Agentes usam cassetetes de madeira maciça contra adolescentes internados no MS

    Relatório cedido à Ponte aponta tortura “recorrente e disseminada” em unidade de Campo Grande, onde cassetete de madeira tem inscrição “socioeducador”

    Servidores públicos que atuam na UNEI (Unidade Educacional) Dom Bosco, que abriga garotos em conflito com a lei com idades entre 12 e 20 anos em Campo Grande (MS), não se separam daquilo que orgulham de chamar de “instrumento socioeducador”: os cassetetes de madeira. É o que revela o novo relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), ligado à Secretaria de Direitos Humanos, cedido à Ponte Jornalismo.

    “Evidenciou-se uma realidade muito pior que a correspondente dos adultos presos no que tange ao emprego de armamentos menos letais e à excessiva rotina de revistas vexatórias nos adolescentes e jovens, que são impressionantemente mais ostensivos e repressores. Evidenciou-se uma desproporcionalidade e abusividade destas práticas na unidade”, avalia o mecanismo.

    De acordo com a análise, em setembro deste ano, “evidenciou-se que tortura é uma prática recorrente e disseminada na UNEI Dom Bosco”. De acordo com o documento, que cobra melhorias em relação aos direitos humanos de pessoas impedidas de liberdade, há relatos de ameaças, agressões físicas e psicológicas. “São onipresentes na unidade. Esta prática criminosa variaria desde os métodos mais tradicionais como a agressão física direta, até a utilização do frio, da umidade e da privação de saneamento básico”, pontua o relatório entregue ao governo estadual do Mato Grosso do Sul, que tem como governador Reinaldo Azambuja (PSDB).

    As agressões aos jovens presos seriam praticadas com os cassetetes de madeira presentes em toda unidade. São tantos cassetetes que o MNPCT foi incapaz de precisar o número exato. “Estes cassetetes, conhecidos pelos adolescentes e jovens como chicos, são aparentemente produzidos de maneira artesanal, a partir de pedaços de madeira maciços e são bastante pesados.

    Alguns, com até um metro de cumprimento”, aponta o documento. “Informou-se que os agentes socioeducativos fariam uso frequente dos cassetetes, tendo-os em mãos durante idas e vindas para a escola e outras atividades, assim como durante rondas nas alas, também na transferência, em casos de indisciplina, e durante atos de tortura”, complementa.

    “Agentes teriam rasgado bíblias dos internos, ação considerada muito violenta para os adolescentes e jovens”

    Chamou a atenção dos três peritos que estiveram na unidade, Catarina Pedroso, Luz Arinda Barba Malves e Rafael Barreto Souza, a palavra “socioeducador” transcrita em um cassetete de madeira. “Em um dos cassetetes, havia até mesmo a inscrição socioeducador, sinalizando uma vinculação entre a agressão física e a socioeducação.” Observou-se, na área comum de alimentação dos agentes socioeducativos, abaixo de uma televisão, que havia dezenas de cassetetes e até uma pesada chave grifo, sobre a qual igualmente não se explicou o uso.  Além disso, em muitas camas dos agentes, em seus alojamentos, havia ainda mais outros cassetetes, muitos situados em espaços pouco visíveis, ao lado e embaixo dos colchões.

    “Não há qualquer razão que justifique um armamento como esse com a inscrição citada que não a prática da tortura física e psicológica, por meio de um cruel e torturante desvirtuamento da socioeducação e do papel que devem desempenhar os socioeducadores. Cassetetes não devem estar presentes em nenhuma unidade socioeducativa, uma vez que se contrapõem à proposta da socioeducação que, em situações limite, se rege pelo diálogo e por técnicas de negociação. Por sua vez, situações-limite já são um indicativo de outras situações anteriores mal conduzidas na perspectiva socioeducadora. De fato, nem mesmo na visão dos servidores da unidade haveria uma função legítima para o equipamento”, afirma o relatório. Questionados sobre os cassetetes de madeira, os peritos não tiveram nenhuma resposta.

    Os reeducandos narraram outras práticas de tortura no local. Segundo eles, existe a prática de se criar os chamados “corredorzinho da justiça” ou “corredorzinho da alegria”, quando os agentes se reúnem ao longo de corredores e agredem consecutivamente os adolescentes e jovens a medida que caminham. Haveria também a prática de molhar o alojamento e o local de dormir, piorando a sensação de frio, que, dependendo da época do ano, durante a noite chega a 0º C.

    Também foram identificados, nos registros da unidade, que existe a rotina de rondas noturnas a cada hora por agentes plantonistas. Tais rondas são concebidas para garantir a proteção dos adolescentes e jovens durante a noite. “Contudo, além dos cassetetes, são bastante regulares os relatos de outras formas de constrangimento, ameaça e tortura especificamente à noite com armas de eletrochoque, facas e armas de fogo”, aponta o documento. Foi narrada também a prática conhecida como sequestro, que consistiria na retirada do adolescente do alojamento no meio da noite, sendo levado para outro lugar da unidade onde seria agredido por até 30 minutos.

    Além do uso da força narrado em relação aos agentes socioeducativos, também houve relatos de irregularidades na entrada de forças policiais especiais, especialmente do Batalhão de Choque da Polícia Militar. “De um lado, há relatos de que nestas incursões seriam revirados e quebrados diversos pertences dos adolescentes e jovens e seria usado spray de pimenta. Destacou-se bastante nos relatos que inclusive bíblias seriam rasgadas, uma ação considerada muito violenta para os adolescentes e jovens”. Também foi relatado que nesse procedimento, todos os jovens eram retirados de seus alojamentos e colocá-los de cueca, acocorados, em outro lugar. A direção informou que o Batalhão de Choque compareceria mensalmente para realizar as revistas.

    ISOLAMENTO

    “Há uma clara prevalência das sanções ilegais na unidade. Em sua aplicação, a Resolução nº 622/2012 da SEJUSP produz pouquíssimo ou nenhum efeito, sendo inclusive desconhecida pela maioria dos agentes públicos. Segundo este regimento, as faltas graves e gravíssimas seriam sancionadas, no máximo, com restrição de atividades e de contato com o mundo exterior por um tempo mais longo, mas nunca com isolamento ou punição física”. Não é isso o que acontece, de acordo com o documento. O espaço disciplinar de isolamento, que sequer está previsto no regimento, tem sido o instrumento de sanção disciplinar por excelência na UNEI Dom Bosco.

    O isolamento dos jovens, como punição, dura entre 10 e 12 dias. “Este espaço bastante pequeno, composto por três alojamentos, é também compartilhado com a triagem de adolescentes e jovens recém-chegados à unidade, de forma que se combina a chegada à unidade socioeducativa à pior punição que ocorre internamente, num processo muito grave de viés punitivo que novamente se afasta do fim socioeducativo”, aponta o Mecanismo de Combate à Tortura. O local foi classificado como “o pior da unidade, tendo em vista que os adolescentes lá situados ficam muitas vezes isolados, sem colchões, cobertas, descarga sanitária e outros insumos, além de estarem proibidos de receber visitas, de ir à aula e de praticar outras atividades”.

    O emprego deste isolamento seria banalizado. Foi identificada pela equipe do MNPCT a sua aplicação em razão de condutas de baixíssima lesividade como, por exemplo, por terem chacoalhado a grade do alojamento. Comprovou-se também essa punição no fenômeno chamado “mancada”, que seria a institucionalização da autossanção ou justiçamento dos adolescentes e jovens. No momento da visita dos peritos, internos estavam no isolamento porque teriam ido ao banheiro durante o horário do almoço, prática presumivelmente não tolerada dentro dos alojamentos. “Assim, a pedido dos demais adolescentes e jovens do alojamento, os agentes aplicaram uma sanção disciplinar, sem prazo, sem instauração de procedimento disciplinar, sem comissão disciplinar, sem defesa, sem nenhuma garantia de devido processo”, relatam os peritos.

    REVISTAS VEXATÓRIAS

    As “revistas vexatórias” acontecem todos os dias nos adolescentes e jovens, exceto nos sábados e domingos, quando que recebem visitas, ainda de acordo com o relatório. “Nestes dias, a revista vexatória passa a ser feita em seus familiares, mães, companheiras, filhos, bebês e idosos. Da mesma forma, todos os visitantes são obrigados a desnudar-se, agachar-se e abrir seus pertences e alimentos”, aponta o mecanismo.

    Quanto ao fato de se encontrar materiais ilícitos com as visitantes, a unidade registra que, em 2016, foram encontrados somente em duas ocasiões. “Os internos passam por uma rotina exaustiva de revistas vexatórias com desnudamento e agachamento. Este procedimento se desenvolve normalmente no espaço do quadrado, na entrada de cada ala”.

    Sempre que o jovem sai ou entra em seu alojamento, que vai à escola, ao atendimento no setor de saúde, ao atendimento da equipe técnica, vai praticar esportes, vai para atividades extras e para saídas externas em audiências, entre outros, precisa realizar o procedimento. “Um interno pode ficar nu e agachar-se até seis vezes num mesmo dia; isso numa instituição que se propõe a centrar-se na pedagogia. Agrava a sensação de desproporcionalidade do procedimento tendo em vista que não existe registro formal do encontro de objetos ilícitos em posse dos adolescentes e jovens durante estas revistas”, complementa o documento.

    O RELATÓRIO

    O relatório foi entregue com recomendações ao governo do Mato Grosso do Sul em 31 de outubro deste ano. Entre os dias 12 a 23 de setembro de 2016, o Mecanismo Nacional realizou visita a unidades do sistema prisional e do sistema socioeducativo no estado do Mato Grosso do Sul, por meio de equipe composta por três peritos. Além da UNEI Dom Bosco, os peritos foram até uma unidade feminina e outra unidade que tem aprisionados muitos indígenas.

    A UNEI Dom Bosco foi construída em 1993, tendo passado por duas grandes reformas, uma em 2001, e outra em 2012, quando foi expandida a capacidade de 54 para 80 pessoas. No momento da visita, havia 87 adolescentes e jovens cumprindo medida de internação no local, portanto em situação de superlotação. Quanto ao perfil étnico, havia dois indígenas, 29 brancos e 56 negros ou pardos, os últimos totalizando 64% do total, segundo dados da unidade. Além disso, garantia-se o direito à assistência religiosa prestada pelas igrejas católica e protestante.

    Já em relação aos atos infracionais cometidos, há a prevalência de crimes patrimoniais, seguidos de crimes contra a vida e de tráfico de drogas. “Especificamente, preocupa o número substancial de adolescentes privados de liberdade pelo ato infracional equiparado ao tráfico de drogas, sobretudo tendo em vista que estes são, muitas vezes, vítimas dessa forma de exploração, considerada uma das piores formas de trabalho infantil proibida pela Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 24% dos adolescentes e jovens que estavam internados por atos infracionais que não envolviam violência ou grave ameaça à pessoa, assim como não haviam cometido reiteradas infrações graves”, aponta o relatório.

    Logo após a visita, “diante de graves violações observadas in loco”, a equipe do Mecanismo Nacional encaminhou 86 casos individuais para as autoridades competentes solicitando a adoção de providências urgentes, envolvendo questões de indícios de tortura, problemas sérios de saúde e desumanas condições materiais.

    OUTRO LADO

    A reportagem da Ponte Jornalismo ligou para o diretor da UNEI Dom Bosco, Jean Lesseski Gouveia, mas ele não atendeu às ligações até a divulgação desta reportagem. A Ponte também questionou o governo Reinaldo Azambuja. A assessoria de imprensa afirmou que iria analisar o caso para poder se posicionar.

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