“O que mais gosto de nosso tempo é que começam a entender, doa a quem doer, que ninguém mais vai morrer calado”
“Acho que tem uma parada muito louca que a gente precisa discutir: uma é a escravidão e outra é o modus-operandis da escravidão que está presente até o dia de hoje na realidade brasileira. Uma pessoa te remunerar por um serviço, não significa que em instância alguma aquela pessoa é dona de você.” A fala do rapper Emicida na abertura do documentário Boa Esperança, que o artista acaba de lançar no seu canal no Youtube, serve como sinopse perfeita tanto para o filme, como para a situação de muitos empregados, e não apenas domésticos, no Brasil.
Com 12 minutos de duração, o documentário, dirigido por Kátia Lund e João Wainer, mostra os bastidores da produção do vídeo clipe da música Boa Esperança, lançado no final de junho, e que trata da revolta de um grupo de empregadas domésticas contra os patrões, durante um banquete na casa onde trabalhavam.
As críticas ao vídeo e a música vêm exatamente deste lado da sociedade, de gente que sabe no fundo o quão privilegiada é por ser branca e com dinheiro e ignora todo este entorno de ódio e caos ao seu redor.
O documentário é mais uma pancada em quem se surpreendeu com a narrativa do vídeo clipe, que aliás já caiu como uma bomba no mundo de quem não enxerga a profunda divisão racial que existe no Brasil. Além de imagens do making-off do clipe, entrevistas gravadas com empregadas domésticas reais desvelam, num tom indignado e ao mesmo tempo simples, a concretude das humilhações apresentadas no clipe da música.
“Em muitos lugares em que eu trabalhei a gente não podia comer, ali na Pacaembu mesmo, ali tinha lugar da casa onde a gente não podia andar…Isso é normal, na casa do povo muito rico”, conta Divina Cunha, sobre o tratamento recebido quando trabalhava em casas da família de bairros nobres da capital paulista, como Higienópolis e Pacaembu.
Em entrevista para Ponte, Emicida diz que Boa Esperança é para o Brasil como um todo e que a ficção do clipe assusta por mostrar uma bomba-relógio, mas que ninguém sabe a hora que vai explodir. Ou, como ele diz, e forma precisa na música: “Aguarde cenas no próximo episódio. Cês diz que nosso pau é grande. Espera até ver nosso ódio.”
Leia:
“Boa Esperança” é para os filhos e filhas das domésticas do Brasil ou é para as próprias domésticas? É para conquistar as mães para o rap?
No histórico do Brasil atual é muito difícil levantar uma bandeira, apenas os que levantam sabem o peso que uma causa possui. Boa esperança é para o Brasil, como um todo e para o mundo também. Em nosso país as revoltas populares foram distorcidas pelas comunicações e sufocadas pelos poderes do estado. Cria-se uma ideia muito presente de que se você se manifestar em prol dos seus direitos você vai pagar por isso sozinho. se a sua causa for anti-racista então, você ainda é taxado de vitimista, mas vitimista é o caralho, o que mais gosto de nosso tempo é que começam a entender doa a quem doer que ninguém mais vai morrer calado. Então ali a gente trabalha com uma ficção que assusta por ser uma bomba possível que ninguém sabe quando vai explodir. As críticas ao vídeo e a música vêm exatamente deste lado da sociedade, de gente que sabe no fundo o quão privilegiada é por ser branca e com dinheiro e ignora todo este entorno de ódio e caos ao seu redor.
Já fez um documentário sobre a Rua Augusta e sobre a turnê #GRQNEA, por que esse tema das domésticas?
Eu gosto de mostrar que tem histórias grandiosas em volta do que fazemos. As pessoas olham para mim e dizem o Emicida é foda, mas eu apenas vejo coisas que me rodeiam e gosto de apontar para elas para compartilhar isto com os outros, então aquilo que foi parar na música é um pequeno fragmento de um universo muito maior, com rua Augusta foi isso, queríamos muito mostrar mais daquele universo, a tour do glorioso também foi assim e agora o tema das domésticas foi algo que considerei importante. Os artistas, talvez pela vaidade acabam acreditando que eles são a mensagem ambulante, mas eu acredito no contrário, acredito que a gente é o papel. Apenas a ferramenta por onde a mensagem chega, daí a importância de sempre querer apontar as referências.
Quem fez as entrevistas?
Na verdade eu não chamo necessariamente de entrevistas, aquilo foi um bate papo, bem informal, o tom de entrevistas iria trazer uma frieza e uma timidez que não iria auxiliar em nada. Foi realmente uma vivência, sentamos em círculos e falamos sobre nossas vidas, partilhamos nossas visões e durante essa conversa fomos registrando quem se sentia vontade para falar também. Eu, Katia e João [Wainer], às vezes perguntávamos alguma coisa a mais, mas tudo neste clima.
Você participou?
Sim, eu sempre participo de tudo. Sou chato.
Onde foi gravado?
Gravamos na Ocupação Mauá, no centro de São Paulo, tenho uma grande preocupação com a questão da moradia, as reformas agrária e urbana são temas da maior urgência que não tem recebido de nenhuma instância, nem municipal, nem estadual e nem federal a atenção que merecem. Mesmo com avanços como o bolsa família, ou o minha casa minha vida ainda temos muito chão para caminhar no que diz respeito a dividir a terra de que nos apropriamos. Este é o motivo de ser recorrente a presença da Mauá em meus trabalhos, é um ótimo exemplo de organização popular autônoma, gosto que as pessoas olhem para estes assuntos.
Quem são as personagens entrevistadas?
Dentre as pessoas do vídeo, tem algumas moradoras da Mauá, pessoas que trabalharam no filme, gente de diversos universos que se uniu ali por reconhecer a importância de se contar essa história.
Qual foi o critério para selecioná-las?
O critério foi ter ligação com aquele universo, seja num nível como o de dona Divina ou o da Michi Provensi, que também era filha de uma empregada doméstica no sul. Todos ali queriam contribuir de alguma forma com aquilo pois sabiam a urgência em dar voz aquele universo.
As personagens parecem ter muito mais histórias para contar, para deixar o espectador colado na cadeira, por que um doc curto, por que não mostrar mais da história delas?
Fazer vídeo é caríssimo. produzir mais material a partir dali seria um outro trabalho grande e não conseguiríamos manter toda esta equipe maravilhosa e apaixonada por muito tempo, todos tem agendas complicadíssimas. Também saímos com essa sensação, mas o mini-doc instiga as pessoas a quererem se aproximar mais desse universo e nesse quesito, somando o filme e o mini-doc, acho que cumprimos muito bem nossa missão.
De onde surge a ideia de fazer um documentário, a partir da pesquisa para o vídeo clipe?
Das conversas entre mim, Katia [Lund] e João [Wainer]. E o Ênio também foi muito importante na primeira parte do processo. Queríamos partir de algo além das nossas imaginações, que já são bem férteis. Não precisamos criar um cenário de opressão, de racismo ou de machismo. entendemos que seria simples fazer aquilo aparecer se abríssemos a câmera e perguntássemos sobre as lembranças de todas elas.
Pensa em fazer outros docs?
Amo fazer documentários, se pudesse faria mais, tenho mil ideias de vários formatos, mas me falta tempo. Às vezes conseguimos e em outras não, por hora estou satisfeito com o que fizemos no Boa Esperança, mas daqui a pouco eu apareço de novo com outra dor de cabeça pros meus colaboradores (risos) .