Identificação de operário executado mostra, 47 anos depois, ‘o que foi a ditadura’

    Morto em 1971, Dimas Antônio Casemiro foi despojado numa vala clandestina do cemitério de Perus e teve corpo identificado apenas neste ano, por um laboratório na Bósnia

    Parte das ossadas de Perus, com as fotos de vítimas não identificadas | Foto: Luana Dorigon/Ponte

    Seis dias após o sábado de Carnaval — data escolhida por um grupo de jovens em São Paulo para comemorar as torturas praticadas pela ditadura militar brasileira com o bloco Porão do Dops, que acabou proibido pela justiça —, do outro lado do Atlântico uma descoberta histórica ajudou a trazer mais luz para os crimes do período.

    Em 16 de fevereiro, o laboratório International Commission on Missing Persons (Comissão Internacional de Pessoas Desaparecidas), localizado na Bósnia, identificou a ossada do operário e militante Dimas Antônio Casemiro, o Rei, um dos comandantes do MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes), assassinado por uma emboscada de agentes do governo em abril de 1971. Sua ossada havia sido despojada em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte da cidade de São Paulo.

    Para o ex-preso político Ivan Seixas, a identificação de Dimas veio na hora certa. “O Dimas era um grande revolucionário, até morto ele permanece criando problemas para o outro lado. Justo no momento em que os caras estão falando em intervenção militar, o Rei aparece para mostrar que a ditadura não foi uma coisa pequena ou passageira, foram 21 anos de massacres. A ditadura nunca será uma solução dentro do regime democrático. Temos que combatê-la se quisermos ao menos respirar”, afirma.

    Registro sobre Dimas da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos

    O convênio com o laboratório bósnio foi feito pelo Ministério dos Direitos Humanos, por meio de uma emenda parlamentar de aproximadamente R$2 milhões da deputada Luiza Erundina (PSOL), em 2015.

    Em setembro de 2017, o laboratório recebeu as primeiras 100 amostras de DNA. Dimas Antônio Casemiro é o primeiro nome a ser identificado pela equipe do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), criado pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), em 2014, o qual passou a coordenar as investigações, em parceria com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

    O Rei

    Ivan conta que Dimas foi localizado e assassinado numa emboscada armada pelo agente infiltrado Gilberto Faria Lima, conhecido pelo apelido de Zorro. “Moravam com Dimas a Rainha [sua esposa Maria Helena], o Reizinho [seu filho Fabiano] e o Zorro. Eles sempre chegavam em casa pela rua da frente, mas, neste dia, o Zorro levou-o para entrar pelos fundos da casa. Ele foi cercado e fuzilado sumariamente, enquanto o Zorro fugiu. Quando o caso foi julgado pela Comissão de Mortos e Desaparecidos, uma conselheira resolveu que as marcas da queda eram marcas de tortura e que ele teria sido preso e morto em tortura, mas na verdade ele foi fuzilado na rua de sua casa”, conta Seixas.

    Ivan Seixas: “Dimas era um militante exemplar” | Foto: divulgação

    Amigo e companheiro de militância, Seixas relembra sua relação com Dimas. “Conheci Dimas no MRT, quando ele ainda usava o nome de guerra de ‘Fabiano’, que descobri depois ser o nome de seu filho”, relata. Dimas era operário gráfico e, certo dia, foi à casa de Ivan para ensiná-lo a como operar o mimeógrafo e imprimir os panfletos das ações da militância. “Ele manuseava uma resma de papel com a intimidade que só um operário gráfico saberia fazer. Nessa hora, o Henrique [Devanir José de Carvalho, comandante do MRT], disse ‘Caralho! Ele é o Rei do Papel’ [risos]”, diz. Assim, Dimas começou a usar o nome de guerra “Rei”.

    “Na militância, ele era muito disciplinado e educado nas reuniões. Fosse com duas ou dez pessoas, a atenção era a mesma e exigia que fosse assim com todo mundo. Em ações armadas, antes de começarmos, repassávamos todo o plano para nada dar errado. Ele sempre dizia: ‘Não pode dar errado, para não precisarmos atirar. Se atirarmos, podemos matar uma pessoa inocente. Nós não podemos fazer isso’. Ele era um militante exemplar”, conta Seixas.

    Dimas era casado e tinha um filho, Fabiano. O menino tinha apenas 3 anos quando o pai foi morto. “Quando a vala foi aberta, o Fabiano foi lá para tentar encontrar o pai dele. Ele se aproximou e disse que gostaria de saber se alguém havia conhecido o pai dele. Perguntei quem era o pai dele, ele disse ‘Dimas Antônio Casemiro’, então eu contei que ele era meu amigo. Ele começou a perguntar ‘Como era o meu pai? Como ele falava? Como ele ria? O que ele comia?’. Então comecei a contar para ele as nossas histórias. Foi quando ele perguntou ‘E comigo? Como ele era?’. O Rei era apaixonado por ele, às vezes estávamos conversando e o Fabiano chegava chamando pelo pai, então ele parava tudo o que estava fazendo para ir brincar com seu filho. Doeu ver o menino precisando conhecer o pai através da história que outro alguém vai contar”, diz.

    Atualmente, Fabiano vive na cidade natal de seu pai, Votuporanga, no interior de São Paulo. “Não conseguimos nos encontrar tanto, mas o carinho que sinto por ele é de irmão mais velho, temos uma ligação por conta do Dimas”, declara Seixas.

    A vala

    Inaugurado em 1971, durante a gestão do prefeito Paulo Maluf (1969-1971), o Cemitério Dom Bosco abrigou uma vala criada com o propósito de esconder as ossadas de desaparecidos e presos políticos, mortos pelos órgãos de repressão da ditadura militar. Nela, também foram despojadas ossadas de indigentes vítimas da epidemia de meningite ocorrida em 1972.

    Aberta em 1991, durante a gestão de Luíza Erundina, a vala foi descoberta pelo administrador do cemitério na época, Antônio Pires Eustáquio, e ganhou notoriedade nas mãos do jornalista Caco Barcellos. Quando aberta, cerca de 1.500 ossadas de indigentes e desaparecidos políticos foram encontradas e levadas para a Unicamp (Universidade de Campinas) para análise e identificação, sob coordenação do médico legista Badan Palhares.

    Antônio Pires Eustáquio, que foi administrador do Cemitério de Perus | Foto: divulgação

    No entanto, em 1999, o caso foi abandonado pela equipe. “Tudo começou a mudar após o fim da gestão da Luiza Erundina. Foi quando o Dr. Palhares começou a tirar a máscara, passou a proibir nossa entrada no laboratório e a dar contraindicações. No entanto, conhecíamos pessoas que trabalhavam lá. Certo dia, um dos médicos me disse: ‘Nós identificamos o seu amigo [Dimas]’, fiquei contente e perguntei quando que anunciariam, então ele disse ‘Não, o Fortunato [Badan Palhares] não quer fazer a identificação oficial, só vai reconhecer se tiver o DNA’. E assim ficou durante 27 anos”, conta Seixas.

    Ivan foi preso e torturado junto a seu pai Joaquim Alencar de Seixas, morto em 1971. Segundo Ivan, tanto seu pai como Dimas foram mortos para “dar uma resposta à burguesia que financiava os órgãos da ditadura militar”. A ditadura acreditava que ambos haviam participado da morte do empresário Henning Albert Boilesen, presidente da Ultragaz, em abril de 1971. “Boilesen era instrutor de tortura, ele financiava nossos inimigos, por isso foi alvo de justiçamento, em nome da morte de Henrique, ocorrida no dia 7 de abril de 1971. Eles mataram meu pai, mas não se contentaram. Então, armaram a emboscada para o Rei”, diz Seixas.

    “Meu pai foi o primeiro preso político a ser enterrado na vala, o Dimas foi o segundo. Fiquei preso durante 6 anos, minha mãe e minhas irmãs ficaram por um ano e meio. Quando foram soltas, elas passaram a cuidar da sepultura do meu pai, para que não sumissem com a ossada dele”, conta Ivan. No início de 1975, a família ouviu um alerta dos coveiros: “Olha, vão fazer uma vala comum e vão misturar todas as ossadas. Quando chegar o tempo legal de exumação, levem o pai de vocês embora daqui ou ele irá parar na vala”. O corpo de Joaquim foi transferido para o Rio de Janeiro, mas as irmãs de Ivan continuaram indo ao cemitério e souberam que a vala fora de fato feita. “Após a anistia, começamos a procurar por alguns nomes que poderiam estar no cemitério e consequentemente na vala”, conta Seixas.

    O encontro de dois nomes foi crucial para validar todas as pesquisas: Isaac Abramovitch e Harry Shibata, médicos legistas do IML (Instituto Médico Legal) envolvidos com a ditadura militar. “Amelinha [Maria Amélia de Almeida Teles], uma das militantes que escapou da morte, me trouxe esses dois nomes. Ao checar os registros de óbito dos indigentes enterrados no cemitério, vimos que eles assinaram atestados com o mesmo modus operandi: ‘travou tiroteio, ferido, morreu a caminho do hospital’”, conta o ex-administrador Antônio.

    A retomada

    Dos que foram vistos em São Paulo próximos à morte aos que estão registrados no cemitério de Perus sem indícios de local de exumação, a busca pelos 41 desaparecidos é direcionada de acordo com graus de probabilidade, distribuídos em cinco estágios: do mais ao menos provável. “Ainda que haja nomes com quase zero chances de encontrarmos, nós permanecemos à procura para que possamos, ao menos, dar uma resposta para a família. Mesmo que seja: ‘ele não está na vala’, ainda assim, teremos tentado”, conta a arqueóloga do Grupo de Trabalho Perus (GTP), Ana Paula Tauhyl.

    Segundo Tauhyl, ainda serão enviadas mais 650 amostras para o laboratório. “A expectativa é boa. Essa identificação deu muita motivação e ânimo para a equipe”, conta.

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