o episódio do senador licenciado Cid Gomes (PDT) baleado após tentar invadir um batalhão em Sobral com uma retroescavadeira. 

    “Houve um desgaste de ambos os lados. Foi um acordo embaraçoso para ambos os lados, porque na verdade, o que o governador acabou concordando é com a ‘anistia branca’ e as entidades de punição deram uma clara manifestação que estão inclinadas a não processar os policiais envolvidos. O que é bom, é positivo, mas isso também não tem uma segurança jurídica. Esses caras estão na mão do governador de processá-los ou não”, criticou o policial.

    À Ponte, Ana Letícia Lins, pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança e do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará, destacou o caráter político eleitoral e lembrou que o estado registrou motins semelhantes em 1997 e na virada de 2011 para 2012, sendo que este último, assim como a greve deste ano, contou com a participação do atual deputado federal Capitão Wagner (Pros).

    “A principal consequência em 2012 foi que o Capitão Wagner conseguiu uma projeção política muito grande e na eleição municipal de 2016 ele saiu como segundo candidato mais votado para a prefeitura de Fortaleza. Então não é por acaso que um movimento de paralisação como esse aconteceu em um ano de eleições”, afirmou.

     Ana Letícia ainda explicou que o deputado federal não foi o único parlamentar envolvido no motim de parte dos agentes públicos. “Além do Capitão Wagner, tiveram participação o Soldado Noelio, também do Pros e atualmente deputado estadual, e o Cabo Sabino [ex-deputado federal pelo Avante], que já teve mandato. Então, essas figuras fizeram a liderança do movimento”, pontuou. 

    Para o deputado federal Renato Roseno (Psol), toda greve é uma manifestação política e não se pode menosprezar o movimento grevista como, segundo ele, alguns políticos do poder Executivo fazem para atacar uma ou outra categoria. “Como pessoas progressistas, nós não podemos reproduzir um certo discurso que é muito comum no Brasil, por exemplo, de que prefeito e governador, toda vez que querem descredenciar uma greve de uma categoria de servidores, dizem que a greve é politica. Inequivocamente, houve uma captura por setores que estavam fazendo disputa de referência na tropa”, analisou.

    Para ele, que participou ativamente da mesa de negociações da campanha salarial, a greve foi um “divisor de águas” que deve afetar a segurança pública e a política do Ceará a longo prazo. “Houve uma intencionalidade de trazer a tropa para um concepção mais próxima ao populismo autoritário que está muito em voga”, completou.

    Roseno destaca que Camilo havia optado por um modelo de segurança pública bastante alicerçado pelo policiamento ostensivo, com incremento de orçamento especialmente para tropas especializadas como o BPRaio (Batalhão de Policiamento de Rondas e Ações Intensivas e Ostensivas), por exemplo. “Eu acho que criou-se uma situação que vai demandar uma alteração muito profunda da modelagem da segurança pública. Uma coisa que a gente já vinha há muito tempo reclamando”.

    O político entende que, a partir de agora, o ideal é focar em um novo tipo de polícia, que atue mais próximo da população. “Parece que abre-se agora, a possibilidade de a gente pensar num modelo de segurança pública com maior nível de complexidade. Pensar mais em estratégia de prevenção, de inteligência, outro tipo de policiamento que não só o ostensivo, de comunidade e proximidade”, pontuou.

    O lastro político do movimento grevista ficou bastante marcado após a visita do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, que foi até o Ceará depois que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) assinou um decreto de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) para atuação do Exército no reforço de segurança do estado. Moro, inclusive, tem mantido embates via Twitter com o ex-governador do Ceará, Ciro Gomes, irmão de Cid.

    Quando assinou o decreto, Bolsonaro aproveitou para fazer propaganda de uma de suas bandeiras eleitorais, que sofreu derrota no Congresso, a excludente de ilicitude. “A gente precisa do parlamento para aprovar a excludente de ilicitude. A minha consciência fica pesada neste momento porque tem muitos jovens de 20 anos de idade, de 21, que vão estar na missão. Estão cumprindo uma missão que se aproxima de uma de guerra e depois, caso tenham problema, vão ser julgados por lei de paz”, declarou.

    Para a pesquisadora Ana Letícia Lins, a presença de Moro serviu para “colocar panos quentes” e construir uma narrativa de que o governo federal é que conseguiria resolver a situação.

    “O Moro não fez nenhuma fala com afinco sobre a situação da ilegalidade da paralisação dos PMs. Ele quis colocar como consequência do trabalho do governo federal o fim da paralisação, quando na verdade, quem sai vitorioso desse momento de encerramento da paralisação é o governo do Estado e o grupo que estava fazendo as negociações, formado por policiais e OAB”, analisou.

    “Ele se apequena mais ainda. Todos aqui sabem que ele foi no mínimo ambíguo diante da situação. Querer atribuir a si papel que não teve é, pra ser educado, muito feio”, concluiu o deputado estadual Renato Roseno, ao comentar a declaração de Moro de que o governo federal teve participação decisiva no fim da paralisação.

    O comandante da Força Nacional, coronel Aginaldo de Oliveira, deslocado para atuar no Ceará após pedido do governador e determinação de Bolsonaro, chegou a elogiar a ação dos amotinados: “vocês não gigantes e corajosos“. Oliveira é casado com a deputada federal bolsonarista Carla Zambelli (PSL), que, em entrevista à Rádio Bandeirantes na semana passada, elogiou a postura do presidente e destacou que a “greve aconteceu num estado comandado por um petista” e onde a polícia é “desvalorizada”.

    43 PMs soltos

    Nesta segunda-feira (2/3), o Tribunal de Justiça do Ceará determinou a soltura de 43 policiais militares que estavam presos após não se apresentarem para o trabalho durante a paralisação de parte da categoria que durou 13 dias.

    Alguns dos presos não haviam se apresentado para atuar na Operação Carnaval 2020. De acordo com o juiz Roberto Soares Bulcão Coutinho, da 17º Vara Criminal, a decisão de emitir o alvará de soltura foi tomada após o acordo selado entre governo e grevistas no último domingo (1/3).

    Em sua decisão, o magistrado apontou que “atual situação exige uma nova visão da questão, pois a conversão antes decretada teve como fundamento a garantia da ordem pública e a necessidade de manter a hierarquia e a disciplina”. Coutinho foi o responsável por converter a prisão em flagrante para preventiva desses mesmos agentes. 

    A soltura dos PMs não os isenta de responder a possíveis processos pela participação no motim.

    A Ponte tentou contato com as assessorias dos deputados soldado Noelio e capitão Wagner, e também o contato direto com Cabo Sabino, mas até a conclusão e publicação da reportagem não havia retorno.

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