De janeiro a outubro, as polícias Civil e Militar mataram 676 pessoas, ultrapassando os anos inteiros de 2023, 2022 e 2021. Para pesquisador, trata-se de “política calcada em espetacularização das mortes que não traz segurança”
“Eles [os policiais] não mataram só o Guilherme, eles mataram a Nilceia, mataram a família”. O desabafo emocionado e revoltado é da auxiliar de cozinha Nilceia Alves Rodrigues, de 43 anos, durante o protesto que marcou os cinco anos do Massacre de Paraisópolis neste domingo (1/12). Há 46 dias, seu filho Guilherme Alves Marques de Oliveira, 18, foi morto numa ação da Polícia Militar em Bauru, no interior paulista, e o caso tomou grande repercussão porque ela também perdeu seu direito de velar o jovem — policiais invadiram o velório e agrediram a mãe e outros parentes do rapaz assassinado.
Acompanhada de Nilceia, estava a diarista Maria Aparecida dos Santos, 46, mãe de Luís Silvestre da Silva Neto, 21, morto junto com Guilherme na mesma ação da PM. Segundo ela, o rapaz sofria de dependência química e tentava largar o vício para cuidar do filho, que completou um ano esta semana. “Meu filho era usuário, queria uma chance para viver e a polícia tirou essa chance”, lamentou Maria Aparecida.
Os dois jovens integram uma terrível estatística. De janeiro a outubro, as polícias Civil e Militar de São Paulo mataram 676 pessoas — uma alta de 66% em relação ao mesmo período do ano passado, considerando os casos em serviço e de folga.
O número já é superior aos anos inteiros de 2023, 2022 e 2021. Os dados foram divulgados pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) na sexta-feira (29/11) e analisados pela Ponte.
Matança como política de governo
Só em outubro deste ano foram 96 vítimas — três por dia. Isso representa 190% de aumento em relação ao mesmo mês de 2023, quando foram contabilizadas 33 mortes. A tendência, desde o início da gestão sob o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e seu secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, tem sido de alta acentuada da letalidade policial.
As mortes cometidas em serviço, que são as que o Estado têm maior controle, subiram 308 para 572 — alta de 85,7%.
Para Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os dados são “chocantes” e houve uma institucionalização da matança como política do governo. “Esse aumento da letalidade policial não foi causado por um ou dois policiais, foi causado por uma mudança de estratégia, por uma mudança de modelo de policiamento mesmo, uma mudança de percepção do que deve ser segurança pública e de ações governamentais institucionais, organizacionais nesse sentido”, afirma.
A gestão teve como marca duas operações extremamente letais na Baixada Santista, vistas como vingança após assassinatos de policiais: a Escudo, entre julho e setembro de 2023, que deixou 28 vítimas; e a Verão, entre janeiro e março de 2024, com 56 vítimas. Esses são os números indicados pela secretaria como decorrentes dessas operações. Na região, no entanto, as mortes pelas polícias foram muito maiores em cada período, como a Ponte mostrou.
As operações também deixaram rastros de sangue meses depois. A cozinheira escolar Beatriz Rosa, 29, que perdera seu marido Leonel Andrade Santos, 36, uma pessoa com deficiência, na Operação Verão, também perdeu seu filho, o menino Ryan da Silva Andrade Santos, de apenas 4 anos, durante uma ação da PM no Morro São Bento, em Santos.
O velório da criança e do adolescente Gregory Ribeiro Vasconcelos, 17, morto na mesma ação, também tiveram presença intimidatória da polícia. O governador Tarcísio até hoje não se manifestou sobre o caso.
Política sem segurança alguma
Como a Ponte registrou, deputados estaduais cobraram investigação do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) sobre a conduta da PM em atos fúnebres de vítimas de violência policial.
Cerca de 20 entidades que participaram de uma comitiva liderada pela Ouvidoria das Polícias entregarão, nesta sexta-feira (6/12), um relatório ao Procurador-Geral de Justiça Paulo Sérgio de Oliveira e Costa a fim de cobrar apuração sobre o comportamento da polícia no local e respostas diante das 56 mortes da Operação Verão deste ano. Entre os pedidos, está um plano efetivo de redução da letalidade policial.
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“O que tinha de eficácia demonstrada, em termos de controle da atividade policial, de promoção do direito à vida, do direito à segurança pública, tem sido escamoteado, tem sido desestruturado, tem sido desfeito pela gestão”, critica Dennis. “É uma política de segurança que não traz segurança alguma, que está calcada na produção de mortes e na espetacularização dessas mortes e que não tem qualquer constrangimento de matar criança, de invadir velório.”
Uma das formas de de medir o excesso da letalidade policial é comparar esse índice com o número de vítimas de homicídios dolosos. De janeiro a outubro, essa proporção ficou em 23,9%, ou seja, um em cada quatro assassinatos ocorridos no estado foi cometido pelas polícias.
Estudos do sociólogo Ignacio Cano indicam que a proporção ideal é de 10% de mortes pela polícia em relação ao total de homicídios. Os do pesquisador Paul Chevigny sugerem que um índice maior que 7% já seria considerado abusivo.
“É um dado que mostra que a gente tá num momento muito preocupante mesmo da nossa política de segurança”, avalia Dennis Pacheco.
Tratamento discriminatório
O pesquisador do FBSP afirma que o governador Tarcísio tem se eximido de sua responsabilidade, uma vez que só veio a público repudiar uma conduta da polícia quando houve a morte, por um PM, de um estudante de medicina, Marco Aurélio Cardenas Acosta, 22, há duas semanas no bairro da Vila Mariana, zona sul da capital.
“Eu lamento muito a morte do Marco Aurélio. Essa não é a conduta que a polícia do Estado de São Paulo deve ter com nenhum cidadão, sob nenhuma circunstância. A Polícia Militar é uma instituição de quase 200 anos, é a polícia mais preparada do país e está nas ruas para proteger. Abusos nunca vão ser tolerados e serão severamente punidos”, escreveu Tarcísio no X (antigo Twitter).
“O governador o considerou uma pessoa de verdade. Não era só uma pessoa pobre, periférica, que não tinha nenhum qualificante de pertencimento a um extrato diferenciado da sociedade”, critica o pesquisador. “Não cabe esse discurso da ‘maçã podre’, e eu acho que ele é cada vez menos convincente. Basta olhar para os dados. É uma mudança de uma magnitude que não pode ser causada por uma ou duas maçãs podres. Muito pelo contrário, é uma maçã organizada”.
Dennis também ressalta que o MP-SP, que tem atribuição de controle externo da atividade policial, deveria ser mais efetivo. “É preciso é que as instituições responsáveis por fazer o contrapeso ao modelo de política que o Tarcísio está implementando ajam de acordo com as suas missões institucionais”.
O que diz o governo
A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) sobre os indicadores, bem como a respeito da investigação das mortes citadas. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu até a publicação. Em caso de resposta, será incluído na reportagem.