* Originalmente publicada na Revista Trip
Punir o criminoso em defesa da sociedade e do bem comum. É para isso que as prisões são feitas, com a civilização dando um passo adiante em relação às punições via tortura e morte dos tempos medievais. Mas basta olhar as celas superlotadas de algum centro de detenção provisória de São Paulo, como a da foto acima, para perceber que as prisões continuam dignas da idade das trevas e podem produzir efeitos contrários ao que delas se espera.
Em maio, para conviver em um espaço feito para 12 pessoas na Vila Independência, 54 detentos precisavam se virar para dormir, compartilhar o mesmo banheiro e guardar seus pertences. A solução veio dos próprios presos, que montaram uma intrincada estrutura semelhante a uma teia de aranha, com redes penduradas por todos os lados, aproveitando o vazio na parte superior da cela.
Funcionários e fiscais da sociedade civil que conhecem o CDP falam sobre o resultado, que se repete em outras unidades: lideranças prisionais, muitas delas ainda ligadas ao crime organizado, se fortalecem porque conseguem estabelecer uma ordem e normas de convívio em meio ao caos. Ao mesmo tempo, as autoridades penitenciárias se fragilizam ao serem associadas ao descaso e a violações das leis.
“Coloque alguém 24 horas por dia durante anos numa cela amontoada. O presídio é caro e vai profissionalizar o cara para o crime. O sujeito lá dentro fica revoltado e alijado física e espiritualmente. Quanto mais ele ficar preso, mais medo as pessoas vão ter dele”, diz o padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, no documentário Sem pena, de Eugenio Puppo, sobre o sistema carcerário no Brasil.
Há séculos as prisões são apontadas como a forma mais adequada – ou talvez a menos pior – para controlar o crime e fazer justiça. Seria uma espécie de mal necessário, segundo seus defensores. Só que o crescimento massivo do aprisionamento no Brasil e no mundo tem colocado essa solução em xeque.
As prisões se parecem cada vez mais com um remédio muito forte, que combate a doença, mas que também envenena e mata o paciente. “Foi a prisão que articulou os criminosos em São Paulo e permitiu que o estado tivesse a rede criminal mais organizada do Brasil, o PCC. Não é à toa que no estado com maior número de presos a criminalidade alcançou um grau de organização como em nenhum outro”, diz a professora Camila Nunes Dias, da Universidade Federal do ABC, que estuda a facção.
Ostentação
O problema não é apenas nacional. O impasse se repete ao redor do mundo, onde as gangues se fortalecem nos presídios e colocam o Estado diante de quadrilhas mais sofisticadas, que costuram parcerias, criam formas eficientes de lavar dinheiro e têm mais condições para corromper autoridades.
“Diversos gestores prisionais têm cedido autoridade parcial a grupos de internos. De Los Angeles a El Paso, nos Estados Unidos, passando por El Salvador e Brasil, extensas e lucrativas redes de traficantes estão se organizando a partir das prisões”, diz o professor Benjamin Lessing, da Universidade de Chicago, que tem feito estudos comparativos sobre o efeito do aprisionamento nos Estados Unidos e na América Latina.
Nos dias de hoje, o crime é uma atividade em plena expansão no Brasil, empregando jovens propensos a apostar a vida e a liberdade em troca dos símbolos de ostentação, independência e hipermasculinidade da carreira criminal. Ao mesmo tempo, as prisões não parecem ser suficientes para estancar o problema da criminalidade. Em 2013, foram registrados no Brasil 1,18 milhão de roubos, o que representa uma taxa de 590 por 100 mil habitantes. É um número que cresceu na última década – em 2001, eram 400 por 100 mil habitantes. A taxa fica abaixo da do México e da Argentina, mas bem acima de países desenvolvidos, como Estados Unidos e Coreia do Sul, com oito roubos por 100 mil habitantes.
O mercado ilegal das drogas ainda parece mais promissor. Em 2012, 3 milhões de adultos e 478 mil adolescentes haviam usado maconha ao longo de 12 meses. No caso da cocaína, o uso é de 2 milhões de adultos e 255 mil adolescentes. O crack havia sido consumido por 800 mil pessoas.
O aprisionamento também não para de crescer. Entre 1990 e 2014, o aumento do total de presos no Brasil foi de 575%. O país passou de 90 mil para 607,7 mil presos. Tanto em termos absolutos como relativos, o Brasil é o quarto país que mais aprisiona no mundo. As instituições brasileiras ainda parecem apostar fichas excessivas nas prisões, como se funcionassem como universos paralelos capazes de eliminar o problema num passe de mágica.
Rebelião e barbárie
Ocorre que os mundos do lado de dentro e de fora estão cada vez mais imbricados. A ponte foi feita pelos celulares, que se popularizaram a partir dos anos 2000. Em 2012, ao menos 34.945 aparelhos foram apreendidos em presídios no Brasil. A raiva nas celas transpassou as grades e se disseminou pelo país, principalmente entre jovens e homens de bairros pobres, revoltados com a violência policial e com a discriminação. São sentimentos que se misturam em um caldeirão de ódio.
“Os heróis são os bandidos! Os que foram pintados como monstros são os reféns de crises humanitárias pré-fabricadas por elites sanguessugas”, escreve o rapper Eduardo, que foi líder do Facção Central, uma das mais importantes bandas de rap brasileiras, em seu livro A guerra não declarada na visão de um favelado, em que trata os representantes das elites como “Homo Money”, cuja ganância provoca injustiças e estimula a guerra.
Dentro dos presídios, como resultado da revolta, as rebeliões se espalharam por todo o território nacional, produzindo cenas de barbárie. Em dezembro de 2013, três detentos tiveram as cabeças decepadas no Presídio de Pedrinhas, relembrando algumas das cenas mais macabras protagonizadas pelo PCC em 2005, em São Paulo, quando cinco cabeças foram cortadas e uma delas usada como bola de futebol. Em agosto passado, dois presos foram decapitados em Cascavel, no Paraná, numa espécie de ritual macabro que amedronta rivais e chama a atenção da imprensa.
MBA do crime
Em cada uma das “cabeças vazias” confinadas e sem nada para fazer que superpovoam as prisões, há uma “oficina do diabo” pronta para funcionar. A enorme variedade de trotes telefônicos passados pelos presos, simulando sequestros, entre outras modalidades, é apenas uma mostra de como a criatividade pode ser usada em benefício do lado negro da força.
Os presos transformam pátios e celas em “coworkings” do crime, onde homens se articulam e ampliam o “networking”. A droga é a principal commodity. As prisões proporcionam novos ensinamentos e status, além do sofrimento, funcionando como uma espécie de MBA do crime, que garante upgrade no currículo.
A comercialização de drogas é possível por causa do celular. O tráfico já é o crime que mais aprisiona no Brasil, sendo responsável por 27% dos presos. O crescimento do crack e a venda da droga em pequenas biqueiras de periferias brasileiras deslancharam principalmente depois que o PCC assumiu o atacado da mercadoria, via contatos no Paraguai e na Bolívia, em meados dos anos 2000.
Os atacadistas do crime paulista passaram a costurar parcerias que ampliaram o comércio varejista brasileiro em estados onde o crack não chegava. “O crime ajuda o crime” é um dos lemas do PCC, frase dita por Gegê do Mangue, uma das lideranças paulistas da facção grampeadas na investigação da Justiça, quando negociava com Nem, que era o comandante na Rocinha.
Sucursais do inferno
A trégua feita pelo crime do Rio de Janeiro e de São Paulo permitiu a entrada do crack nos morros fluminenses, depois de longo período proibido. Nos estados do Norte e do Nordeste, a expansão do crack produziu novas rivalidades e conflitos entre concorrentes pelos lucrativos mercados. É o caso dos grupos Okaida e Estados Unidos, na Paraíba, e do Bonde dos 40 e do Primeiro Comando Maranhense, no Maranhão, que passaram a brigar dentro e fora das prisões, mesmo quando ambos compravam do PCC.
É nesse beco perigoso e sem saída que as instituições de segurança pública e de Justiça precisam pensar políticas públicas para lidar com o crime. Por enquanto, o Brasil segue com sua fé inabalável na expansão das prisões, mesmo quando a solução já vem sendo revista globalmente. Entre 2008 e 2014, os três países que mais prendem no mundo reduziram sua população prisional. Caiu nos EUA (8%), na China (9%) e na Rússia (24%). No Brasil, cresceu 36%.
“Jovens pobres, muitos deles negros, sem vínculo com facções, são capturados em flagrante para as sucursais do inferno, fazendo-os conviver com o crime organizado. O governo gasta R$ 1.500 por mês com cada preso para piorar as pessoas”, completa o antropólogo Luiz Eduardo Soares, no filme Sem pena.
A situação tende a piorar caso o projeto de emenda constitucional que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos seja aprovado. Os jovens são os bodes expiatórios da vez diante da sensação de impotência e de medo. Um dos países que mais aprisionam no mundo em um sistema ineficiente, em vez de repensar o modelo de segurança, quer dobrar a aposta naquele que já se mostra um fracasso. Ao trancafiar uma fatia cada vez maior de sua população, é como se o Brasil insistisse em colocar mais matéria-prima na fábrica de produzir ódio. O produto dessa engrenagem azeitada com adolescentes em formação, inevitavelmente, deve se voltar contra a própria sociedade.
O dilema paralisa. Se correr, o bicho pega. Se ficar, o bicho come. O problema é que as autoridades insistem em alimentar o bicho que cresce e vai nos engolir. As soluções de curto e médio prazo pensadas por especialistas passam justamente pelo desencarceramento. O que não significa desistir da punição. Penas alternativas, que podem ser financeiras ou ligadas a prestações de serviço, podem ser mais eficazes e pedagógicas, desde que bem fiscalizadas.
Penas alternativas
“As penas alternativas trazem componentes de integração, possibilitam uma pena positiva para a sociedade, não retiram a pessoa do convívio e possibilitam à sociedade assumir sua parte ao ter que acolher e orientar a pessoa apenada. Tanto a pessoa como a sociedade passam por um processo que pode restaurar o convívio e a humanização de ambos”, afirma o ouvidor-geral da Defensoria Pública, Alderon Costa, que tem acompanhado penas alternativas cumpridas em albergues por moradores de rua.
Uma das políticas que avançam mais rapidamente em outros países é a que busca reservar as prisões para crimes violentos, o que exclui o tráfico de drogas. Ao contrário do ladrão, o traficante não obriga ninguém a fazer o que não quer. O comércio da maconha foi regulamentado em três estados norte-americanos – medida que reduz a violência provocada pela indústria ilegal. Também ganha espaço o debate sobre justiça restaurativa, que propõe um novo modelo em que ofensor e vítima cheguem a um acordo que repare o dano sofrido.
No longo prazo, o desafio é construir autoridades com legitimidade, que representem a defesa de leis e valores também compartilhados pelos cidadãos. É o que ocorre na Suécia, que fechou quatro prisões por falta de detentos em 2013. Quanto mais uma sociedade precisa de prisões e de polícias truculentas, mais profundos são seus problemas escondidos em um canto escuro, à espera de serem resolvidos.