Vila Sahy: após tragédia, luto se mistura a decepção com poder público

Moradores de comunidade em São Sebastião (SP) criticam abrigo provisório instalado pelo governo a 40 quilômetros de onde moram: “ninguém sabe quantas faxinas uma moradora teve que fazer para construir o cantinho dela”

Mais de um mês após uma chuva torrencial ter provocado mais de 60 mortes na Vila Sahy, em São Sebastião, litoral norte de São Paulo, o luto pelas vidas perdidas se mistura à decepção com o poder público, em meio às marcas de lama ressecada e aos destroços das casas devastadas pelos 627 milímetros de chuva que caíram sobre o bairro, ao longo de 24 horas, entre 18 e 19 de fevereiro.

“Ninguém escuta a comunidade. É tudo imposto”, lamenta o mestre de capoeira e comerciante Valdemir Santos Cruz, de 46 anos, conhecido como Val, que vive  há três décadas no local.

Trata-se de uma solução que, segundo os moradores ouvidos pela Ponte, desconsidera a realidade e os vínculos construídos na comunidade ao longo de vidas inteiras. “Todo mundo que está aqui lutou bastante para ter o que tem, não dá pra sair assim. É como um cara estava dizendo lá na padaria, sobre a casa de uma mulher: ‘ninguém sabe quantas faxinas ela teve que fazer para construir o cantinho dela’”, desabafa Val.

Destruição em casa na Vila Sahy | Foto: Leandro Barbosa/Ponte Jornalismo

O mestre de capoeira lembra que o poder público cruzou os braços diante da realidade da Vila Sahy até a tragédia acontecer. “Está aí a Prefeitura e mais um tanto de órgão de governo que só sabe dizer que a gente tem que sair daqui. Mas a comunidade não se levantou agora. Não foi do dia pra noite que tudo isso foi construído. Estamos aqui há muito tempo. Por que deixaram construir [as casas]? Por que não vieram antes aqui?”, questiona.

Sair da comunidade significa deixar muitas coisas para trás. Para outro morador, Leandro dos Santos, 32 anos, autônomo, a mudança de vida será drástica, uma vez que a população está sendo obrigada a sair de um lugar onde estão todos os seus vínculos, para viver distante daquele “que ela escolheu para viver e chamar de seu”.

“O pessoal trabalha muito tempo, batalha, para conseguir sua casa. E do nada você se vê obrigado a ter que ir para Bertioga. Um lugar totalmente diferente daqui”, afirma Leandro. Para ele, a qualidade de vida das pessoas será prejudicada. “Hoje nosso trabalho é próximo da comunidade. Já em Bertioga, não. Se a pessoa ficar morando lá e trabalhando aqui, ela vai ter que sair muito cedo de casa e pegar um ou dois ônibus, dependendo para onde vai. Se perder a condução, vai perder o dia de trabalho ou chegar muito atrasada. A gente perde a calmaria e passa a viver de forma tumultuada”, compara Leandro.

A gestão do prefeito Felipe Augusto (PSDB) afirmou em nota que a hospedagem em Bertioga, “tomada em caráter emergencial e que deve beneficiar cerca de 1.200 pessoas”, é uma solução provisória enquanto as famílias desabrigadas aguardam a construção de mais de 900 imóveis, entre casas e prédios de até quatro andares, nos bairros da Topolândia e Vila Sahy, como parte de uma parceria da Prefeitura com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), do governo estadual, e do programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal. “Segundo a gestão estadual, as primeiras unidades habitacionais devem ficar prontas em até 150 dias”, diz a nota.

Moradores fazem mutirão para a retirada dos objetos de casas que serão demolidas | Foto: Leandro Barbosa/Ponte Jornalismo

Uma das pessoas afetadas é a monitora infantil Monique Vieira Lima Santos, 22 anos. Ela estava em casa na noite de sábado, em 18 de fevereiro, quando a energia elétrica na Rua 0 acabou. Ela decidiu subir à Rua 1, no alto da Vila Sahy, para ir à casa de sua mãe. Juntou o que precisava, pegou a filha Melina, de 8 meses, no colo e seguiu da entrada da vila para a parte alta, sem ter ideia de que aquela seria a noite mais difícil da sua vida. Às 21h, seu marido Jonatas Davi já havia saído do trabalho. Contudo, Jonatas não subiu o morro. Naquele momento, as casas já estavam começando a se inundar e ele decidiu ficar para ajudar os vizinhos a arrastarem os móveis e colocarem o que podiam no alto.

As horas se passaram. Às 4h, o celular de Monique tocou. Era Jonatas avisando que o morro havia desmoronado. Monique pediu ao marido que a encontrasse. Acordou a sua mãe e filha. Da janela do quarto em que elas estavam dormindo, era possível ver um rio de lama, com toda a destruição que levava. Ela saiu depressa da casa, com a menina no colo, e desceu a rua determinada a encontrar o marido. Mas entre ela e ele já havia uma correnteza, com águas que ultrapassavam a cintura.

Foi quando Monique avistou  o pedreiro Élio dos Santos Silva, 53 anos, vizinho de sua mãe, que se empenhava em ajudar a família dele a atravessar para um lugar seguro. Foi ele quem salvou Monique e Melina. “Eu pedi ajuda para o Élio. Ele pegou a minha filha e eu desci. Eu andei até determinado ponto, quando me dei conta, ele não estava atrás de mim. Então, eu voltei. Nessa altura, já tinha gente gritando, carro descendo. Foi uma loucura”, conta Monique. 

Monique e Elio no ponto em que se encontraram no dia da tragédia | Foto: Leandro Barbosa/Ponte Jornalismo

A rua que Monique desceu era uma encruzilhada. Enquanto ela foi reto, Élio entrou à esquerda, onde o rio de lama seguia o seu fluxo. Em busca da filha, ela entrou na correnteza que já começa a avançar com mais força, porque o desmoronamento já alcançava a parte baixa da comunidade. “O Élio gritava: eu tô com a sua filha, sai daí! Ele tinha dimensão do que estava vindo atrás de mim. E sabia do risco que se aproximava. Eu consegui chegar perto deles e dei conta de entrar numa casa. Ele conseguiu entregar a minha filha, mas não conseguiu entrar lá comigo. Da sacada daquela casa, eu vi a luta dele para sair daquele lugar ”, recorda Monique. Pela manhã, às 8h, ela reencontrou o marido e, mais tarde, a sua mãe e demais familiares.

O drama que Monique e Élio viveram foi previsto, de certa forma, pelos promotores Alfredo Luis Portes e Tadeu Salgado Ivahy, do Ministério Público Estadual de São Paulo. Em uma ação de 2021, eles apontaram que a ocupação da Vila Sahy, na configuração em estava, seria “uma verdadeira tragédia anunciada”. A Prefeitura de São Sebastião foi condenada, em fevereiro de 2021, em primeira instância, por “clara omissão do ente público”. Segundo os autos, o órgão não fez nada para evitar o crescimento populacional na Vila Sahy, assim como não agiu para “solucionar as desconformidades” do território. 

Esquina em que Élio e Monique se separaram, na Vila Sahy | Leandro Barbosa/Ponte Jornalismo

Contudo, o descaso não vem apenas de 2021 pra cá. Há 9 anos, o projeto de regularização fundiária da prefeitura já admitia a “necessidade de remoção das moradias e seus ocupantes, que se encontram na área de risco físico alta, por conta da declividade e solo e processo erosivo avançado”. Contudo, nada aconteceu. De acordo com a assessoria de imprensa do Ministério Público, o Grupo de Atuação Especial de Proteção ao Meio Ambiente (Gaema) “ajuizou um total de 42 ações civis públicas com o objetivo de decretar intervenções em 52 áreas com deficiências de infraestrutura e riscos à população no município de São Sebastião”. Mesmo assim, nenhuma medida foi tomada. 

Logo após a tragédia, em coletiva de imprensa, o prefeito da cidade, Felipe Augusto (PSDB), alegou que a questão de moradias em áreas de risco “é um problema que vem de décadas”. Segundo o prefeito, isso “não se resume apenas ao governo, mas também à sociedade”. Augusto também afirmou que em sua gestão foram realizadas “todas as providências necessárias, com programas de remoção, de atendimento e monitoramento das encostas”.

Um estudo do poder municipal indicou que, após as chuvas, 500 moradias precisaram ser interditadas, algumas temporariamente, parte em caráter definitivo e outras deveriam permanecer sob monitoramento. Na semana passada, um boletim da Prefeitura anunciou que 270 famílias poderiam voltar às suas casas. “Na Vila Sahy, o epicentro da tragédia, foram identificadas pelo menos 70 residências com recomendação de interdição definitiva, sendo que 12 dessas já foram desmobilizadas pela prefeitura. Outras 145 interdições temporárias e 70 monitoradas foram registradas no local”, afirma o documento.

Cena de horror

Os traumas da tragédia ainda estão presentes. “A cena era de horror. As pessoas tentavam correr enquanto o rio de lama as arrastava. E a gente não podia sair da vila. De um lado tinha o morro desabando. Do outro, tudo estava alagado. As ruas viraram rio”, conta o mestre de capoeira Val, que esteve na linha de frente no resgate de corpos e sobreviventes.

Val construiu sua casa logo que a Vila Sahy começou a se levantar às margens da rodovia Rio-Santos (SP-55), na década de 90, na Barra do Sahy, entre os bairros Juquehy e Praia da Baleia. Foi na comunidade que ele também abriu uma padaria. O capoeirista veio da Bahia. Como ele, são nordestinos que formam a maioria das 779 famílias que vivem nas 648 residências que constituem o bairro, segundo consta em uma ação do Ministério Público, que pede a regularização fundiária do lugar.

Deslizamento de morro na Vila Sahy | Foto: Felipe Scapino

Embora esteja ali há décadas, foi em 19 de fevereiro que Val conseguiu entender, de fato, o significado de viver com aquelas pessoas. “Nas primeiras 24 horas a gente tava praticamente sozinho na linha de frente. Neste dia ficou claro o sentido de comunidade. Se não fosse nós, moradores, o número de mortos seria bem maior. A nossa mobilização foi fundamental para salvar pessoas. Eram homens e mulheres que, por horas e horas, mergulharam na lama”, conta.Val não teve a sua casa destruída, mas viu os imóveis de seus vizinhos sendo engolidos pela terra e destruídos pelo rio de lama que se formou, quando a água da chuva em contato com o solo culminou no desmoronamento da serra que rodeia a comunidade, que ocupa 11 hectares à beira do Parque Estadual da Serra do Mar.

Quando a Vila Sahy começou a se levantar, em 1987, seu nome era outro: Vila Baiana, em referência à origem dos migrantes que se mudaram para o litoral paulista em busca de trabalho. Do bairro, onde os sotaques nordestinos se misturam, é que sai a mão de obra que garante a manutenção das mansões construídas na Barra do Sahy. “É aqui que muito bacana vem procurar trabalhador. Nessa Vila Sahy, você encontra de tudo: pedreiro, doméstica, mecânico, padeiro, encanador. Eles param o carro ali e perguntam: sabe onde encontro tal profissional? E aí o povo indica”, explica Val.

É o caso de Élio dos Santos Silva. Vindo de Pernambuco, foi trabalhando na Barra do Sahy que conseguiu fazer um pé de meia e garantiu seu lar, que agora está interditado pela CDHU, por estar em área de risco. “Perdi tudo, mas agradeço por estar vivo. Agora é começar tudo do zero outra vez!”, lamenta. De fevereiro de 2023, restam as lembranças do dia mais angustiante da sua vida. Assim como Val, o pedreiro também ajudou no resgate de moradores. Antes disso, porém, foi ele quem quase morreu naquela noite.

Esquina em que Élio e Monique se separaram, na Vila Sahy | Leandro Barbosa/Ponte Jornalismo

O rio de lama já trazia consigo árvores, carros, restos de casa e gente. E foi nessa correnteza que Élio lutou por sua vida, enquanto ouvia seu filho gritar: “pai, sai daí, pai!”, da sacada de uma casa. “Eu fui pra perto de um muro e me agarrei. Com esforço eu consegui subir. Fui andando, pisando em uns carros que estavam na rua. E me salvei”, conta. “Eu tive sorte, porque o rio derrubou o poste, mas ele ficou escorado numa casa. E o fio não alcançou a água. Se isso tivesse acontecido, eu acho que eu ia morrer”, reflete Élio. 

Diante de tantas perdas e traumas que restaram, Val acredita que não vai ser fácil vislumbrar um futuro na Vila Sahy. “O povo viu muita coisa. É muita imagem que vem na cabeça. Muita gente que morreu. Perdemos amigos. Eu mesmo: a maior parte da minha clientela era do alto do morro. Agora não tem mais ninguém. É muito difícil”. E conclui: “Por isso as pessoas precisam se agarrar à esperança”.

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