Após reportagem da Ponte, Justiça liberta jovem negro acusado de furto

    Testemunha branca recuou em reconhecimento, considerando Rafael Ribeiro “mais gordo” do que o verdadeiro ladrão

    Rafael Ribeiro Santana está preso desde julho por um crime que afirma não ter cometido | Foto: Arquivo pessoal

    O ajudante Rafael Ribeiro Santana, 27 anos, responderá em liberdade à acusação de ter furtado o celular de uma garota de 10 anos no dia 17 de junho de 2019, no Parque da Independência, que fica no bairro do Ipiranga, na zona sul da cidade de São Paulo. A mãe da vítima o reconheceu sem sombra de dúvidas em um primeiro momento e agora o considera “mais gordo” do que o suspeito, ainda que as características sejam as mesmas. A Justiça considerou que não havia elementos para ele seguir preso enquanto o processo ocorre. A advogada do jovem usou reportagem da Ponte nos autos da defesa.

    A audiência de instrução (responsável por coletar provas para o processo, como ouvir depoimentos de vítimas, testemunhas e dos suspeitos) aconteceu na tarde desta quinta-feira (12/12) na 13ª Vara Criminal do Fórum Criminal da Barra Funda, na zona oeste da cidade de São Paulo, às 16h. Anteriormente, no dia 3 de dezembro, a mulher fez um reconhecimento em São José do Rio Preto, onde mora, e apontou que Rafael tinha, sim, o perfil igual ao do assaltante. No entanto, considerou que ele estava “mais gordo” do que na época.

    A juíza Erika Fernandes Fortes considerou que havia expirado o prazo para Rafael seguir preso. Assim, ele responderá em liberdade até a próxima audiência, em abril de 2020 – sem dia específico -, e sairá do CDP (Centro de Detenção Provisória) 2 de Guarulhos.

    A esposa, Beatriz (de vermelho) abraça a advogada Caroline enquanto o advogado Lucas (gravata vermelha) explica os próximos passos à irmã, Daiane | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Segundo Caroline dos Santos Silva, advogada da família, a mãe da vítima, que antes cravava que Rafael é o autor do roubo, mudou a versão no reconhecimento no início deste mês. A mulher reconhece que algumas características físicas de Rafael, como estatura e cor, mas alega que a pessoa que pegou o celular de sua filha era “menos magro”.

    Rafael responderá em liberdade, também, pois houve um problema técnico com o áudio das testemunhas de defesa que foi perdido, por isso a prova terá que ser coletada novamente. “Como ele já estava preso há muito tempo, o prazo da instrução já estava encerrado. Com o pedido da defesa, a juíza achou melhor ele responder em liberdade. A prova dos áudios será refeita em abril de 2020”, explica a advogada.

    A Ponte conversou com a mulher, mãe da menina vítima do furto, que se limitou a confirmar que “fez o reconhecimento” e encaminhou o telefone de seu advogado, Cleber Puglia Gomes. O defensor disse que a mulher foi intimada a comparecer em audiência na cidade de Rio Preto para prestar esclarecimentos “de uma situação que ela foi vítima em São Paulo”. “Ela contou a história novamente, ficou em uma parede de vidro para fazer o reconhecimento do cidadão e disse que as características são iguais, ponto. Disse que hoje a pessoa está um pouco mais gorda”, relata Gomes.

    O advogado fez questão de dizer que a mulher “não está acusando ele [Rafael] de nada, ela foi vítima e só reconheceu”. “A demora dele ganhar a liberdade, de ganhar tudo, é um problema dele com o Ministério Público, não é ela que está segurando ele preso, ela não tem poder para isso”, afirma.

    Família comemora

    Beatriz Andrade, 19 anos, companheira de Rafael, deixou o Fórum da Barra Funda alegre com a decisão da juíza: “Eu tô sem palavras, é maravilhoso saber que ele vai sair”, conta. Beatriz também explica que os quase cinco meses longe de Rafael foram muito difíceis. “Todos os dias o nosso filho acorda chamando por ele e não tem como explicar por que ele não está aqui, né”, comenta.

    Daiane Ribeiro Santana, 32 anos, irmã mais velha de Rafael, desabafou em choro quando ouviu a notícia. “Eu não tenho como agradecer todo mundo que nos ajudou. Agradecer à Caroline, ao Lucas [outro advogado que defendeu Rafael]” disse à Ponte. Agora é só aguardar ele, pra abraçar e cuidar ele. Estou muito feliz que ele vai passar o Natal em casa”, desabafa.

    O filho do casal, Bryan, tem 2 anos. Passou o dia dos pais e o aniversário longe do pai. No Fórum, durante a espera de mais de 3 horas da família pela decisão da juíza, o menino ficou correndo e tirando risadas todos que ali passavam. “Amanhã você vai ver seu pai!”, disse Daiane ao sobrinho.

    Relembre o caso

    Rafael trabalhava no dia 17 de junho para um de seus chefes, que tem uma barraca de cachorro-quente no parque, quando foi apontado como suspeito de furtar o celular. Desde o primeiro momento Rafael e outras testemunhas defendem sua inocência.

    Vídeos mostram quando ele está em um supermercado na hora em que o crime teria acontecido, enquanto imagens registram a abordagem da vítima e de um PM À paisana, Paulo Eduardo Lombardi, namorado da vítima do crime, que trabalha no 17º BPM/I (Batalhão de Polícia Militar do Interior), localizado na cidade de São José do Rio Preto, interior do estado.

    O ajudante foi contido e acusado por Lombardi, que chega o chamar de “lixo” e “vagabundo”, além de ter questionado Rafael se ele “sabia como o sistema funciona”. Foi o policial à paisana que relatou o acontecido para os PM que chegaram para atender a ocorrência.

    Desde julho, Rafael passou por diversos presídios. Ficou no CDP (Centro de Detenção Provisória) 2 de Guarulhos até novembro, quando foi transferido para o Centro de Progressão Penitenciária de São José do Rio Preto, no interior do estado de São Paulo e, na última terça-feira (10/12) foi encaminhado para a Penitenciária de Mirandópolis II, também no interior, de onde saiu para ir ao Fórum da Barra Funda para a audiência de instrução do caso.

    A versão dos familiares e da defesa do jovem é de que há duas provas que podem ajudar a provar sua inocência porque o colocam distante do parque no momento exato do furto: uma nota fiscal e vídeos de câmeras de segurança. Um vídeo do circuito interno de um supermercado da região, cerca de 1,6 quilômetro de distância do parque, mostra que Rafael estava na fila do caixa por volta das 14h25 daquele dia.

    As cenas mostram Rafael chegando no estabelecimento de bicicleta às 14h25, do dia 17 de julho. Dois minutos depois, ele entra na loja, vai para o setor onde ficam as salsichas e, às 14h29, está no caixa com um saco grande do produto. Paga os R$ 21,87 que custam a salsicha mais R$ 0,20 cobrados por duas sacolinhas nas quais leva o produto, um reforço para que os mantimentos não caiam enquanto ele pedala.

    Um minuto mais tarde, o jovem negro aparece em cima da bike e toma o mesmo destino do qual veio: o do parque da Independência, trajeto feito em 8 minutos em bicicleta. Às 14h34, o celular de uma criança de 10 anos era roubado no parque.

    Lombardi é cabo da polícia em São José do Rio Preto | Foto: Reprodução/Facebook

    Outro vídeo, esse gravado por um amigo de Rafael, mostra o momento em que ele é abordado por um casal, que imediatamente o acusa de ser o autor do furto. Nas imagens, é possível ver Rafael e outras testemunhas falando que ele estava no supermercado para o seu chefe, que é dono de um carrinho de cachorro-quente.

    “Você está me acusando de uma coisa que eu não fiz”, diz Rafael no vídeo, sendo rebatido por um homem que acompanha a mãe da criança que teve o celular roubado: “espera a viatura chegar”. Na sequência é possível ver pessoas se mobilizando para chamar testemunhas que garantam não ter sido o jovem que realizou o furto. Quando Rafael tenta ir embora, a mesma vítima impede e diz: “você vai ficar aqui comigo”.

    A Ponte apurou que o homem que aparece no vídeo e que impede que Rafael vá embora é Paulo Eduardo Lombardi, um cabo da PM paulista. Ele trabalha 17º BPM/I (Batalhão de Polícia Militar do Interior), localizado na cidade de São José do Rio Preto, interior do estado.

    O registro, feito por um amigo de Rafael que percebeu as acusações, mostra o PM xingando Rafael de “lixo” e “vagabundo”. As pessoas próximas davam explicações sobre o que havia ocorrido, buscando defender o ajudante. Quando os policiais militares, chamados pelo casal, se aproximam, é o cabo Lombardi quem vai falar com eles e apontar Rafael como o autor do crime.

    No topo da nota fiscal, é possível confirmar o dia e horário que Rafael passou no caixa | Foto: arquivo pessoal

    Apesar de tudo isso, os PMs Rodrigo Gomes Feitoza e Thiago Dutra Costa, que conduziram a ocorrência, e o delegado Luiz Patrício Nascimento, do 17º DP (Ipiranga), não incluíram o nome do policial Lombardi no Boletim de Ocorrência, que é o registro oficial do caso. É como se Paulo não existisse durante a ação que culminou na prisão de Rafael. Nascimento registrou a ocorrência como roubo (art. 157).

    A reportagem conversou com a vítima do roubo, mãe de uma criança de 10 anos que teve o celular roubado e companheira do PM Lombardi, em 10 de novembro de 2019. Ela disse estar abalada com a situação, e contou que o compartilhamento do vídeo em que Rafael é pressionado, antes da abordagem, gerou ameaças à sua família. Como ela não é uma servidora pública e sua condição no processo é de vítima, a Ponte atendeu ao seu pedido de não expor sua identidade.

    A mulher nega estar acusando a pessoa errada. “Tenho plena certeza, eu não sou criança, não sou moleque. Está tendo uma inversão de valores. Eu não seria uma inconsequente de acusar uma pessoa da qual eu não teria certeza. Eu tenho família, tenho três filhos. Não cabe à mim prender, eu relatei o que aconteceu. É a polícia que prende, o delegado que prende e quem será responsável por isso será a Justiça. E seja o que Deus quiser”, comenta.

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