Depoimento | ‘Fui ver um jogo e acabei numa cela, humilhado e agredido’

    Jovem que hoje tem 23 anos relatou o que teria sofrido no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro; “vidas pretas importam?”, questiona

    Uma das unidades do Degase | Foto: Divulgação /Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura da Alerj

    Texto publicado originalmente no Twitter

    Em fevereiro de 2015, eu fui detido injustamente indo pro jogo do Fluminense no Engenhão. Detido eu fui levado pra cidade da polícia e lá permaneci por 1 noite e 1 dia. Por algumas horas, permanecemos dentro do microônibus sem comida, depois fomos jogados dentro de uma cela.

    De lá fui transferido para o centro da cidade no mesmo microônibus, junto de outros 15 menores de idade, passamos pelo IML (Instituto Médico Legal) para o exame de corpo de delito. Detalhe: O cara que fez o exame ficou confuso, fomos presos em uma briga de torcida, mas ninguém estava machucado. Como?

    Do IML, fomos pra delegacia de menores no centro da cidade. Lá foi o local que tive o primeiro contato com a minha família e disseram que apenas iríamos passar a noite no “Centro de Triagem” da Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas) na Ilha do Governador. Foi então que o inferno começou!

    Assim que descemos do ônibus, começaram as agressões físicas e verbais. Xingando a gente, humilhando, bateram num garoto de 14 anos porque ele não queria ficar nu na frente das outras pessoas.

    Pediram pra esse mesmo garoto cantar o hino do Vasco, ele disse que não sabia, e apanhou de novo. Deixaram a gente pelado, nos revistaram, nos deram roupas sujas e fedidas, chinelos e o tempo todo éramos xingados e provocados, eu não fui agredido, mas fui xingado de tudo!

    Após esse período perguntaram a nossa facção criminosa. Sim, crianças são separadas por facção também. Como não tínhamos envolvimento com o crime, jogaram todo mundo na ala do Comando Vermelho. Chegamos de madrugada, então estavam todos dormindo quando entramos na cela.

    Quando eu ouvi o barulho da grade se abrindo, o olho encheu de lágrima. Eu já estava estudando para concurso, era um garoto bom e estava naquele local, minha mãe chorando, passou um filme. Quando entrei na cela, tinham muitas crianças. Eu gosto de enfatizar a palavra “criança”, porque são realmente crianças.

    Eu era um dos mais velhos por ter 17. A maioria tinha 14, 15, 16 anos. A cela deveria ter o tamanho de uma sala de aula padrão, mas tinham umas 60 pessoas amontoadas, 8 camas de concreto sem nada mais para dormir. Apenas concreto. Quem ficava sem vaga na cama, ou seja, a maioria, dormia no chão. Era tanta criança dormindo no chão que não existia onde pisar. Eu procurei um canto, sentei e ali passei a madrugada acordado sentado, pensando, com medo, com frio. Não chorei, mas a vontade era enorme. Eu realmente não entendia como cheguei ao ponto de parar naquele lugar.

    De manhã nos acordaram por volta das 6h e foi o mesmo padrão de tratamento: grito, xingamento, humilhação. Tínhamos que andar em fila indiana, mão pra trás, cabeça baixa e tínhamos menos de 1 minuto pra tomar café. Literalmente comíamos como bichos. Tinha um refeitório que lembrava um refeitório escolar, mas não era nada agradável estar ali. Passei o resto do dia sentado no canto e, por ser o mais velho, os outros que foram presos comigo precisavam de mim para lidar com a situação.

    Fui forte demais em não chorar na frente deles, mas vontade não faltou. Para tomar banho, o “seu funcionário” ligava a água 1 minuto pra todo mundo. Não dava tempo. A gente só enchia caixinha de creme de leite pra ter água o resto do dia e lavava o rosto. Fedíamos igual bicho. Tudo era muito sujo e o vaso era terrível.

    Tinham garotos com mais de 10 passagens. Tinham uns que ofereceram casa, comida e emprego pra gente numa favela, mas a gente evitava conversar. Tinha um garoto que era uma espécie de “líder” dos menores. Ele ficou revoltado quando soube que um dos nossos morava em uma área de facção diferente, arrumou uma treta com o “seu funcionário” e apanhou muito na frente de todo mundo. Foi um espancamento ao vivo, sem cortes. Obviamente, predominantemente lá dentro tinham garotos em situação de rua, sem pai, mãe, sem nada a perder. Só revolta. Se eu senti revolta, quem sou eu pra julgar a revolta deles? São tratados como bicho.

    Precisamos ajudar a salvar nossas crianças pretas que estão sendo tratadas como bichos com um discurso de socioeducação. Socioeducação o cacete! Ali é o verdadeiro recrutamento do crime. Em nenhum momento pude escovar os dentes, em nenhum momento me deram sabonete. Éramos bichos engaiolados.

    No segundo dia, eu tinha uma audiência no Fórum de Olaria. Algemado, fui numa van da Polícia Civil, onde mal consegui respirar, já que estava amontoado com outras pessoas. Quando cheguei, jogaram a gente numa cela no subsolo do Fórum. A umidade é tão grande que eu tive uma crise respiratória e comecei a me sentir sufocado, mas ninguém ligou. Ouvi tanta historia dos outros garotos que estavam lá também presos.

    Na hora da audiência, pareciam me respeitar. Na frente das autoridades, “eles” nos tratavam com o mínimo respeito. Fora isso, era um padrão horroroso de porrada, xingamento e humilhação.

    Na hora do meu depoimento, entrei numa sala e conversei com uma senhora. Ela super educada, perguntou se eu estava bem. Como vou dizer que não estava, se ao sair dali eu voltaria ao inferno e poderia sofrer mais ainda? Dei meu depoimento e no fim olhei pra trás, minha mãe estava lá. O abraço dela foi o suficiente pra eu chorar de soluçar.

    Quando senti o colo da minha mãe, não aguentei. Menos de 20 segundos de abraço fui arrancado dos braços dela e levado de volta pra cela no subsolo e lá fiquei quase o dia todo até voltar pra Degase na ilha. Lá me perguntaram me intimidando se eu tinha falado algo. Mas não, eu não falei sobre nada que vi, vivi e passei lá dentro pra senhora para quem dei meu depoimento.

    No mesmo dia, no fim de tarde, fui liberado pra responder em liberdade. Quando atravessei o portão todas as famílias estavam la nos esperando, abracei minha mãe. Eu fedia muito! Entrei no carro e fui pra casa. Assim que cheguei em casa, sem perceber, fiquei no canto um bom tempo com a mão pra trás e um olhar de medo. Ali minha mãe notou que eu já não era mais o mesmo de antes. Eu chorei muito. Naquele dia, no banho, eu chorei como nunca na minha vida.

    Onze meses depois, fui para a audiência onde fui inocentado por falta de provas. O tempo todo a mídia nos tratou como como culpados por uma briga generalizada que nunca existiu. Abordaram nosso ônibus, descemos, foi quando a polícia atacou a gente com bomba e bala de borracha.

    Logo depois da confusão causada pelo despreparo policial, prenderam todos os torcedores que estavam ao redor da confusão. Detidos e de cabeça baixa. Quando demos conta, chegou um camburão cheio de pau e pedra. Jogaram tudo na nossa frente e foi assim que o resto aconteceu.

    Ou seja, todo esse trauma que passei foi exatamente por nada.

    A única coisa que eu quero com isso é perguntar, com toda sinceridade: vidas pretas importam? Então vamos começar salvando nossas crianças que estão sendo vítimas disso diariamente e inclusive agora devem estar sofrendo algum tipo de violência.

    Não adianta reclamar da violência deles nas ruas se eles são tratados assim pela sociedade e pelo Estado. Não julguem. Deem alternativas. A minha diferença para os garotos que estavam lá é que eu tive quem correr por mim. Eles não têm. Vidas negras importam? Então vamos começar a lutar verdadeiramente por elas.

    Outro lado

    A Ponte procurou a assessoria de imprensa do Degase e elencou as denúncias feitas pelo egresso do sistema socioeducativo. As perguntas não foram respondidas e a seguinte nota foi enviada por e-mail:

    “O Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) é um órgão vinculado à Secretaria de Estado de Educação (Seeduc) e tem a responsabilidade de promover Socioeducação no Estado do Rio de Janeiro, favorecendo a formação de pessoas autônomas, cidadãos solidários e profissionais competentes, possibilitando a construção de projetos de vida e a convivência familiar e comunitária. Criado pelo Decreto nº 18.493, de 26/01/93, o Degase é responsável pela execução das medidas socioeducativas, preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aplicadas pelo Poder Judiciário aos jovens em conflito com a lei.
    Em casos de reclamações, denúncias ou sugestões, os parentes ou responsáveis dos socioeducandos podem entrar em contato com a ouvidoria do departamento pelo e-mail [email protected], ir pessoalmente à sala da ouvidoria, na Rua Taifeiro Osmar de Moraes, 111, Galeão, Ilha do Governador, ou ligar para o  telefone 2334-6674″.

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