Assédio no trabalho, dentro e fora das redações, praticado por chefes, fontes, colegas de mesmo nível hierárquico: a repórter Janaina Garcia explica os porquês da campanha #jornalistascontraoassedio
Janaina Garcia, especial para a Ponte Jornalismo
Em treze anos de redações, não foram poucas as vezes em que ouvi, geralmente de fonte institucional, sobre a importância de a vítima de algum crime não se calar e denunciar o autor. É a velha lição: você denuncia, o criminoso é julgado, punido (espera-se), e outros pensam duas vezes antes de agir de maneira semelhante.
Acho que foi a lembrança dessa associação um tanto óbvia, tantas vezes negligenciada – a política segue, impávida, nosso maior exemplo –, mas necessária, que me causou espanto, há pouco mais de uma semana, quando soube que aquela menina havia sido demitida. A menina em questão trabalhava no portal iG, e, dias antes, havia sido norte a tantas outras vítimas de assédio sexual ao expor o que ela, própria, sofrera durante o trabalho. Estagiária, 21 anos, ouviu do cantor Biel – em provas gravadas apresentadas à polícia – expressões com escalas distintas de vulgaridade: de “gostosinha”a “se eu te pego, te quebro no meio”.
A vítima, quem diria, seria defenestrada pela própria empresa que assegurara suporte apenas duas semanas depois do assédio publicado render uns bons cliques ao portal. A mensagem desse tipo de atitude foi muito objetiva – como, ironicamente, o jornalismo nos exige já a partir do ‘lead’ do texto.
Mas é a própria profissão que nos pede, exatamente, a capacidade de nos colocar na pele do outro, ou de praticarmos a empatia. Que mais pode mover, por exemplo, o jornalista que se empenha em investigar a morte de uma criança de dez anos, por um agente do Estado, depois de ver a mãe desolada ao lado do corpo do filho?
No caso da jovem estagiária: e se eu tivesse exposto uma história tão escabrosa, a denunciado, me sujeitado a ter a vida especulada – ainda que tivesse optado pelo anonimato -, já que eu tinha apoio da empresa pela qual eu trabalhava? E se duas semanas depois eu tivesse de me virar sozinha para seguir adiante naquilo que pode se tornar um processo judicial contra uma personalidade atrás da qual existe uma gravadora de porte internacional?
Esse foi o estopim para a campanha #jornalistascontraoassédio, resultado espontâneo de conversas e mobilização com outras jornalistas a fim de que manifestássemos solidariedade àquela colega. De alguma maneira, queríamos que ela soubesse que não estava sozinha. E de outra maneira, descobrimos que ela não estava, mesmo: começaram a se multiplicar, entre nós, relatos do presente e do passado sobre situações tão ou mais humilhantes que as expressões chulas usadas pelo jovem músico.
Assédio no trabalho, dentro e fora das redações, praticado por chefes, fontes, colegas de mesmo nível hierárquico. Assédio moral, assédio sexual. Assédio dentro e fora das assessorias de imprensa. Em um fim de semana, reunimos mais de 5 mil mulheres em um grupo no Facebook. Produzimos um vídeo de menos de dois minutos – graças ao apoio imprescindível do editor Pablo Soares – com alguns dos relatos voluntariamente disponibilizados e publicamos o material, juntamente com um manifesto, em uma fanpage que arregimentou cerca de 16 mil seguidores em uma semana, a “Jornalistas contra o assédio”. Nesse período, quase 3 milhões de pessoas, com a página e com o vídeo, já foram alcançadas com a mensagem.
Tanta gente disposta a tocar nas próprias feridas ou a simplesmente pautar esse tipo de debate nos parece emblemático: por quanto tempo mais reportaríamos os casos de assédio em outras categorias profissionais sem lidar com o que está debaixo do nosso próprio nariz? O quanto ainda acharíamos comum a mulher se sentir receosa perante o ‘galanteio’ constrangedor da fonte como moeda de troca pela informação de interesse público? O quanto ainda acharíamos comum a colega ter medo de manifestar na empresa o desejo de ter filhos, já que homem não precisa amamentar por seis meses?
Infelizmente, o assunto é comum e é naturalizado nas redações e fora delas. Nossa campanha quer não só contribuir pela derrubada dessas concepções, como insistir que assédio tanto não pode ser comum, como não é normal. Você, homem, gostaria que sua filha, esposa ou mãe fossem assediadas no exercício da profissão (e não só!)? Você, mulher, vislumbra relações de trabalho efetivamente sadias e menos desiguais calando diante desse ranço espúrio de um machismo que tanto nos empobrece?
A causa está só no começo, ainda há muito a ser feito. Os relatos de assédio chegam diariamente, e agora o desafio é informar não mais para chocar e alertar, mas para prevenir, educar, conscientizar. Com mulheres e com homens engajados, e com as entidades que se afirmam representativas dos jornalistas fazendo valer o título que carregam – ou re-significando seus próprios conceitos, por que não?
A hashtag da nossa campanha desde o começo é #jornalistascontraoassédio, mas prefiro entendê-la como derivativo de algo tão caro e tão mais simples: #respeito.
Vamos juntas e juntos?
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Jornalistas Contra o Assédio
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