Atila Roque*
A Justiça e o Estado devem garantir os direitos de todas as pessoas, sem qualquer exceção, inclusive daqueles que incorrem em crimes e/ou violam a lei. Isso é o que define o estado de direito no mundo moderno
No dia em que celebramos o Dia Internacional de Direitos Humanos algumas pessoas perguntam: “para quem?”. Durante muitos anos uma visão sensacionalista e demagógica, quase sempre à serviço de quem despreza os princípios consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, tem distorcido a luta daqueles que se levantam em defesa dos direitos humanos a uma caricatura simplista, mas bastante eficaz como propaganda da barbárie e da violência: são defensores de “bandidos”. Esquecem que a Justiça e o Estado devem garantir os direitos de todas as pessoas, sem qualquer exceção, inclusive daqueles que incorrem em crimes e/ou violam a lei. Isso é o que define o Estado de direito no mundo moderno.
Relativizar esse princípio básico leva ao arbítrio e a sociedade acaba por pagar um preço alto quando isso acontece, ainda que distribuído desigualmente. Esse é a lição que o Brasil ainda persiste em não aprender, embora tenhamos alcançado avanços importantes nos últimos trinta anos. O sistema de Justiça e segurança pública no Brasil tem sido historicamente marcado por uma distribuição seletiva da Justiça e da impunidade. Um sistema altamente ineficaz no combate à criminalidade, profundamente marcado pela violência policial e com um sistema prisional conhecido por suas condições medievais, como já disse o próprio Ministro da Justiça. Os números de homicídios no Brasil só confirmam este cenário: 56 mil pessoas foram assassinadas em 2012. Trinta mil eram jovens entre 15 e 29 anos de idade e 77% negros. O homicídio foi também a principal causa da morte entre adolescentes com idade entre 12 e 18 anos (45,2%), em cidades com mais de cem mil habitantes. São números equivalentes à soma de mortos em vários conflitos de guerra. A taxa de homicídios no Brasil se encontra entre as maiores do mundo.
Violento mesmo, atualmente, é o Brasil. Somos responsáveis por mais de 10% dos homicídios do mundo.
E a curva de crescimento continua ascendente. Nos últimos dez anos, por exemplo, a violência letal entre os jovens brancos caiu 32,3% e entre os jovens negros aumentou 32,4%. Ou seja, os homicídios de jovens negros são um dos principais pilares que sustentam o aumento das mortes. O outro pilar é a indiferença com a qual a sociedade e o Estado tratam essas mortes, como se já tivessem passado a fazer parte da paisagem natural de nossas cidades.
Alguns pensam: “O mundo é mesmo um lugar violento”. Não. Violento mesmo, atualmente, é o Brasil. Somos responsáveis por mais de 10% dos homicídios do mundo. Conhecemos esses dados, mas naturalizamos o horror. Como se essas mortes fossem destino. Não eram. É uma escolha, um resultado das escolhas que fizemos ou deixamos de fazer. Nem mesmo as políticas de redistribuição de renda e redução da pobreza absoluta, implementadas durante a última década, foram capazes de alterar esse quadro. O que estamos assistindo, muito provavelmente, é que as mesmas famílias que ascenderam a uma nova (mesmo precária) classe média, perdem filhos, irmãos e maridos para a violência letal. O Brasil saiu do mapa da fome, mas permanecemos invictos no mapa da violência.
Uma parte significativa da letalidade decorre de ações das polícias. Não é exagero dizer que as polícias no Brasil se encontram entre as que mais matam e morrem no mundo. Os dados divulgados recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que 490 policiais tiveram mortes violentas no ano de 2013. Nos últimos 5 anos (2009-2011) a soma é de 1.770 policiais vitimados. Cerca de 75,3 foram mortos fora do horário de serviço. No mesmo período, as polícias brasileiras mataram em serviço – em nome do Estado, ou seja, de cada um de nós – 11.197 pessoas, o equivalente ao que as polícias dos EUA mataram em 30 anos. Esse quadro é o resultado mais acabado do fracasso de uma política de segurança que estabeleceu a guerra como paradigma de ação, onde os inimigos são, em grande medida, os jovens das favelas e das periferias de nossas cidades, em grande maioria negros. Enquanto a segurança pública e os profissionais que atuam nessa área, inclusive e especialmente os policias, não forem reconhecidos como uma prioridade do Estado na defesa e garantia dos direitos humanos de todas as pessoas, continuaremos a conviver com esse estado de verdadeira epidemia de homicídios.
O sistema prisional do Brasil é um dos mais violentos do mundo. Somos o 4º país em população carcerária, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia e as condições são péssimas: de alojamento, de alimentação, de justiça. Ali as pessoas são desumanizadas. Superlotação, torturas, precárias condições de higiene, revistas vexatórias em familiares – incluindo crianças -, e toda a sorte de punições para quem cometeu delitos são comuns. O Brasil prende muito e mal. Menos de 8% dos homicídios no Brasil resultam em processos criminais. Há uma deficiência na investigação, com a existência de duas polícias (Civil e Militar) que pouco dialogam, além de outras questões como a falta de perícia, pouco uso de inteligência, falta de dados, planejamento e coordenação institucional e federativa.
A Anistia Internacional não tem medo de dizer que defende, sim, os direitos humanos de todas as pessoas em qualquer lugar do mundo. Aceitar o Estado de exceção e a barbárie significa que todos perdemos.
O sistema judiciário contribuiu para a manutenção desse quadro. Cerca de 41% da população carcerária se encontra em situação de prisão provisória, em sua maioria passível de penas alternativas ao encarceramento, quando não simplesmente inocentes. Pesquisa recente realizada pelo Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro), mostra de 50% dos presos provisórios no estado estavam em situação ilegal: acabaram sendo absolvidos ou tiveram uma pena diferente da prisão.
Por isso que neste Dia Internacional dos Direitos Humanos a Anistia Internacional não tem medo de dizer que defende, sim, os direitos humanos de todas as pessoas em qualquer lugar do mundo. Aceitar o Estado de exceção e a barbárie significa que todos perdemos: perde o sistema de justiça, que não dá conta, perde a polícia que está em guerra contra a sociedade, perde o chamado “cidadão de bem”, brutalizado pelo medo, perde a sociedade, que admite e alimenta a vingança em vez da justiça. Perdemos a nossa própria humanidade.
*Atila Roque é Diretor Executivo da Anistia Internacional no Brasil.
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