Dos 46 ônibus queimados em 2015, pelo menos 18 foram atacados após ações policiais que resultaram em morte na periferia paulistana
O grande sonho de Lucas era ser jogador de futebol. Douglas estava feliz por ter conseguido um emprego com carteira assinada. Maycon passeava de carro durante uma quente noite de dezembro. O que os três têm em comum? Após serem mortos por policiais militares, ônibus foram incendiados nas regiões onde moravam.
A prática de queimar ônibus em São Paulo vem aumentando a cada ano, com recordes que já dizimaram mais de 520 coletivos em dez anos, entre janeiro de 2005 e junho de 2015.
De acordo com levantamento feito pela reportagem Ponte, ao menos 18 casos de queima de ônibus na capital estão relacionados à violência policial. Dos 46 coletivos queimados em 2015 (de acordo com a SPTrans, que inclui na sua contabilização as vans operadas por cooperativas), a reportagem conseguiu levantar a motivação de 29 deles.
Em 20 casos, os ataques foram cometidos horas depois de ocorrerem mortes na região. Desses, 18 após supostos confrontos com a polícia e dois após homicídios cometidos por autores não identificados. Em outros sete, a queima ocorreu após aumento da passagem de transporte. E em dois casos, ocorreram depois de uma forte chuva causar inundações no bairro do Jaraguá.
Chamar atenção
De acordo com fontes ouvidas pela reportagem, o método seria uma forma de comunicação alternativa, na tentativa de dar visibilidade para o que acontece na região, chamar a atenção da chamada “grande mídia” e do poder público. “A mídia os chama de vândalos, mas não são. A comunidade se revolta com certos tipos de atitude. É uma forma dos sem voz, sem tetos se comunicarem. Os moradores querem mostrar sua revolta, indignação”, disse à reportagem, uma advogada que atua na defesa de um jovem detido por homicídio, após incendiar um ônibus em dezembro de 2012 que levou à morte de duas pessoas.
Em 2015, os locais onde houve maior número de ataques correspondem às áreas de transporte 6 e 7, respectivamente, com 13 e 14 ataques. A área 6 atende aos bairros do Grajaú, Cidade Dutra, Cidade Ademar e Americanópolis; enquanto a área 7 compreende os bairros do Campo Limpo, Capão Redondo, Jardim Ângela e Jardim São Luís. No Campo Limpo e no Grajaú, na zona sul, e Cidade Tiradentes e Itaim Paulista, na zona leste, ao menos dois ônibus foram queimados após uma morte cometida por um PM. No Campo Limpo os casos foram registrados entre às 21h20 e 21h50 do dia 3/2. No Grajaú, às 18h10 e 23h20 do dia 28/5. Em Cidade Tiradentes e Itaim Paulista, às 16h06 e 16h09 de 3/5, e entre às 18h17 e 18h36 de 14/6, respectivamente.
Outros bairros que tiverem coletivos atacados após supostos confrontos são: Jardim Ângela, Jardim São Luís e Parque Umuarama, na zona sul; na zona leste, Jardim Helena; na norte, Brasilândia e Morro Doce, além de Parada de Taipas na zona norte.
Em 21/2, após uma intervenção de policiais militares do 22° Batalhão, que culminou com a morte de um jovem de 18 anos, moradores da comunidade bloquearam a Avenida Interlagos, no Parque Umuarama, zona sul e queimaram dois coletivos. A palavra “justiça” foi escrita no asfalto.
No mês de março, entre os dias 18 e 24, quatro ônibus foram incendiados em vias do Jardim Ângela e do Jardim São Luís após a morte de um homem decorrente de um suposto confronto com PMs. No bairro de Parada de Taipas, na zona norte, dois coletivos foram destruídos após dois casos distintos, porém, com ônibus queimado na mesma via e no mesmo horário. Ambos na Estrada de Taipas às 19h10, nos dias 25/5 e 11/6.
No dia 3/5, em um intervalo de 3 minutos, dois ônibus foram queimados na Rua Patrício Teixeira, em Cidade Tiradentes, zona leste, após um jovem ser morto em abordagem de homens da Rota a um carro roubado. Além da morte do homem, os protestos se deram após o veículo roubado e a viatura terem atropelado uma criança de três anos, que teve ferimentos leves.
Vítimas que motivaram incêndios na capital
Os casos mais recentes de veículos queimados na capital ocorreram em 14/6, em um intervalo de nove minutos, entre às 18h17 e às 18h26, em um raio de um quilômetro. O primeiro foi na Rua Paulo Tapajós, e fazia a linha 2076/10 (Jardim das Oliveiras – Terminal Penha). O segundo à Rua Desembargador Octávio Gonzaga Junior, com um ônibus da linha 273N/10 (Cidade Kemel II – Vila Matilde).
O motivo endossa as estatísticas acima. A menos de 200 metros dos atos incendiários um homem foi morto por um policial militar. Por volta das 12h de 14/6, o PM Nelson Aparecido Calazans Neto, lotado no 29° Batalhão, disparou com sua pistola .40 contra o repositor de supermercado Douglas Bento Martins, de 27 anos.
Na versão dos PMs, Martins estaria armado com uma pistola .380, porém, testemunhas afirmam que o repositor estava desarmado. Baleado dentro de seu condomínio, à Rua Ilha da Paz, chegou a ser socorrido ao Hospital Geral de Guaianases, não resistiu ao ferimento e morreu.
A PM teria sido chamada após uma discussão seguida de agressão física, no dia anterior, entre Martins e um vizinho, identificado como Ronaldo Pereira Pedro. Familiares do repositor ainda afirmaram ter sido agredidos por PMs durante o socorro, além da demora na chegada do atendimento, prestado pelo SAMU.
No registro sobre a morte de Martins consta que ele tinha uma passagem pela polícia por suspeita de tráfico de drogas.
À Ponte, amigos e familiares de Martins disseram acreditar que os responsáveis pelos incêndios não eram conhecidos do repositor e que eles, ao saber como a morte aconteceu, resolveram promover os ataques para “chamar a atenção da mídia contra a morte injusta de um pai de família nas mãos da polícia”.
Jogador de futebol
Outra vítima que engrossa a lista de violência policial seguida de ataque a ônibus em 2015 foi Lucas Santos Custódio, o Dudinha, 16 anos, enterrado em 29/5 às 12h no Cemitério São Luís. Dudinha sonhava em ser jogador de futebol profissional e foi morto por volta das 14h30 de 27/5 em um descampado na favela Sucupira, no Grajaú, zona sul.
Na versão de testemunhas, o garoto jogava bola quando suspeitos de fugirem da PM atravessaram seu caminho. Os PMs, lotados no 27° Batalhão, teriam atirado em direção aos suspeitos e atingido a barriga do garoto. O caso demorou cinco horas para ser denunciado à Polícia Civil.
Familiares reclamam que, quando levado ao pronto socorro do Grajaú, Dudinha já estava morto. Assim que souberam da morte, populares bloquearam a principal avenida do bairro, Dona Belmira Marin, e depredaram cinco ônibus. Na tarde seguinte, por volta das 16h10, um ônibus foi queimado na altura do 2.600 da via.
Dudinha tinha uma internação na Fundação Casa, antiga Febem, por roubo. Os policiais que atiraram contra o adolescente disseram ter encontrado um revólver calibre 38 com ele, que teria sido usado em revide. O caso é investigado pelo DHHP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), da Polícia Civil.
Em nota enviada à reportagem, a Secretaria de Segurança Pública informou que apenas em 2015, 20 pessoas foram identificadas e 11 presas por envolvimento em ocorrências de incêndio de ônibus.
Queimas no centro
Se a zona sul concentra a maioria dos casos de queima de ônibus, a região central possui apenas cinco casos de ataques, entre 2013 e 2015, sendo três diretamente depois de ações da PM. Em 19 de setembro de 2014, após uma reintegração de posse de um edifício ocupado por sem tetos que terminou com o uso de violência da PM com reforço da Tropa de Choque, a população incendiou um ônibus na Praça Ramos de Azevedo.
A reportagem da Ponte teve acesso a uma planilha montada por técnicos do transporte coletivo, que liga ataques de ônibus a ocorrências com mortes em 2013. Os casos começaram a ser apurados no início do mês de outubro. Naquele ano, 53 ônibus foram queimados, sendo que 26 tiveram seus motivos analisados. 21 ônibus foram queimados após a ocorrência de mortes, destes, 13 após intervenção de policiais militares, 6 após a morte de um jovem em um baile funk, e outros dois depois de um ataque de motoqueiros. Ainda foram apuradas como causas, falta de água, (2 ônibus), protesto do Movimento Passe Livre (1), atropelamento em via (1), e confronto entre vendedores ambulantes e a PM (1).
No período entre janeiro de 2013 e junho de 2015, num total de 243 ônibus queimados, bairros (não o distrito, que englobaria mais micro-bairros e um aumento considerável nos casos) como o Grajaú, com 23 ocorrências, e Campo Limpo, 13, na zona sul, e Cidade Tiradentes, 17, e Itaim Paulista, 14, na zona leste, lideram o levantamento elaborado de forma exclusiva pela reportagem.
Incêndios têm horário preferencial
A reportagem também constatou que a maioria dos ataques a coletivos é realizada no período noturno. Dos 198 carros queimados em dois anos e meio, entre janeiro de 2014 e junho de 2015, de acordo com dados da SPUrbanuss (sindicato patronal da categoria, na qual não se contabilizam as lotações), 140 foram entre às 18h e às 23h59. A maior relevância acontece entre às 19h e às 22h. Durante este horário, 104 ônibus foram atacados. Somente em 2015, dos 39 veículos depredados, 21 foram queimados entre às 19h e às 22h.
Outro horário potencialmente escolhido para se queimar ônibus é entre às 16h15 e às 20h45. Neste ano, dos 39 ônibus atingidos, 17 foram destruídos no período. Em 2014, de 110, 35. Em 2013, dos 53 carros atacados, 27. Se chamar a atenção da mídia é uma real intenção, o horário coincide com telejornais transmitidos ao vivo, como Brasil Urgente, da TV Bandeirantes, e Cidade Alerta, da TV Record, que através de helicópteros captam diversas regiões da cidade em tempo real.
De janeiro de 2013 até junho de 2015, não houve um mês, em que ao menos um coletivo não tenha sido alvo.
De conhecimento das autoridades
A relação entre queima de ônibus e violência policial não é de desconhecimento das autoridades estaduais. Em maio de 2014, em entrevista aos repórteres Fausto Salvadori Filho e William Cardoso, o ex-secretário de Segurança Pública Antônio Ferreira Pinto, disse ter conversado com o governador Geraldo Alckmin sobre o tema. “O que a gente sentia, eu senti e disse ao governador, é que um sintoma que há excesso da Polícia Militar é quando existe um caso de tiroteio em que morre um cara e a população incendeia ônibus. É a única forma da população por para fora sua revolta. Eu sempre dizia ao governador: toda vez que há uma ocorrência mais delicada, que é um pouco nebulosa se é uma intervenção necessária ou se houve excesso, na hora em que a população queima o ônibus, é sintoma de que essa ocorrência está complicada”.
Na conta das investigações
Uma boa parcela dos casos de incêndio de coletivo fica ou sem solução ou com investigação inconclusa. Dois veículos foram atacados entre às 19h30 e 19h40 da segunda-feira, 6/04, no Campo Limpo, periferia da zona sul.
O primeiro veículo incendiado fazia a linha 6804/10 (Jardim Inga – Terminal João Dias). O modus operandi foi o mesmo de sempre. Um grupo de populares parou o ônibus na Rua José Pereira Bueno e, ordenou que motorista, cobrador e passageiros descessem. O ônibus teve o vidro dianteiro estilhaçado e ficou parcialmente queimado.
Pouco depois, à Rua Nelsom Brissac, há cerca de 850 metros do primeiro ataque, desta vez no Parque Regina, o coletivo que fazia a linha 6806/10 – (Jardim Novo Oriente – Terminal João Dias), teve o mesmo destino. Ambos os carros pertencem à Viação Campo Belo, do Consórcio Sete, que atua principalmente em bairros distantes do centro, como o Capão Redondo, Jardim Ângela, Campo Limpo e Jardim São Luís. Nos últimos dois anos e meio, a empresa teve 22 carros queimados, sendo 6 em 2015, 13 em 2014 e outros 3 em 2013.
Sobre os atos no Jardim Inga e no Parque Regina, além da maioria das ocorrências do tipo registradas, a SPUrbanuss informou que “não há indícios que apontam para atos voltados contra o transporte público”, mas sim “atos criminosos”.
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública afirmou que a Polícia Civil investiga os casos. “Nas duas últimas ocorrências citadas pela reportagem na região do Campo Limpo, investigações estão em andamento. Os depoimentos indicaram que um grupo de 30 pessoas abordou o veículo e cometeu o crime e a Polícia Civil trabalha para identificar os autores”.
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Outro lado
A reportagem foi informada pela Secretaria de Segurança Pública que entre janeiro de 2014 e abril de 2015, 71 pessoas foram detidas suspeitas de incendiar ônibus na capital.
Ainda de acordo com a pasta, “a Polícia Militar está realizando operações específicas na região Sul da cidade de São Paulo para combater e prevenir ataques a ônibus”.
Também foram realizadas reuniões estratégicas com a SPTrans e empresas de ônibus para ampliar o fluxo de informações que são transmitidas para a PM, quando os funcionários das empresas verificarem atitudes suspeitas durante o trajeto, ou por meio do Disque Denúncia – telefone 181 -, quando tiverem informações sobre ataques ocorridos ou sobre possíveis ataques futuros.
Além disso, desde o início do ano há uma estação de trabalho da Guarda Civil Metropolitana dentro do Centro de Operações da Polícia Militar (Copom), para integrar os trabalhos e otimizar o combate dos crimes”, diz a nota.
A reportagem também procurou o Ministério Público, que através de sua assessoria de imprensa informou “que existe uma investigação no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), Núcleo São Paulo sobre os ônibus incendiados. O objetivo é saber se alguma organização criminosa ordena os ataques aos coletivos”.
Indagada sobre os reais motivos que levam a população a queimar ônibus na capital, a SPUrbanuss disse não ter esse tipo de levantamento, porém, reafirma a tese mais comum abordada pela reportagem. “SPUrbanuss não tem esse tipo de levantamento. Até mesmo, porque a investigação das razões dos incêndios não é de competência das empresas. Elas registram Boletins de Ocorrência nas delegacias da região do fato, até para posterior ação judicial. Mas, temos sempre afirmado, nenhuma das ocorrências tem relação com problemas relacionados ao serviço de transporte urbano. Já queimaram ônibus porque faltou água, porque alagou, porque uma criança supostamente havia desaparecido e, o mais comum, porque houve alguma ação policial”.
Já a SPTrans, responsável por administrar o sistema de transporte público da capital, disse tomar as medidas cabíveis junto à Policia Militar. “A SPTrans segue atuando junto à Secretaria de Segurança Pública e solicitando sua intervenção para que atos de violência como os que vêm sendo registrados deixem de ocorrer. Desde 21 de maio de 2014, um técnico esta presente 24 horas por dia na Central de Operações da Polícia Militar (Copom). A SPTrans esclarece ainda que, sempre que há sinalização de risco para operadores e usuários, solicita preventivamente reforço da Polícia Militar para a operação do sistema.
Vale destacar que quando são registrados atos de vandalismo contra o transporte público ou qualquer ocorrência que sinalize possibilidade de risco para a segurança de passageiros e operadores, a SPTrans solicita apoio à Central de Operações da Polícia Militar”, finaliza a nota.