Juíza Karla Aveline de Oliveira, do Rio Grande do Sul, negou acusação por tráfico de drogas do Ministério Público contra adolescente e iniciou sentença com versos; “descobri que a minha palavra e a minha poesia têm utilidade”, diz o “poeta das periferias”
A juíza Karla Aveline de Oliveira, da 4ª Vara do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre (RS), se inspirou nas palavras do poeta Sergio Vaz para julgar uma representação do Ministério Público (MP) contra um jovem acusado de tráfico de drogas. Na sentença, em que considera o pedido improcedente, a magistrada usou a poesia “A Vida É Loka” para expor como a desigualdade social, a violência e o desamparo do Estado tornam crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade em alvos de organizações criminosas e do trabalho infantil.
De acordo com o portal Migalhas, o MP havia se manifestado contra decisões judiciais que afastariam a responsabilização socioeducativa, “ainda que entenda que se deva combater toda e qualquer forma de trabalho infantil”. Na justificativa, a magistrada ressalta que, desde que passou a integrar o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sempre se questiona qual a sua contribuição “para a permanência das desigualdades estruturais” e de que modo pode se apropriar “de conhecimentos e dar a esses a função social de transformação”.
Aveline também ressalva que o tráfico de drogas atravessa o caminho dos jovens devido à realidade em que estão submetidos: “para uma parcela dos jovens que estão à margem desse sistema, sem acesso à educação de qualidade, moradia, saneamento, renda, direito ao trabalho, trabalhar para o tráfico traduz-se em uma forma (talvez a única) de sair do anonimato, desse lugar estéril para concretizar o acesso a alguns desses direitos, como trabalho, saúde e alimentação”.
Lição de humanidade
A notícia pegou Sergio Vaz de surpresa. Em entrevista à Ponte, o poeta conta que ficou feliz de ver que seus versos sobre educação e juventude negra e periférica – tema da poesia usada na sentença – estejam reverberando no “juridiquês”. “A poesia salva e liberta. É esperança de que tem gente boa em todos os lugares. É um oásis no meio de tanto ódio, vingança e uma juíza que tem um olhar humano, para além das leis severas e injustas para o nosso povo”, considera.
“Eu tô muito feliz porque, a princípio, descobri que a minha palavra e a minha poesia tem utilidade”, celebra. Vivendo em Taboão da Serra (SP), Vaz se inspira nas ruas e nos gestos de humanidade para escrever e agir. Em 2001, fundou a Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), para apoiar a produção literária e cultural dos extremos invisíveis de São Paulo. “A Vida É Loka” faz parte do livro Flores de Alvenaria, uma das coletâneas do “poeta das periferias”.
No projeto Poesia Contra Violência, Vaz promove rodas de conversa, recitais e oficinas há mais de 10 anos em escolas públicas. “Eu lembro que uma vez, um jovem do noturno do EJA [Educação de Jovens e Adultos] me fez um comentário sobre vida louca falando ‘pô, vida louca sou eu que trabalho, estudo, vendo o trampo, final de semana ajudo meu pai’, aquela coisa toda. E eu falei para ele que ‘mano, tem que ser vida louca pra estudar, né’, e a gente entende por que as pessoas desistem por causa da pressão e tudo o que nos é contra”, lembra o poeta.
“Fiquei pensando que deve estar cheio desses vidas ‘lokas’ nas escolas, e a gente está sempre falando dos meninos que desistem e a gente esquece desses que insistem, moram na quebrada, se arriscam para chegar meia-noite em casa”, completa. Vaz acredita que o futuro para esses jovens será difícil, diante de tantas dificuldades impostas pela pandemia e o descaso do governo com a educação pública.
“A gente está vendo um número grande de evasão escolar, vemos um Ministro da Educação que diz que a universidade é para poucos. Vamos ter que lutar mais do que a gente sempre lutou. Mas, se a gente não abraçar a educação pública como ferramenta e escola como melhor lugar para se estar na periferia, a valorização e proteção dos professores, nós abandonamos a escola pública”, ressalta.
Leia o poema “A Vida É Loka” na íntegra:
Esses dias tinha um moleque na quebrada com uma arma de quase 400 páginas na mão.
Uma minas cheirando prosa, uns acendendo poesia.
Um cara sem nike no pé indo para o trampo com o zóio vermelho de tanto ler no ônibus.
Uns tiozinho e umas tiazinha no sarau enchendo a cara de poemas. Depois saíram vomitando versos na calçada.
O tráfico de informação não para, uns estão saindo algemado aos diplomas depois de experimentarem umas pílulas de sabedoria. As famílias, coniventes, estão em êxtase.
Esses vidas mansas estão esvaziando as cadeias e desempregando os Datenas.
A Vida não é mesmo loka?